XLIX
Não se pode dizer que o almoço no comboio tenha sido uma maravilha da arte gastronómica, mas considerando as circunstâncias não caiu mal no paladar dos viajantes; era um pulpo à galega com patatas bravas e um copo de Rioja.
"Bem bom, este polvo", observou Tomás enquanto trincava os tentáculos do pulpo. "Estava com medo que servissem paella."
Raquel atirou-lhe um olhar ofendido.
"Porquê? Tens alguma coisa contra a paella?"
O seu companheiro de viagem percebeu que tinha acabado de dar um passo em falso; não tinha sido ela que lhe havia servido uma paella no apartamento de Sesefia?
"Eu? Não, claro que não", apressou-se a esclarecer, embaraçado com a gaffe. "A paella é... é magnífica." Esperava ter sido convincente, mas não tinha a certeza de o ter conseguido. "Enfim, hoje apetecia-me comida do mar. Sabes como é, sou português e..."
Não chegou a terminar a frase, não era preciso; o sentido havia 315
sido compreendido. Baixou os olhos para o polvo e a seguir para o copo de vinho; parecia-lhe incrível que tivesse tanta fome. Ou, vendo bem, provavelmente o apetite era normal. Não tinha passado as últimas quarenta e oito horas a correr de um lado para o outro, submetido a stresse permanente e sem comer nada de jeito? Só um asceta ou um monge tibetano é que não teria fome.
"O euro", soltou de repente a espanhola. "Qual é o futuro do euro?"
Tomás engoliu o pedaço de tentáculo que havia meio minuto estava a mastigar como se fosse chiclete.
"Para perceber o futuro é preciso entender o passado", voltou a lembrar, a veia de historiador sempre presente. "O euro nasceu formalmente em 1999 e fisicamente em 2 002. Para poderem entrar na moeda única, os países tinham de cumprir os exigentes critérios orçamentais de défice e dívida estabelecidos no PEC, e logo aí começaram os problemas. Imagina que a economia é um automóvel. Para estar no euro, a economia dos países membros não pode ser um Fiat nem sequer um Mercedes. Tem de ser um bólide de Fórmula 1, entendes? Acontece que poucos estados estavam nessas condições, pelo que começou então uma inacreditável ginástica orçamental, com malabarismos sucessivos para se chegar a números equivalentes a competições de Fórmula 1. A Itália inventou um imposto único só para cumprir os critérios, por exemplo, e a França transferiu para o orçamento do Estado o fundo de pensões da France Telecom. A Espanha e Portugal também fizeram os seus truques
de
prestidigitação
para
fazer
desaparecer
despesa
inconveniente."
"Imagino que os Gregos tenham sido os piores..."
"Os Gregos eram tão maus que nem com batota conseguiram entrar no grupo inicial do euro. O seu padrão de comportamento económico sempre foi o de gastos desmesurados e expansão 316
irracional do estado, seguidos de crise, austeridade e incumprimento de dívida, um historial pouco recomendável para a nova moeda. A Grécia era um Mini Cooper pilotado por um perneta zarolho e queria competir no Grande Prémio da Alemanha com o Ferrari do Michael Schumacher."
"Alonso", corrigiu a espanhola com uma risada. "Fernando Alonso."
"Ou esse. O que importa perceber é que o défice e a dívida grega estavam absolutamente fora de controlo." Calou-se abruptamente, numa pausa dramática. "Mas eis que, ó milagre, a economia grega sofreu uma metamorfose espantosa entre 1999 e 2001: o défice desceu para um por cento!" Ergueu as mãos num gesto teatral. "Aleluia! Aleluia! Eis que se produziu o milagre! A Grécia cumpriu os critérios! O Mini Cooper caquéctico transformou-se de um dia para o outro num Fórmula 1 de ponta!"
Nova gargalhada de Raquel.
"Está-se mesmo a ver..."
"Então não está? A manipulação orçamental em Atenas assumiu proporções bíblicas, mas conseguiu o que se pretendia e a Grécia entrou enfim no euro. Para os países com economias mais fracas, como a Grécia, Portugal, Espanha e Itália, também designadas Club Med, estar no euro significava integrar o clube dos ricos. Encarou-se a moeda única como o culminar de um processo e não como o início de um desafio. Foi um erro trágico. O que os palermas dos governantes destes países não perceberam é que estavam na Fórmula 1
e tinham de competir a um nível elevadíssimo de igual para igual com economias super competitivas como a alemã. Uma vez no euro já não podiam desvalorizar a moeda para enfrentar os Alemães nem imprimir dinheiro sempre que estivessem aflitos. A única maneira de sobreviverem era fabricarem produtos que os outros quisessem a preços que os outros estivessem dispostos a pagar. Mais nada."
317
"Não sei porquê, mas desconfio que não fizemos nada disso..."
"Claro que não. Os países do Club Med julgaram que tinham entrado de borla numa festa de arromba. E a verdade é que, de início, o euro foi mesmo uma festarola. Integrando uma moeda forte que o Banco Central Europeu apoiava com taxas de juro muito baixas, os países do Club Med descobriram que podiam contrair dívida a juros irrisórios para estoirarem o dinheiro como quisessem. Isto foi agravado pelo facto de que, em 2003, as próprias Alemanha e França violaram os limites ao endividamento estabelecidos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento e nada lhes aconteceu. Se não se puniam uns, não se podia punir outros, não é verdade? O tiro de partida para o forrobodó foi dado. uma vez com as mãos agarradas ao filão, a periferia da zona euro desatou a pedir empréstimos. Os Portugueses para comprarem casas e fazerem férias e construírem auto-estradas para todas as povoações com mais de cinco habitantes, os Espanhóis e os Irlandeses para alimentarem as suas gigantescas bolhas do imobiliário, os Gregos para... bem, deve ter sido para fazerem moussaka."
Riram-se os dois.
"Pois, já percebi que foi um fartar vilanagem", observou Raquel.
"Confesso que na altura me admirava com o dinheiro que jorrava por toda a parte. Até parecia que crescia nas árvores e era só estender a mão e apanhá-lo..."
"No fundo, foi exactamente o que aconteceu. Mas convém lembrar que o crédito barato não constituiu um fenómeno exclusivo da zona euro. As baixas taxas de juros e o mercado desregulado dos derivados na América geraram grandes quantidades de dinheiro que alimentavam bolhas do imobiliário nos Estados Unidos e no Reino Unido. O que se passava é que esse dinheiro barato fluiu com grande facilidade para a periferia da zona euro, sendo usado de forma totalmente errada pelos sectores público e privado. Em 318
Portugal, por exemplo, o estado gastou o dinheiro emprestado em obras públicas onerosas e os privados em compra de casa própria ou a adquirir automóveis ou até em férias nas Caraíbas ou no Brasil.
Ninguém usou o dinheiro de forma reprodutiva."
"Pois, foi aquele período em que a toda a hora apareciam anúncios na televisão com os bancos a oferecerem empréstimos a juros baratíssimos para o que quer que fosse..."
"Nem mais", assentiu Tomás. "Tudo isso era dinheiro que os bancos da periferia iam buscar ao estrangeiro, nada era riqueza gerada pelos próprios países. Vários membros do Club Med consumiam todos os anos dez por cento mais do que produziam. Pior ainda, como estavam numa moeda forte e fizeram grandes aumentos salariais por razões eleitoralistas, os bens que produziam tornaram-se demasiado caros e ninguém Os queria comprar. De 1999 a 2009, Portugal aumentou os salários da função pública dezassete por cento, enquanto no mesmo período a Alemanha reduziu os salários reais mais de oito por cento. Nestas condições, os Alemães duplicaram as exportações nos primeiros dez anos do euro, sobretudo para os países da periferia. A zona euro dividiu-se entre credores e gastadores, exportadores e importadores, criando assim um desequilíbrio muito grave."
"Mas uma coisa dessas não era previsível?"
"Claro que era. O problema é que os governantes do Club Med, todos eles com cartão de sócio e quotas pagas no Clube dos Imbecis, resolveram fingir que nada disto estava a acontecer e optaram por viver no mundo da fantasia. Essa fantasia era sustentada pelo facto de que, mais do que económico, o euro sempre foi um projecto político."
"Pois, já contaste. Foi a forma inventada pela França de atar a Alemanha."
"Os economistas que trataram dos pormenores estavam plenamente conscientes dos enormes perigos encerrados pela criação de uma moeda única numa área heterogénea e sem estar submetida a 319
um poder central unificado, mas tinham esperanças de que, no plano económico, o euro constituísse uma espécie de catalisador da mudança nos países do Club Med. Essas esperanças revelaram-se uma ilusão. já Marx o dizia: a economia é a infra-estrutura de uma sociedade. O euro foi uma tentativa de impor um projecto político sem a infra-estrutura económica estar instalada. Não podia resultar."
"Mas resultou, Tomás", argumentou a espanhola. "Basta ver que durante anos correu tudo bem."
"O teste à solidez de uma moeda nunca é feito nos tempos bons, minha cara. A União Monetária Latina, a União Monetária Escandinava, o Cobra e o ECU correram muitíssimo bem nos tempos de prosperidade, mas entraram em colapso quando vieram as adversidades. Da mesma maneira, o euro correu bem enquanto o crédito estava barato e eram tudo rosas. Mas será que a moeda única resistiria a um abalo negativo da economia? O teste estava por fazer."
O olhar verde-turquesa de Raquel iluminou-se.
"A crise financeira de 2008 foi esse teste..."
"Com certeza", confirmou Tomás. "A queda do Lehman Brothers, como já te expliquei, desencadeou uma crise de confiança na banca internacional. Ninguém sabia quem estava na posse das securitizações de hipotecas insolventes e, como medida de precaução, os bancos deixaram de emprestar dinheiro uns aos outros, receando perdê-lo. O
crédito foi cortado e o dinheiro parou de jorrar para a Europa. Os bancos europeus ficaram sem dinheiro e também deixaram de emprestar, começando primeiro por cortar o crédito às economias emergentes do Leste da Europa, como os países bálticos, a Hungria, a Roménia, a Bulgária e a Ucrânia, e depois à periferia da zona euro.
Sem acesso ao dinheiro, ao fim de algum tempo as empresas desses países começaram a falir, atingindo os bancos a que deviam empréstimos e provocando um efeito dominó que se estendeu aos 320
países do centro. A Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e outros países do centro europeu viram-se forçados a salvar os seus bancos da bancarrota, enquanto o FMI teve de ajudar a Hungria, a Islândia, a Bielorrússia, a Ucrânia e a Letónia. Como as empresas fechavam e as pessoas ficavam no desemprego, diminuíram as receitas dos impostos e aumentaram as despesas com subsídios de desemprego."
"Exactamente como em 1929."
"Pois, a contracção da economia mundial em 2008 e 2009 foi igual à contracção ocorrida entre 1929 e 1931." Levantou um dedo.
"Com uma diferença. Em 1929 os estados evitaram inicialmente intervir no processo. Um economista britânico, John Maynard Keynes, estudou a resposta ao colapso de Wall Street e concluiu que, numa época de retracção do mercado, cabe aos estados usarem os seus excedentes orçamentais e despejarem dinheiro na economia para criar procura e reactivar o consumo dos bens produzidos nesses países.
Keynes defendeu, por exemplo, que era melhor pagar a uma pessoa para abrir e fechar buracos do que deixá-la no desemprego, uma vez que, com dinheiro, ela pode gastá-lo a comprar produtos do país e assim reavivar a economia."
"Faz sentido..."
"Pois faz", concordou Tomás. "O que aconteceu foi que, tendo sido educados nas doutrinas de Keynes sobre como reagir a um colapso destes, os diversos governantes europeus e americanos decidiram seguir essa receita e anunciaram pacotes multimilionários para salvar a economia. Parecia uma competição, com cada país a dizer que ia derreter mais dinheiro que o outro. Até a Grécia e Portugal, que não tinham dinheiro para mandar cantar um cego, anunciaram pacotes de milhares de milhões de euros! Chovia dinheiro de todos os lados!"
"Mas isso não resultou..."
"Nem podia resultar! Keynes tinha previsto que os estados 321
usassem o excedente dos tempos bons para reactivar a economia nos tempos maus, mas a verdade é que não havia excedente nenhum.
Como o Club Med e outros países passaram os tempos bons a acumular défices, não sobrara dinheiro para usar em período de crise. Além do mais, Keynes foi muito claro em estabelecer que a injecção em massa de dinheiro público só deveria ocorrer em situações de emergência, mas os governantes passaram a aplicar essa solução a toda a hora. As economias tornaram-se viciadas nessa receita pseudokeynesiana, o que fez com que ela perdesse eficácia. É
um pouco como a droga, estás a ver? Se experimentares um bocadinho de droga, ela faz um efeito tremendo. Mas se continuares a usá-la, ela vai perdendo efeito até acabar por se tornar ineficaz.
Dar mais droga não resulta, desmamar é doloroso. O mesmo se passa com a receita económica pseudokeynesiana. Por fim, e decerto o mais importante, Keynes concebeu as suas soluções para mercados fechados e protegidos, como eram os da sua época, em que, ao dar dinheiro às pessoas, elas iam consumir produtos fabricados nos seus países, reactivando assim a economia doméstica. Mas o mundo mudou e as economias derrubaram as suas protecções e abriram-se.
Isto quer dizer que, quando o estado português ou espanhol pede dinheiro emprestado ao estrangeiro e o entrega aos seus cidadãos para reactivar o consumo, as pessoas vão aos supermercados e põem-se a comprar produtos importados."
"Ah, estou a perceber!", exclamou Raquel. "Isso quer dizer que essa solução keynesiana deixa de financiar a economia do país e passa a financiar a economia estrangeira, não é? Se assim é, o único efeito prático da injecção de dinheiro é o aumento do défice orçamental e do défice externo."
"Isso mesmo! Assim, quando esta crise rebentou, e inspirados em ideias keynesianas mal interpretadas e já desajustadas da nova ordem internacional de mercados abertos, os países decidiram endividar-se 322
ainda mais para enfrentar a emergência da dívida! Era como se uma pessoa corresse para o abismo e se convencesse que se salvaria se corresse ainda mais depressa! Ou seja, os governantes decidiram contrair dívida para combater a dívida, injectando dinheiro que imediatamente saía para o estrangeiro e montando desse modo um verdadeiro esquema piramidal que entraria inevitavelmente em colapso quando os emprestadores deixassem de emprestar!"
"Valha-me Deus!", exclamou Raquel. "E ninguém viu isso?"
O historiador ergueu um dedo.
"Só um país é que chamou a atenção para essa loucura", exclamou.
Piscou o olho. "Não consegues adivinhar qual?"
Raquel riu-se.
"Não me digas que foi a Alemanha!..."
Tomás fez que sim com a cabeça.
"Enquanto os Americanos e os restantes europeus pregavam as virtudes da despesa ilimitada, os Alemães disseram que não participariam nessa corrida insensata e avisaram que ninguém pode viver acima das suas possibilidades durante muito tempo. Na verdade foram eles os primeiros a observar que o dinheiro barato era a causa da crise e que a crise não podia ser resolvida com mais dívida."
"Foi assim que começou a crise das dívidas soberanas?"
"Foi assim, mas não só. Na verdade, a zona euro actuou inicialmente como tampão. Se reparares, os primeiros países a sofrer o impacto da crise não pertenciam à zona euro. As economias da Islândia, dos países bálticos e do Leste europeu sofreram colapsos imediatos e os Islandeses começaram até a pensar se não seria melhor aderirem ao euro para se protegerem."
"Lembro-me disso", confirmou a espanhola. "Então como se desencadeou a crise do euro? Foi com a Grécia, não foi?"
"Tens de ter presente que os investidores perderam muito dinheiro com o colapso financeiro. Quem tinha acções perdeu milhões. Quem 323
possuía obrigações, em alguns casos também ficou a ver navios. Os bancos deixaram de emprestar dinheiro e os investidores, escaldados com as perdas, começaram a rever os seus investimentos. Não tinham sido as agências de rating a dar classificações AAA às securitizações tóxicas? Se as agências erraram na avaliação dessas securitizações, em que outras avaliações teriam errado também? Os investidores estavam muito nervosos e, receando perder dinheiro, puseram-se a estudar os seus investimentos com olho clínico."
"Foi aí que deitaram o olho à Grécia..."
"Na verdade não foram os investidores que chamaram a atenção para a Grécia", corrigiu Tomás. "Foram os próprios Gregos."
"Estás a gozar!..."
"A sério. Quando se começou a tornar claro que o aumento das despesas não estava a resolver coisa nenhuma, o governo conservador da Grécia, que tinha aldrabado contas e aumentado criminosamente a dívida do país, defendeu por fim um congelamento dos salários. Os socialistas disseram que a austeridade não resolvia nada, que só sairiam da crise da dívida a endividar-se ainda mais e outras baleias pseudokeynesianas que dão votos mas não levam a lado nenhum a não ser a uma catástrofe ainda maior. Em Outubro de 2009 a Grécia foi a votos e os eleitores, cansados da crise, elegeram os socialistas e as suas promessas risíveis de que iriam acabar com a austeridade.
Logo que chegaram ao governo, e preparando-se para renegar as promessas que de antemão sabiam ser irrealistas, os socialistas acusaram os seus antecessores de terem aldrabado os números. O
esquema era o habitual. Queriam alegar que tinham prometido acabar com a austeridade mas, ó desgraça!, quando chegaram ao governo descobriram que afinal a situação era muito pior do que haviam imaginado e outras tretas do género, pelo que teriam de manter a austeridade."
"Aqui em Espanha os políticos fazem o mesmo, seja qual for a cor 324
política", observou Raquel. "E em Portugal?"
"A mesma coisa, fica descansada", confirmou ele. "Para provar que a situação era pior do que pensava, o novo governo revelou que o défice orçamental desse ano não seria de quatro por cento, como tinha sido afirmado pelos seus antecessores, mas de doze. O que eles não imaginavam é que essa conversa para tolos estava a ser seguida pelos investidores internacionais, que andavam muito nervosos com a segurança do seu dinheiro. A Grécia tinha afinal doze por cento de défice? Os investidores foram consultar as suas carteiras de investimentos e muitos deles descobriram que haviam adquirido ao longo do tempo imensas obrigações gregas. Seriam seguras? A Grécia iria pagá-las? O nervosismo instalou-se. Não seria melhor desfazerem-se daquelas obrigações enquanto iam a tempo?"
"Ah!", exclamou Raquel de olhos arregalados. "Foi aí que se puseram a vender..."
"Muitos sim, mas a maioria pensou assim: bem, a Grécia está na zona euro, portanto os Alemães garantem a coisa, não há problema. E os investidores ficaram relativamente descansados, embora permanecessem atentos. Acontece que se realizou logo a seguir uma cimeira europeia e no final os jornalistas lançaram umas perguntas aos líderes europeus sobre o défice da Grécia. Esses líderes responderam que aquele problema era exclusivamente grego e chamaram a atenção para a cláusula de no-bailout que constava do Tratado de Maastricht, a qual, na essência, estabelecia que nenhum país da zona euro era obrigado a pagar as dívidas de outro. Ao ouvir isto, os investidores caíram em si. Perceberam nesse momento que a Grécia não tinha dinheiro para pagar o que lhe tinham emprestado e que ninguém assumiria essa dívida. Em pânico, puseram-se de imediato a vender as obrigações da dívida grega."
"E as agências de rating?"
"Essas também estavam escaldadas com os erros que tinham cometido nas avaliações das securitizações tóxicas americanas e 325
perceberam que haviam sobrevalorizado igualmente a segurança das obrigações gregas. Portanto começaram a baixar-lhes a nota."
"Como é que isso se estendeu ao resto da zona euro? Como chegou a nós?"
"Foi o mesmo mecanismo. Vendo que havia uma cláusula de no-bailout no tratado que criara o euro, os investidores puseram-se a inspeccionar as contas de todos os países da moeda única e descobriram enormes vulnerabilidades em algumas delas. O
nervosismo alastrou. Os investidores tinham nas mãos obrigações emitidas por Portugal, Espanha, Irlanda e Itália e começaram a perceber que só recuperariam o dinheiro no Dia de S. Nunca à Tarde.
Portanto toca a vendê-las enquanto podiam! O problema é que ninguém as queria comprar. O mercado das dívidas soberanas paralisou e os países do Club Med, que viviam à custa de dinheiro emprestado, deixaram de ter quem lhes emprestasse."
"Foi um ataque brutal dos mercados, hem?"
"Qual ataque? Isso é conversa de idiotas que tentam tapar o sol com a peneira e sacudir a água do capote das suas próprias responsabilidades, atirando as culpas para uns bodes expiatórios sem rosto visível! É verdade que, devido aos mercados de derivados não regulados, surgiram produtos que permitem ganhar dinheiro a quem aposte que determinado país vai à bancarrota, como é o caso dos credit default swaps. Esse esquema desempenhou decerto um papel, embora isso só fosse possível porque esses países se puseram a jeito. No essencial, contudo, o que se passava é que os investidores, incluindo fundos que geriam pensões de reforma, perceberam de repente que, se emprestassem dinheiro a países que viviam de dívidas, nunca mais iam vê-lo." Indicou a sua interlocutora. "Imagina que eu estava desempregado há dez anos e ia ter contigo com umas calças rotas e pedia-te que me emprestasses vinte mil euros para eu ir passar férias às Caraíbas e dar entrada para a compra de um Mercedes e de 326
uma vivenda com piscina no Mónaco. Se isto fosse uma situação real, emprestavas-me?"
"Claro que não!", riu-se Raquel. "Dizia-te que tivesses juízo e fosses mas é trabalhar!"
"Pois foi isso justamente o que os investidores nos disseram."
Simulou um diálogo. "Querem dinheiro? Primeiro arranjem emprego e um rendimento fixo e depois falamos." Retomou o tom normal. "Com as calças rotas na mão, fomos a correr de mão estendida para a Alemanha a exigir que eles pagassem as nossas dívidas. Os Alemães ficaram especados a olhar para nós. Olhem lá, perguntaram eles, não leram a cláusula de no-bailout no tratado que assinaram? Não foram avisados de que são vocês que pagam as vossas dívidas? Porque não respeitaram os limites de dívida e de défice a que se comprometeram por escrito?"
Raquel arregalou os olhos.
"Madre mia, boas perguntas..."
"Então não eram? Os europeus em geral, e Os do Club Med em particular, estavam habituados à Alemanha do livro de cheques.
Assombrada pelas suas terríveis responsabilidades no matadouro da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto judaico, a Alemanha viveu décadas em expiação. Era preciso uma auto-estrada em Portugal? Os Alemães pagavam. Era preciso financiar as férias dos pobres na Grécia? Os Alemães pagavam. Era preciso um comboio de alta velocidade em Espanha? Os Alemães pagavam. A Alemanha usou o livro de cheques para se redimir do seu passado horroroso e prosseguiu essa política durante décadas e décadas. A França apontava o caminho político, a Alemanha cobria os custos." Cortou o ar com um gesto enfático. "Mas isso mudou."
"É isso que não percebo. Mudou porquê?"
"Porque a geração agora no poder na Alemanha não viveu a Segunda Guerra Mundial e não vê razão para expiar crimes 327
cometidos pelos seus antepassados. E porque, conforme receavam a Grã-Bretanha e a França em 1989, a reunificação alemã restituiu o sentimento de orgulho e a arrogância aos Alemães. A união das duas Alemanhas criou o maior país da Europa ocidental em população e economia, o centro de gravidade de todo o continente. Além disso, a reunificação foi um processo economicamente doloroso e os Alemães sabem bem o que lhes custou pagar para ajudar a antiga Alemanha comunista. Acabados de sair desse pesadelo, que lhes valeu uma crise económica até 2005, vieram agora dizer-lhes que também teriam de pagar para ajudar o Club Med a desenvencilhar-se do sarilho em que se meteu. Como era previsível, não acharam piada à brincadeira." Fez uma voz teatral. "Nós? Pagar? Paguem eles, que estiveram na festa!
Vão trabalhar, preguiçosos! A mama acabou!" Retomou o tom normal. "Ou seja, a Alemanha do livro de cheques já não existe."
"Mas, ó Tomás, achas que precisávamos mesmo da ajuda externa?"
"Então não precisávamos?" O historiador fez um gesto no ar, como se tivesse um objecto rectangular diante dele. "Imagina que a economia de Portugal ou de Espanha é uma caixa multibanco com cem euros no interior. O que se estava a passar é que em cada ano saíam dez euros da caixa. Para os substituir, e uma vez que não podíamos imprimir dinheiro, pedíamos emprestados dez euros aos investidores.
Quando os investidores deixaram de dar dinheiro, ele continuou a sair da caixa mas deixou de entrar. Ficámos com noventa euros no multibanco e no ano seguinte seriam oitenta euros e depois setenta. Faltava dinheiro à economia, percebes? Tirávamos dinheiro da caixa para pagar as importações e não imprimíamos dinheiro para o repor nem ninguém nos emprestava." "Então como se resolveu isso?"
"Para evitar o colapso imediato do euro, e depois de muito resmungarem, os Alemães lá perceberam também que os seus bancos, que tinham emprestado imenso dinheiro aos países periféricos para que entre outras coisas eles comprassem produtos alemães, estavam 328
totalmente encravados e entrariam na falência se houvesse um default imediato e generalizado do Club Med. Por isso acabaram por ceder e autorizaram que o Banco Central Europeu violasse o seu mandato e começasse a comprar dívida do Club Med. Como nenhum investidor nos queria emprestar nem um tostão, porque sabia que nunca mais veria o dinheiro, foi o Banco Central Europeu que se chegou à frente e se pôs a comprar as dívidas que mais ninguém queria comprar. Desde então que os países da periferia vivem à conta do Banco Central Europeu, percebes?" Meteu as mãos nos bolsos e puxou-os vazios para fora. "Se não fosse o BCE, não havia salários, nem pensões, nem subsídios para ninguém."
A revelação deixou Raquel por momentos em silêncio, a meditar no que acabara de ouvir.
"Olha lá, agora como saímos disto?"
Como se estivesse pouco à vontade, Tomás mudou de posição.
Não era claro se o desconforto que o seu rosto reflectia se devia à postura anterior no assento ou à pergunta.
"O que me estás verdadeiramente a perguntar é se os países do Club Med, incluindo Portugal e a Espanha, vão permanecer no euro", observou ele. "E também se o euro irá ou não acabar."
"Sim, no fundo é isso", confirmou a espanhola. "O que vai acontecer?"
O historiador desviou o olhar para a janela e viu prédios a aparecerem nos arredores da linha férrea e a longa faixa azul do mar estender-se ao fundo, pintalgada por pontos brancos que mais não eram do que barcos de recreio e à vela a deslizarem pelas águas mansas do Mediterrâneo.
"Estamos a chegar a Barcelona", constatou. "Vou então revelar-te o futuro do euro..."
"Ah, ainda bem!"
"… mas só mais logo."
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