LIX

O rumorejar baixo da multidão expectante foi subitamente interrompido no momento em que uma porta lateral se abriu e um funcionário judicial em pose formal emergiu dela. Muito hirto, o funcionário percorreu o longo tapete vermelho assente no piso do enorme salão e subiu à plataforma, detendo-se em pose solene para se dirigir aos presentes.

"Todos de pé!", ordenou, a voz a ecoar nas paredes. "O

meritíssimo juiz Axel Seth vai entrar para presidir à sessão."

No instante em que o funcionário se calou e as cadeiras se arrastaram numa cacofonia de movimentos para a multidão se pôr de pé, um homem alto e magro, de toga negra até aos pés, entrou no salão em passo lento, quase marcial, e subiu com pompa ao ponto mais alto da plataforma, dominada pela estátua de mármore de Carrara do papa Leão X a abençoar os fiéis com a mão direita. No centro da plataforma tinham sido colocados uma mesa e um cadeirão e foi ali que a figura de toga se instalou. O juiz Seth era uma celebridade mundial por via das suas responsabilidades à frente da Comissão Europeia, pelo que a sua entrada foi assinalada por uma tempestade de flashes fotográficos que se prolongou por um minuto e só foi interrompida quando o funcionário judicial fez sinal aos carabinieri e estes afastaram os fotógrafos.

Um silêncio repentino abateu-se sobre o Salone dei Cinquecento, a grande sala no Palazzo Vecchio onde funciona a Câmara Municipal de Florença. Com perfeito domínio das artes da gestão dramática do tempo, o juiz Seth permaneceu mudo durante alguns segundos, deixando o olhar severo derramar-se pelos frescos de Vasari, que decoravam as paredes 393


altas para ilustrar os triunfos de Florença sobre Pisa Siena, e pelas várias estátuas brancas alinhadas nas alas, incluindo a estátua do Génio da Vitória, de Miguel Ângelo. O Salone dei Cinquecento era a maior sala de Itália usada pelos poderes civis e tinha sido construído por ordem do próprio Girolamo Savonarola.

O juiz Seth pegou num pequeno martelo e, com um gesto protocolar, bateu com ele na secretária.

"Minhas senhoras e meus senhores", exclamou com ênfase, as palavras protocolares carregadas de um forte sotaque francês. "Declaro aberta esta sessão preliminar do Tribunal Penal Internacional convocada para formular as acusações relativas aos crimes contra a humanidade cometidos na crise financeira e económica internacional!"

Uma salva de palmas, polida e ordeira, percorreu o salão do Palazzo Vecchio. O juiz pousou o martelo e após pigarrear, preparando-se para as palavras introdutórias, apontou para a principal estátua que decorava o salão.

"Parece-me apropriado que nos reunamos em Florença, a cidade onde nasceu a banca moderna, e estejamos neste lugar carregado de história, sob o olhar vigilante da estátua do Génio da Vitória, do grande Miguel Ângelo, uma vez que é justamente com história e vitória que nesta sessão vamos lidar", proclamou. "A história da justiça e a vitória dos oprimidos. Porque, meus caros, vamos sobretudo fazer justiça."

Varreu o salão com um olhar dominador. "O mundo, ninguém o ignora, mergulhou numa crise profunda, uma crise tão grande que só tem comparação com a Grande Depressão dos anos 30 e que, por isso mesmo, já é conhecida por Segunda Grande Depressão. Esta crise, minhas senhoras e meus senhores, tem autores e responsáveis, pessoas que pelos seus actos e omissões nos trouxeram até este ponto. Precisamos de os identificar, de os processar judicialmente e de os sentar em tribunal para responderem pelos seus crimes. O Tribunal Penal Internacional foi criado justamente para julgar crimes contra a humanidade. Que ninguém tenha dúvidas, pois é de crimes contra a humanidade que estamos a falar 394


quando nos referimos às acções que conduziram a esta crise violentíssima! A culpa, garanto, não morrerá solteira!"

Uma salva de palmas espontânea ergueu-se da multidão que se acotovelava no Salone dei Cinquecento. Não havia uma vítima da crise no planeta que não ansiasse por justiça e pela punição daqueles que haviam arrastado o mundo para a situação que nesse momento se vivia. A ovação ao juiz Seth cristalizava o sentimento de revolta e a sede de justiça.

Como um actor a dominar o palco, o juiz levantou a mão e pediu silêncio. A ovação morreu.

"Nesta sessão preliminar serão identificados suspeitos que irão a julgamento em momento oportuno." Indicou uma mulher de meia-idade, magra e de olhar grave, sentada numa secretária diante do público e rodeada por uma equipa. "A procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional, professora Agnès Chalnot, reuniu a sua equipa e vai apresentar a lista de suspeitos que se sentarão no banco dos réus para responder por estes crimes. Ela passou os últimos tempos a coligir dados e a identificar responsáveis, todos eles inocentes até que este tribunal, após devido julgamento, decida em contrário. Caberá agora à procuradora-chefe e à sua equipa a tarefa de formular a acusação." Voltou a levantar a mão na direcção do causídico. "Professora Chalnot, faça o favor."

A procuradora-chefe estava sentada na mesa da acusação, rodeada da sua equipa. Ergueu-se no seu lugar, exibindo uni vestido negro até aos pés, e encarou o juiz.

"Meritíssimo, agradeço a confiança que foi depositada em mim e na minha equipa", começou por dizer. "Como sabe, a minha responsabilidade agora é indiciar suspeitos para que sejam chamados a julgamento neste tribunal. Se não vir inconveniente, entregarei ao meu colega, o procurador Carlo del Ponte, a apresentação da lista de nomes que apurou durante a investigação que até recentemente levou a cabo nos Estados Unidos."

O juiz acedeu com um leve movimento da cabeça. "Com certeza.

395


Tem então a palavra o doutor Carlo dei Ponte."

Vendo-lhe passada a responsabilidade de formular a acusação, o procurador do Tribunal Penal Internacional, um homem de rosto ossudo e sobrancelhas densas, ergueu-se devagar do seu lugar, abotoou o casaco e, de papéis na mão, dirigiu-se ao ponto central da plataforma montada no salão.

"Excelentíssimo e meritíssimo juiz, caros colegas, minhas senhoras e meus senhores", disse, recorrendo à habitual formulação no início das intervenções em processos do género. "Todos sabemos que esta crise começou nos Estados Unidos e foi guiada por uma política irresponsável de desregulação dos mercados financeiros. O resultado de tudo isso foi uma recessão global que se transformou numa grande depressão e que custou o emprego a mais de trinta milhões de pessoas, e ainda cortes salariais e subida de impostos para outras centenas de milhões." Fez um gesto a indicar a sua mesa. "Eu e a minha equipa dirigimos por isso os nossos esforços no sentido de identificar os responsáveis por esse acto hediondo e as motivações que conduziram a ele. Irei apresentar os suspeitos e as provas que os envolvem neste crime cometido contra a humanidade."

O procurador fez um gesto imperial na direcção do funcionário judicial que havia anunciado a entrada do juiz no salão.

"Giuseppe, a tela."

O funcionário pegou num controlo remoto e carregou num botão.

Escutou-se um zumbido eléctrico e uma tela branca começou a descer de uma parede lateral, tapando o Fresco de Vasari a ilustrar a vitória sobre Pisa.

"Pronto, dottore."

O causídico do Tribunal Penal Internacional fez um sinal com a cabeça para um dos seus colaboradores e, de imediato, a fotografia de um homem de meia-idade sorridente, de grandes óculos e testa redonda, encheu a tela gigante do salão.

"Primeiro suspeito de crimes contra a humanidade que conduziram à Segunda Grande Depressão", anunciou, projectando a voz com 396


enorme pompa. "Alan Greenspan, presidente do banco central americano, a Federal Reserve, entre 1987 a 2006. O senhor Greenspan tornou-se notado em 1985, quando os reguladores federais começaram a investigar irregularidades cometidas por um homem chamado Charles Keating na gestão de dinheiros de clientes. Contratado por Keating, Greenspan escreveu aos reguladores a elogiar Keating e a garantir que ele sabia investir o dinheiro dos clientes. Keating foi preso pouco depois. O que aconteceu a Greenspan? Foi promovido pelo presidente Reagan a chefe máximo da Fed."

Um burburinho percorreu o Salone dei Cinquecento. O

procurador Cano del Ponte apontou para o rosto que permanecia na tela.

"Enquanto presidente da Federal Reserve, Alan Greenspan desenvolveu uma política agressiva de desregulação dos mercados. Um dos seus maiores crimes contra a economia mundial foi cometido quando em 1998 o Citicorp e o Travelers se fundiram para criar a maior empresa de serviços financeiros do planeta, o Citigroup. Essa fusão violava directamente a Lei Glass-Steagall, criada em plena Grande Depressão para impedir a formação de grupos financeiros tão grandes que a sua eventual queda pusesse em risco a economia americana. O senhor Greenspan tinha o dever de fazer aplicar a lei e impedir essa fusão. O que fez ele? Assobiou para o ar, deixou que a ilegalidade fosse cometida e, mais grave ainda, foi um dos cúmplices da revogação da Lei Glass-Steagall no ano seguinte."

Novo burburinho no salão.

"O seu outro grande crime contra a humanidade foram os esforços que desenvolveu para impedir a regulação do mercado dos derivados", prosseguiu Del Ponte. "A comissão que regula os mercados de futuros lançou em 1998 uma iniciativa para regular os derivados, uma acção que alarmou tanto o senhor Greenspan que no mesmo dia emitiu uma declaração a condenar a ideia e a recomendar uma lei 397


que mantivesse os derivados sem regulação. Essa lei foi aprovada em 2000." Manteve o dedo voltado para o rosto sorridente do antigo presidente da Fed. "Pior ainda, Alan Greenspan baixou as taxas de juro para valores mínimos, criando assim as condições para a emergência da bolha do imobiliário na América e depois na Europa. Quando se tornou claro que o mercado de hipotecas estava a funcionar mal, o senhor Greenspan recusou-se a regulá-lo, apesar de ter plenos poderes para tal e ser até seu dever fazê-lo. Todos estes actos estão na origem da desordem que conduziu ao colapso de 2008 e à Segunda Grande Depressão."

O procurador voltou-se para os seus colaboradores e eles carregaram num botão. Um novo rosto apareceu na tela, o de um outro homem de idade, de cabelos brancos atrás das orelhas e olhos pequenos, quase rasgados.

"Segundo suspeito de crimes contra a humanidade", enunciou. "O

senador Phil Gramm. No Congresso dos Estados Unidos, o senador Gramm foi o maior defensor da desregulação financeira. Foi ele a figura central da redacção da legislação que aboliu a Lei Glass-Steagall e da lei de 2000 que manteve o mercado dos derivados fora da acção dos reguladores. Depois de deixar o Senado, e se calhar em agradecimento pelos seus lucrativos serviços, o banco de investimentos UBS

contratou-o para seu vice-presidente. A verdade é que, precisamente devido a essa legislação de consequências calamitosas, este antigo senador espalhou miséria pelo planeta inteiro, pelo que merece sentar-se no banco dos réus."

Novo sinal para os colaboradores, nova imagem na tela gigante que ocultava uma parede do salão. Desta feita eram dois rostos, um homem novo de testa alta e outro de cabelo branco abundante.

"Terceiro e quarto suspeitos de crimes contra a humanidade", enunciou. "Larry Summers e Robert Rubin. O senhor Rubin é o antigo GEO do Goldman Sachs e o senhor Summers é um antigo professor de 398


Economia de Harvard. Ambos foram secretários americanos do Tesouro e deram cabo do dito. Presidiram activamente à desregulação dos mercados financeiros. Quando a comissão dos mercados de futuros tentou em 1998 regular os derivados, Larry Summers pegou no telefone e, na presença de treze banqueiros ansiosos por manterem os seus lucros em apostas arriscadas, invectivou a responsável da comissão e obrigou-a a parar com a sua iniciativa de regulação. Juntamente com Greenspan, Rubin e Summers escreveram a famosa declaração que conduziu à lei da desregulação dos derivados. Summers quase insultou um economista que em 2005 alertou para a perversidade do sistema de bónus em vigor na banca. Se calhar graças a estes serviços, Summers foi mais tarde escolhido para presidente de Harvard e contratado por um hedge fund, tendo arrecadado mais de vinte milhões de dólares."

Mais um gesto para a mesa e a imagem na tela mudou de novo.

A imagem que apareceu era de um homem totalmente calvo.

"Quinto suspeito de crimes contra a humanidade", identificou.

"Hank Paulson, antigo CE0 do Goldman Sachs que também se tornou secretário americano do Tesouro. Foi no seu tempo enquanto chefe do Goldman Sachs que este banco de investimento fez mais de três biliões de dólares, três triliões em numeração americana, em lucros com securitizações de hipotecas de pessoas pobres, chamadas subprime e directamente causadoras da crise. O senhor Paulson fez pressão junto dos reguladores para deixarem os bancos endividar-se ainda mais de modo a alimentarem a bolha especulativa. Como prémio, o presidente Bush nomeou-o secretário do Tesouro e foi quando ocupava essas funções que ocorreu o colapso de 2008. Foi ao Congresso pedir setecentos mil milhões de dólares para salvar os bancos de investimento que tinham provocado a crise, assim transferindo para os contribuintes o problema que ele próprio e os seus cúmplices tinham criado. Salvou também a seguradora AIG com 399


dinheiros públicos, mas obrigou-a a pagar mais de sessenta mil milhões de dólares ao Goldman Sachs e impediu-a de processar os bancos de investimento, incluindo o Goldman Sachs, por fraude." Fez um esgar de desdém. "Um verdadeiro artista, este Hank Paulson."

Voltou-se para a mesa e esboçou um novo sinal, que conduziu a mais uma mudança de imagem. Desta feita a tela encheu-se de uma série de símbolos de instituições bancárias.

"As responsabilidades políticas de desregulação dos mercados recaem essencialmente nas pessoas que acabámos de ver", disse. "Mas essas pessoas, e apesar de ocuparem cargos políticos, actuaram a mando de alguém." Indicou os símbolos projectados na tela. "Os bancos, claro. Se os políticos são os corrompidos, os grandes bancos de investimento são os corruptores. Envolvidos em todo o processo de securitização de hipotecas estiveram o Goldman Sachs, o Morgan Stanley, o Bear Sterns, o Lehman Brothers e o Merrill Lynch, além dos grupos financeiros Citigroup e JP Morgan. Ganharam biliões de dólares com este processo e distribuíram pelo planeta inteiro os activos que sabiam ser tóxicos. O Goldman Sachs, por exemplo, e ao mesmo tempo que aconselhava os seus clientes a comprarem esses activos, fazia apostas de que eles iriam falhar. Isso mostra que sabiam o que tinham nas mãos. Tiveram até o descaramento de criar activos que, quanto mais dinheiro fizessem perder aos clientes, mais lucro dariam ao Goldman Sachs."

Fez um sinal para a mesa e a imagem de dois e-mails encheu a tela. Um dizia: "Boy, that Timberwolf tuas one shitty deal." O outro, datado do mês seguinte, dizia: "The top priority is Timberwolf."

"Este primeiro é um e-mail interno do Goldman Sachs a classificar um pacote vendido pelo banco, o Timberwolf, como 'uma grande merda'. O segundo é um e-mail dirigido ao Departamento de Vendas do Goldman Sachs a estabelecer o Timberwolf como a principal prioridade de vendas. Isto é, o Goldman Sachs ordenava aos seus 400


vendedores que convencessem os clientes a comprar um pacote que o próprio Goldman Sachs sabia ser 'uma grande merda'!"

O burburinho voltou a encher o Salone dei Cinquecento.

"Este tipo de episódio era comum na actividade dos bancos de investimento. Graças ao fim da Lei Glass-Steagall, estas instituições bancárias tornaram-se gigantes. Poderemos questionar-nos: como conseguiram

elas

convencer

os

políticos?

Eu

respondo-vos:

corrompendo-os. O sector financeiro tem ao seu serviço três mil lobistas, ou seja, mais de cinco por cada membro do Congresso. Os bancos contribuíram com generosas ofertas às campanhas dos políticos e, em troca, exigiram desregulação. Fizeram isso corrompendo os políticos, mas também uma outra instituição."

Um novo sinal desencadeou uma nova mudança de imagem na tela, agora para os logotipos de várias universidades; reconheciam-se Harvard, Yale, Columbia e outras.

"Os economistas, que também podemos considerar suspeitos de crimes contra a humanidade", disse. "As instituições financeiras, e em particular os bancos de investimento, queriam deitar a mão a lucros fabulosos e crescer a um ponto em que a sua falência não poderia ser permitida sob pena de pôr toda a economia em risco, não é verdade?

O que fizeram elas? Corromperam os políticos para que se mudassem as leis e se desregulassem os mercados. Mas, para que isso fosse possível, era necessário criar um ambiente ideológico adequado. Quem iria fornecer esse ambiente?"

Carlo del Ponte apontou enfaticamente para os logotipos das universidades.

"Os economistas, claro! Foram os economistas que criaram a ideologia da desregulação e venderam ao eleitorado e aos consumidores a ficção de que os mercados se podiam regular a si mesmos e a sua desregulação abriria as comportas a uma riqueza desmesurada." Sorriu num aparte. "Tinham razão, claro. A 401


desregulação

permitiu

o

enriquecimento

desmesurado..,

dos

banqueiros." Retomou o tom neutro. "Na verdade, a ideologia da desregulação foi tão bem sucedida que os economistas americanos conseguiram até exportá-la para a Europa. A Islândia, por exemplo, tinha uma economia perfeitamente saudável, com excedentes orçamentais e uma dívida ridícula. Mas em 2001 teve a infeliz ideia de acreditar nas baleias da desregulação e mudar as suas leis. Num punhado de anos, os seus bancos desregulados acumularam Uma dívida seis vezes superior ao PIB anual do país e a Islândia entrou em colapso."

O procurador fez um gesto para a mesa e os seus colaboradores introduziram uma nova imagem na tela, desta vez de um homem engravatado.

"Gostaria de processar por crimes contra a humanidade uma centena de economistas que nos andaram a vender essa ideologia, mas se tiver de escolher apenas uni, a minha opção vai para este suspeito."

Fitou o rosto do homem engravatado e pôs as mãos na cintura, como se o enfrentasse em duelo. "Glenn Hubbard, director da Columbia Business School e presidente do conselho económico do presidente George W. Bush. Nessa qualidade, concebeu uma série de cortes fiscais, como a redução de impostos sobre dividendos de acções e a eliminação do imposto sobre a propriedade, alterações que quase só ajudaram Os ricos. O professor Hubbard assinou em 2004 um texto muito influente a elogiar os derivados e o processo de securitização de hipotecas, alegando que eles protegiam os bancos e aumentavam a estabilidade financeira."

A afirmação arrancou gargalhadas no salão.

"O professor Hubbard trabalha também a soldo de grupos que fornecem peritos legais para testemunhar em processos a favor de pessoas acusadas de fraude. Por exemplo, dois banqueiros do Bear Stearns foram processados por fraude no esquema da securitização.

402


Aflitos, contrataram um desses grupos de peritos, o The Analysis Group, que pagou cem mil dólares ao professor Hubbard para testemunhar a favor desses banqueiros. Os suspeitos foram ilibados." O procurador apontou para o rosto na tela. "O professor Hubbard é um exemplo de tudo o que está mal na profissão dos economistas. Ao propagarem a ideologia da desregulação, e ao deixarem-se comprar pelos banqueiros, muitos economistas tornaram-se cúmplices activos neste crime contra a humanidade e merecem, por direito próprio, sentar-se no banco dos réus."

Carlo del Ponte voltou-se na direcção do juiz.

"Meritíssimo, muitas outras pessoas deveriam também ser indiciadas neste processo, e talvez venham a sê-lo numa fase posterior, mas não posso terminar sem indiciar os responsáveis máximos, os homens que deixaram que tudo isto acontecesse sob a sua tutela, em alguns casos, senão todos, deixando-se comprar por estes interesses financeiros."

O procurador fez um sinal para a mesa e quatro rostos familiares encheram a tela, desencadeando um bruá emocionado na plateia e uma trovoada de flashes no Salone dei Cinquecento.

"Os presidentes Ronald Reagan, George H. Bush, Bill Clinton e George W. Bush!", proclamou Carlo dei Ponte numa voz alterada, tentando fazer-se ouvir por cima do rumor conturbado da multidão e da tempestade de diques das máquinas fotográficas. "Foram eles que deram cobertura a todo o processo de desregulação. O presidente Truman tinha na sua mesa uma frase que dizia: the buck stops here, ou seja, eu sou o responsável por tudo. Pois estes presidentes são os responsáveis máximos e não os podemos deixar fugir às suas responsabilidades."

O alvoroço prolongou-se no salão e Cano dei Ponte teve de fazer uma pausa para o deixar morrer. Quando isso aconteceu, dirigiu um último sinal à sua mesa e um novo rosto apareceu na tela, 403


desencadeando um tumulto ainda maior.

"O nosso último suspeito de crimes contra a humanidade na Segunda Grande Depressão é este homem", berrou por cima do rebuliço. "Barack Hussein Obama."

A agitação no grande salão do Palazzo Vecchio era total e o juiz Axel Seth viu-se obrigado a intervir, batendo várias vezes com o martelo na mesa e apelando à ordem.

"Ordem!", gritou Seth. "Ordem!" Bateu de novo com o martelo.

"Ordem ou mando evacuar a sala imediatamente! Ordem!"

Quando a algazarra acalmou e voltou a ser apenas um burburinho, o juiz considerou restabelecidas as condições mínimas e fez sinal ao procurador para que prosseguisse.

"Obrigado, meritíssimo", devolveu Cano dei Ponte, voltando-se para o rosto fixado na tela. "O presidente Barack Obama não é minimamente responsável pelo colapso de 2008, uma vez que na altura nem sequer estava em funções. Mas é responsável pela subsequente Segunda Grande Depressão, devido às suas acções e omissões.

Manteve à frente da Fed o sucessor de Alan Greenspan, Ben Bernanke, o homem que deixou a bolha do imobiliário crescer sem nada fazer e que chegou ao cúmulo de afirmar, no auge da bolha, que não havia bolha nenhuma. O senhor Bernanke foi também ao Congresso com Hank Paulson pedir setecentos mil milhões de dólares para salvar os bancos da crise que os próprios bancos haviam provocado, transferindo assim para as contas públicas os erros do sector privado. Como prémio por esta maravilhosa actuação, o presidente Obama manteve-o em funções."

O burburinho no salão reacendeu-se, mas não muito.

"Não contente com isso, o presidente Obama escolheu para seu principal conselheiro económico o nosso amigo Larry Summers, indiciado neste processo por crimes contra a humanidade pelo seu papel activo na lei da desregulação dos derivados. A seguir, o presidente Obama escolheu para secretário do Tesouro o presidente da Fed de Nova Iorque durante a 404


crise, Timothy Geithner, um homem que ajudou o Goldman Sachs a ganhar dinheiro no processo das hipotecas. O presidente Obama escolheu para presidente da Fed de Nova Iorque o senhor William Dudley, economista chefe do Goldman Sachs e co-autor com o professor Hubbard do famoso texto a defender a desregulação dos derivados. O presidente Obama escolheu ainda para presidente da Comissão de Comércio de Futuros o senhor Gary Gensler, antigo executivo do Goldman Sachs que ajudou a proibir a regulação dos derivados."

O procurador do Tribunal Penal Internacional calou-se por um momento,

deixando

estes

factos

assentaram

na

sala.

"Ou seja, Barack Obama nomeou lobos para protegerem os cordeiros", concluiu. "Foi eleito com a promessa de tudo mudar, mas na verdade nada fez. Escolheu para regular o mercado as mesmas pessoas que o tinham desregulado, e os resultados foram os previsíveis. Sob o seu mandato ninguém foi processado nem nenhuma grande investigação foi aberta para apurar responsabilidades. Pior ainda, o presidente Obama não promulgou nenhuma lei a alterar o sistema de bónus da banca, responsável pelo comportamento suicida de muitos bancos. Não propôs nenhuma lei que repusesse a divisão entre banca tradicional e banca de investimentos, prevista na defunta Lei Glass-Steagall. Não fez nenhuma lei a regular o mercado dos derivados e outros produtos financeiros de grande complexidade, responsáveis directos pela crise. Não criou nenhuma lei que obrigasse os grandes bancos a separarem-se em unidades mais pequenas, de modo que não voltem a existir bancos 'demasiado grandes para caírem'. Na verdade, e se formos a ver bem, os bancos até se tornaram maiores durante a crise devido às sucessivas fusões. O JP Morgan cresceu com a compra do Bear Stearns, o Bank of America ficou mais gigantesco após adquirir o Merrill Lynch, o Wells Fargo atingiu dimensões estratosféricas com a aquisição do Citigroup. Ou seja, todos os ingredientes que conduziram ao colapso de 2008 permanecem intactos. Todos." Fez um gesto teatral na direcção da imagem na tela. "O presidente Obama, meritíssimo juiz, ocupa 405


assim um lugar de relevo na nossa lista de suspeitos e é por isso indiciado neste processo."

Após uma curta vénia, Carlo del Ponte dirigiu-se à sua mesa e sentou-se. A sala permaneceu por um longo instante absolutamente muda, até que um clamor imenso se ergueu da plateia e os espectadores, libertando-se do transe em que pareciam mergulhados, ergueram-se e aclamaram o trabalho do procurador.

Constatando que o acusador do Tribunal Penal Internacional havia concluído a indiciação dos suspeitos, e depois de aguardar que a ovação se desvanecesse, o juiz Axel Seth pigarreou.

"Agradeço ao senhor procurador os seus esforços meritórios", começou por dizer. "Antes de concluir esta sessão preliminar e formalizar a indiciação dos suspeitos, gostaria de saber junto da procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional, professora Agnès Chalnot, se dá por encerrada a fase de acusação."

A jurista levantou-se do seu lugar e, com um papel na mão, encarou o juiz.

"Não tinha mais nenhuma acusação prevista, meritíssimo", afirmou.

"Porém, há cerca de duas horas recebi uma moção inesperada com elementos que poderão revelar-se muito pertinentes para este processo. O

meritíssimo vê algum inconveniente na sua inclusão?"

"Depende", respondeu o juiz, cauteloso. "Esses elementos resultam da investigação dos elementos da sua equipa?"

"Sim, meritíssimo. O inquérito foi conduzido por um investigador meu, que infelizmente não está presente, mas a apresentação será feita por outra pessoa."

O juiz Seth esboçou uma expressão de indiferença. "Não vejo inconveniente. Prossiga."

A procuradora-chefe virou-se para trás e passou os olhos pelo público que enchia o Salone dei Cinquecento até se fixar num homem sentado numa das pontas de uma fila de cadeiras, na retaguarda.

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"A acusação chama Tomás Noronha."
























































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