I
O cheiro a mofo e a pó das antiguidades era o suficiente para manter qualquer pessoa de bom senso o mais afastada possível do armazém dos documentos raros, mas o odor bafiento dos papéis a desfazerem-se com os séculos era para Tomás Noronha o melhor dos bálsamos. Com as mãos enlu-vadas, como requerido pelo protocolo quando se manuseiam manuscritos tão antigos, o historiador português pegou no rolo de pergaminho bolorento e estendeu-o sobre o estirador. Aproximou a lâmpada da superfície amarelecida e iluminou as linhas misteriosas que percorriam o velho documento como uma cifra arcana; parecia vagamente árabe mas era algo diferente, infinitamente mais enigmático e difícil de decifrar.
"Que alfabeto é esse, professor?"
A pergunta foi feita pelo homem que lhe entregara o rolo, o responsável pela equipa de arqueólogos que dias antes o chamara a Atenas e o arrastara até àquela cave sombria do Museu Arqueológico.
"Avéstico", respondeu o historiador português, os olhos fascinados a deslizarem pelas palavras que enchiam o rolo. "A língua é a das escrituras do zoroastrismo, usada na Pérsia até ao século VI antes de Cristo."
"Então confirma que esse texto é mesmo dos Avestá?"
Absorto no texto diante dele, Tomás não respondeu; na verdade nem ouviu a pergunta, tão concentrado estava nas palavras que devorava com fascínio incontido. Nunca imaginara vir um dia a estar diante de um manuscrito daqueles. E a sua surpresa ia aumentando à 20
medida que decifrava as palavras ali gravadas havia mais de dois milénios, como se o copista da antiguidade as tivesse escrito especificamente para ele. Parecia incrível que uma descoberta de tal magnitude lhe viesse cair nas mãos daquela maneira.
"Diga-me, professor Markopoulou, onde foi que vocês encontraram isto?"
"Nas ruínas da Biblioteca de Pantainos", devolveu o arqueólogo. "Ali na zona da ágora."
"Isso já vocês me disseram quando me convidaram a vir cá", observou sem desviar a atenção do pergaminho decrépito, quase como se tivesse medo de que ele desaparecesse. "Mas onde exactamente?"
"Na escavação da parte da biblioteca junto à Porta de Atena.
Demos com uma câmara subterrânea totalmente protegida da humidade.
Era aí que os rolos estavam guardados."
Tomás não tirava os olhos do manuscrito; o seu conteúdo era demasiado fascinante, deixara-o hipnotizado. Mesmo que quisesse, não seria capaz de afastar dali o olhar. E quem o poderia censurar? Não era aquilo o sonho de qualquer historiador? Parecia impossível um documento tão antigo ter sobrevivido tanto tempo nas condições de humidade típicas da Europa. Se fosse no Médio Oriente, isso não o surpreenderia; as descobertas de Qumran e de Nag Hammadi constituíam a prova de que os climas secos de Israel e do Egipto eram os mais adequados para a preservação de manuscritos antigos. Mas... a Grécia?
"Este texto é impressionante", murmurou, assombrado.
"Verdadeiramente impressionante!"
O arqueólogo grego que lhe fazia companhia aproximou mais a cabeça para contemplar o rolo aberto no estirador, como se só o facto de o olhar lhe permitisse arrancar do texto os seus segredos.
"São mesmo Os Avestá?", perguntou de novo. "Confirma-se, 21
professor?"
Tomás assentiu com um suave movimento afirmativo da cabeça.
"São os Avestá, são", anuiu. "Mais exactamente o Gathas, o livro dos dezassete hinos que se pensa terem sido escritos pela mão do próprio Zoroastro."
O professor Markopoulou indicou o rolo bafiento cujas palavras misteriosas a luz amarelada da lâmpada acariciava com um hálito quente, resgatando o texto da treva que durante milénios o abrigara da curiosidade humana.
O historiador português aproximou o olhar de uma palavra sem as últimas letras, substituídas por um pequeno buraco cavado pelo tempo e talvez aberto pelas traças, num esforço para lhe extrair o sentido que o furo escondera.
"É um trecho sobre Angra Manyu."
"Quem é esse?"
Pela primeira vez, Tomás desviou a atenção do manuscrito e encarou o seu colega com um sorriso que as sombras da cave tornaram vagamente sinistro, como se a atmosfera daquele lugar lúgubre fosse a mais adequada para o tema que o texto invocava.
"O Diabo."
Ao ouvir o nome maldito, o arqueólogo abriu muito os olhos e recuou instintivamente, quase assustado; parecia recear o próprio manuscrito.
"Perdão?"
O português passou a palma da mão por cima do rolo aberto no estirador e redigido no alfabeto avéstico, como se o quisesse acariciar.
"Este trecho do Gathas descreve-nos o aparecimento de Angra Manyu", revelou, a voz abafada pelo ambiente opressivo da cave escura. "Sabe, o zoroastrismo foi a primeira religião monoteísta. O
judaísmo, o cristianismo e o islão vieram beber ao zoroastrismo, que nasceu na antiga Pérsia. Os textos pré-zoroastrianos falam na vinda 22
de Mitra, que nasceria numa gruta, evento que seria assinalado por uma estrela."
"Isso parece-me familiar..."
"Vejo que é observador. Os evangelistas cristãos inspiraram-se obviamente nesta lenda para falar no nascimento de Jesus numa gruta e na estrela de Belém", explicou. "Depois veio Zoroastro, um ser humano com ligação a Deus e que impôs o monoteísmo. O seu verdadeiro nome seria Zarosht Spitama, igualmente conhecido por Zaratustra, e parece que era um zaotar, ou sacrificador. Ou seja, um mago, uma casta clerical que naquele tempo existia na Pérsia."
"Mago, hem? Também isso me parece familiar."
"Com certeza. O conceito dos três reis magos que seguiram a estrela de Belém é outra evidente influência zoroastriana nos evangelhos cristãos. Acontece que Zoroastro estabeleceu que só existe um Deus, Ahura Mazda, literalmente o Senhor Sábio, o Criador do Céu e da Terra, o juiz supremo, mestre da matéria e do espírito, único, omnipotente e omnisciente. Foi a primeira vez na história da humanidade que uma religião apresentou o conceito inovador de que existe um único Deus.
Toda a doutrina do zoroastrismo se encontra exposta nas suas escrituras sagradas, os Avestá, um conjunto de textos redigidos ao longo de centenas de anos e que inclui os Gathas."
O professor Markopoulou fez um gesto na direcção do rolo que o seu colega português estudava.
"Isso são os Gathas?"
"Um trecho dos Gathas."
"E diz-me que fala sobre o... o Diabo?"
Tomás voltou a aproximar a lâmpada do rolo. Ao deslocar-se, a luz fez mover as sombras e criou um efeito surreal, como se a própria cave estivesse assombrada e os fantasmas deslizassem pelo ar bafiento.
"Os Gathas revelam que Deus, ou Ahura Mazda, é pai de várias entidades, incluindo dois irmãos gémeos a quem deu a liberdade de 23
escolher entre o bem e o mal. Um deles, Spenta Manyu, ou Espírito Santo, preferiu o bem e a vida. O outro, Angra Manyu, também conhecido por Ahriman, optou pelo mal e pela morte. Os discípulos de Ahriman são os dregvant, ou seguidores da mentira, e os druj, enganados pela mentira."
O arqueólogo arregalou os olhos.
"Esse Ahriman é... é..."
"O Diabo, sim", assentiu o historiador com o brilho da lâmpada a cintilar-lhe no olhar verde. "Foi a primeira vez que um texto religioso mencionou a existência do Príncipe das Trevas." Tocou com o indicador no manuscrito. "É justamente este texto." Afastou a cabeça e contemplou as linhas grafadas à mão no rolo como se as admirasse. "Percebe então a sua importância?"
O académico grego engoliu em seco, intimidado com o poder surdo, maligno até, que aquele alfabeto enigmático parecia encerrar.
"Sim."
O historiador português assinalou uma linha do pergaminho com a ponta do indicador, como se quisesse reforçar a ideia.
"Este trecho, meu caro, descreve o nascimento do Diabo."
O silêncio na cave do Museu Arqueológico de Atenas prolongou-
-se por mais de uma hora; apenas se ouvia o lápis de Tomás a rabiscar no bloco de notas e ocasionalmente o velho manuscrito ser desenrolado para desvendar mais texto. Ao lado do seu convidado, a respiração o mais leve possível para não despertar o Senhor dos Infernos evocado por aquele texto milenar, o professor Markopoulou permanecia no mais profundo mutismo enquanto mirava com temor reverente as estranhas letras que a lâmpada iluminava com o seu clarão amarelado.
Ao chegar ao fim do rolo de pergaminho, e depois dos derradeiros apontamentos, o historiador português fechou o bloco de 24
notas e encarou o anfitrião.
"Disse o professor que este manuscrito foi encontrado numa câmara escondida por baixo das ruínas da Biblioteca de Pantainos?"
"Correcto."
"Era o único manuscrito que lá existia ou havia mais?"
O professor Markopoulou hesitou.
"Era o único... acho."
A última palavra fez Tomás semicerrar os olhos.
"Acha?"
O grego ficou momentaneamente atrapalhado.
"Quer dizer, pareceu-me ser a única coisa que havia por ali. Mas admito que... enfim, a câmara era muito sombria e talvez não a tenha explorado com todo o rigor. Pode ser que haja mais qualquer coisa, não digo que não."
Tomás endireitou-se e voltou-se para se livrar de uma dor que aparecera após tanto tempo curvado na mesma posição. Depois fez um gesto com a mão, como se o chamasse.
"Vamos andando", disse. "Ainda há trabalho para fazer."
O arqueólogo olhou-o com admiração.
"Onde quer o senhor ir?"
"Às escavações, claro. Temos de verificar se há lá mais alguma coisa."
Os dois académicos arrumaram o rolo numa estante climatizada da cave que o professor Markopoulou fechou à chave. Depois encaminharam-se para as escadas e dirigiram-se ao piso térreo do museu.
"De que está o professor verdadeiramente à procura?"
"Os Avestá são escrituras muito antigas", explicou Tomás. "Temos alguns dos seus livros, como o Gathas, o Vendidad, o Dinkard, o Shah-Nama, o Zardusht-Nama, o Yasht, o Visparat e outros. Por exemplo, o Vendidad, denominação do livro também intitulado Lei contra os Demónios, mostra o Diabo a incitar Zoroastro a renunciar à sua fé em 25
Deus seis séculos antes de Satanás fazer o mesmo a Jesus no deserto."
"Está a insinuar que o episódio evangélico da tentação de Jesus no deserto é inspirado nos textos zoroastrianos?"
"É evidente", assentiu o historiador. "O zoroastrismo é muito importante para compreender certos mitos do cristianismo e das outras religiões assentes na Bíblia. Foi aqui que se introduziram conceitos fundamentais como o livre arbítrio e a responsabilidade individual, o Deus único, o mito do Salvador da humanidade, a figura do Diabo, a luta entre o bem e o mal, o fim dos tempos, o julgamento final e a ressurreição dos corpos, ideias que iriam influenciar as restantes religiões e moldar o mundo como ele é hoje."
Chegaram ao piso térreo e, após cruzarem uma porta de serviço, entraram nas galerias abertas ao público e passaram pela colecção Karapanos e pelo Jardim das Esculturas em direcção à saída. Havia turistas por toda a parte e falavam-se várias línguas, sobretudo alemão, o que pareceu incomodar o arqueólogo.
"Porra de nazis!", vociferou o professor Markopoulou numa voz subitamente tensa. "Porque não vão para a terra deles?"
A agressividade e o tom xenófobo da observação foram tão inesperados, sobretudo porque saíam totalmente fora do contexto da conversa, que apanharam Tomas de surpresa.
"Porque? Qual é o problema?"
O académico grego indicou com o polegar um magote de turistas que admiravam a máscara de Agamémnon, a figura mortuária de ouro que constituía uma das principais atracções do Museu Arqueológico, enquanto um guia lhes dava explicações em alemão.
"Esses cabrões andam a infernizar-nos a vida", afirmou o arqueólogo com um semblante pesado. Abanou a cabeça como se quisesse desanuviar e respirou fundo. "Enfim, ignoremo-los." Voltou-se para Tomas e procurou concentrar-se, num esforço para retomar o fio da conversa. "Diga-me, professor, o que espera encontrar de especial na câmara onde descobrimos o 26
manuscrito?"
0 incidente desagradou a Tomas, mas optou por não fazer comentários e por se limitar ao assunto que o trouxera a Atenas.
"Os livros perdidos dos Avestá."
"Está a falar de que?"
"Sabe, alguns dos livros das escrituras zoroastrianas não chegaram até nós", explicou. "Quando os muculmanos invadiram a Persia, no século VII, levaram a cabo um genocídio cultural do zoroastrismo. Saquearam templos, queimaram escrituras, massacraram fiéis. 0 cânone dos Avestá é composto por vinte e um livros, mas a maior parte desapareceu. Só conseguimos recuperar um quarto dos textos originais. Por exemplo, sabemos através de documentos em pahlavi que havia escritos apocalípticos que falavam sobre o fim dos dias e uma grande guerra, no final da qual o Céu enviará um grande Deus que destruirá o mal pelo fogo e pela espada."
"Hmm... isso tem tonalidades messiânicas."
"Pois tem. Pensa-se que esse livro perdido terá inspirado várias seitas judaicas, como os essénios e os cristãos, nas suas doutrinas sobre o fim do mundo e o julgamento final."
"0 professor esta à procura desse livro?"
"Desse e de um outro, o décimo terceiro livro dos Avestá.
Chamam-lhe Spend Nask e trata-se na verdade de uma biografia de Zoroastro. Sabemos que o Spend Nask foi escrito, mas desde a invasão muçulmana que nunca mais ninguém lhe pôs os olhos em cima."
Soprou. "Puf, sumiu-se!" Um brilho quase imperceptível cintilou no esgar vivo de Tomas. "Encontrá-lo seria como descobrir a arca da aliança do misticismo, percebe? O Spend Nask encerra solução para os grandes mistérios das três religiões monoteístas, todas elas de certo modo fundadas na vida e na ética de Zoroastro."
Chegaram ao átrio e viram a luz do dia jorrar pela porta principal do museu; estavam quase a sair à rua.
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"E o que o leva a pensar que esses livros estão aqui em Atenas?", quis saber o arqueólogo, intrigado. "Que eu saiba, a Grécia fica longe da Pérsia..."
"Sim, mas muitos autores gregos antigos fizeram abundantes referências a Zoroastro, a quem chamaram o Príncipe dos Magos e o inspirador de Pitágoras. Platão, por exemplo, disse que ele era filho de Oromazdes. Oromazdes é Ahura Mazda, claro, o Deus zoroastriano, o que significa que Zoroastro era filho de Deus. O próprio Plutarco estabeleceu uma ligação divina a Zoroastro."
"Essa do filho de Deus parece mais uma ideia judaica e cristã", constatou o grego. "E então? Isso não responde à minha pergunta..."
Chegaram à porta principal do Museu Arqueológico e Tomás deteve-
-se, como se o que tivesse para dizer fosse tão importante que não podia ser expresso enquanto caminhava.
"No Livro de Arda Viraf existe uma lenda segundo a qual os Avestá estavam guardados na biblioteca dos reis do império aqueménida, pilhada por Alexandre, o Grande", revelou. "É possível que os homens de Alexandre tenham trazido esses livros aqui para Atenas. Se assim foi, as escrituras zoroastrianas poderão ter escapado ao grande auto-de-fé muçulmano. Quem sabe se o manuscrito que o professor encontrou nas escavações da Biblioteca de Pantainos não faz parte do espólio de Alexandre? E, se fizer, que outros manuscritos poderemos lá descobrir?"
"Acha que poderá estar lá o..."
O arqueólogo deixou a frase suspensa, incapaz de se lembrar do título do livro, tão estranho ele lhe parecera, e foi Tomás que completou a frase, mas em voz baixa, como se receasse que bastasse pronunciar o título perdido para afugentar o gigantesco golpe de sorte pelo qual ansiava.
"O Spend Nask."
Cruzaram a porta. Quando chegaram às quatro colunas que decoravam a entrada, porém, voltaram a estacar e ficaram plantados no topo da grande escadaria. Desta vez não pararam para conversar; os dois 28
académicos imobilizaram-se porque ficaram estarrecidos com o que viam acontecer diante deles, à frente do grande jardim de acesso ao museu.
"C'os diabos!", exclamou Tomás, boquiaberto. "O que raio vem a ser isto?"
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