XXV

O final de tarde dessa terça-feira foi passado a fazer exames no hospital. Os hematomas sofridos na Grécia já haviam desaparecido, agora substituídos por feridas e nódoas negras nas costas, nos cotovelos e nas pernas, provocadas pela brutal colisão de motos diante do Cais das Colunas. Tomás ainda pensou que lhe fariam uma TAC para o examinar com mais pormenor, mas os médicos disseram-lhe que esse tipo de exame era demasiado caro e que os apertos orçamentais nos gastos da saúde lhes restringiam as opções. Teriam de se contentar com os raios X.

O exame radiológico, contudo, nada acusou de relevante; os ossos estavam intactos e as lesões eram superficiais. Mesmo assim passou pela enfermaria para desinfectar as feridas, em particular as dos cotovelos, e para lhe porem uns pensos. Depois ainda teve uma consulta com o médico e ao sair uma enfermeira passou-lhe para a mão um papel oficial com as armas da PSP.

"É a convocatória da polícia", indicou ela. "Convém dar um salto à esquadra para prestar declarações e explicar o que aconteceu."

Ao sair do hospital com o envelope do dossiê de Filipe debaixo do braço, Tomás ponderou o que fazer. Ainda admitiu voltar ao seu apartamento, mas depressa pôs a ideia de lado. Nem pensar. Com toda a probabilidade tinha a casa sob vigilância; ir para lá seria meter-

-se direitinho na boca do lobo. Assim sendo, para onde iria? Os hotéis estavam fora de questão, eram demasiado caros; além disso, quem quer que estivesse atrás do famoso DVD poderia ligar para todos os 187


hotéis de Lisboa e arredores a perguntar por um hóspede chamado Tomás Noronha. Não podia correr esse tipo de risco.

Onde diabo iria dormir?

Pousou o olhar na convocatória da PSP, a solicitar que comparecesse na esquadra no dia seguinte para fazer declarações, e teve uma ideia. Porque não ir imediatamente à esquadra? Logo que pensou nisso percebeu que era esse o único curso de acção verdadeiramente razoável. Se estava sob ameaça, quem melhor que a polícia para o proteger? Por outro lado, como não se entendia com a Internet do banco, precisava de ir a uma sucursal ordenar a transferência do dinheiro para o lar da mãe, mas já era tarde e os bancos estavam fechados; teria de deixar isso para a manhã seguinte.

Estudou de novo a convocatória e verificou o endereço da esquadra; era no Largo dos Bombeiros Voluntários. A informação nada lhe dizia; tratava-se de uma praça de que nunca ouvira falar em Almada, de resto uma localidade que, vendo bem as coisas, nem sequer conhecia.

Dirigiu-se por isso à fila de táxis estacionados diante do hospital e interpelou um motorista que aguardava os clientes de janela aberta, o braço pendurado na porta.

"Ó amigo, onde é o Largo dos Bombeiros Voluntários?" O taxista estendeu o braço na direcção oriental.

"É depois da auto-estrada, perto do cais de Cacilhas!", indicou.

"Quer que o leve lá?"

Tomás hesitou; o táxi era sem dúvida a melhor e mais fácil solução, mas... e o preço? Estava no desemprego, teria de ser poupadinho.

"Quanto tempo a pé?"

"Uma boa horita", calculou o motorista, deitando já mão à ignição. "De carro é um instantinho..."

Com um aceno rápido, o historiador ajeitou o envelope que 188


trazia debaixo do braço e virou as costas.

"Obrigado, mas vou a pé."


O graduado de serviço era um rapaz novo, de aspecto aprumadinho e ar atinado; sempre constituía uma variação dos habituais barrigudos da PSP, pensou Tomás ao encostar-se ao balcão.

O graduado preenchia um formulário e levou um bom minuto a levantar a cabeça e a encarar o recém-chegado.

"Faz favor?"

O visitante estendeu-lhe a convocatória que lhe fora entregue à saída do hospital.

"Fui convocado para prestar declarações."

O polícia deitou um olhar zeloso ao papel.

"Diz aqui para aparecer amanhã..."

"Digamos que estou com pressa", sorriu Tomás. "Penso que existe uma ameaça sobre mim e preciso de saber o que pode a PSP fazer para me proteger."

O guarda fitou-o por um instante, talvez a avaliar se o homem diante dele estaria na brincadeira. Voltou a espreitar a convocatória e, na dúvida, desviou o olhar:

"Espere ali."

O lugar indicado era uma salinha de espera. Tomás dirigiu-se a ela e acomodou-se num lugar debaixo da janela, o envelope pousado no regaço, o taser preso no cinto por baixo da camisa para entregar à polícia quando prestasse declarações. Ao longo do espaço estavam espalhadas umas quinze cadeiras onde se sentavam mais três pessoas; duas mulheres de cara lacrimejante e um velho de barba rala branca e vestido de negro. O recém-chegado presumiu que se tratava de vítimas que vinham apresentar queixa ou de familiares de detidos à espera de novidades dos seus entes queridos.

Um televisor no canto da sala tinha o ecrã iluminado e, como 189


passava já das oito da noite, nesse momento davam as notícias. A litania sobre a crise parecia infindável. A Alemanha exigia numa linguagem professoral que todos os países da zona euro, e em particular os incumpridores, "fizessem o trabalho de casa", e uma agência de rating tinha baixado a cotação de Portugal mais um nível abaixo de lixo, conceito que lhe parecia insultuosamente humilhante, e descera também as cotações de Espanha, Itália e Bélgica.

"Que tristeza", murmurou o velho de negro e barba rala branca.

"Ao que nós chegámos..."

Vieram ainda notícias sobre a subida do desemprego para novos valores recorde, preparativos para mais Uma cimeira "decisiva" da União Europeia e novas medidas de austeridade destinadas a cortar a despesa pública. Depois vinha a oposição dizer que "o caminho não é a austeridade" e uma manifestação dos sindicatos para contestar "o ataque brutal que o pacto de agressão com a troika estava a lançar aos direitos dos trabalhadores". Em suma, percebeu Tomás, mais do mesmo. Dia após dia as notícias tornavam-se tão previsíveis que pareciam sempre as mesmas; até as imagens se repetiam.

Ao fim de vinte penosos minutos de crise, as notícias mudaram.

Um incêndio num prédio em Setúbal fizera quatro feridos, um deles em estado grave; a GNR tinha detido uma actriz no desemprego a fazer de correio de droga em Vilar Formoso; um tiroteio nas ruas de Lisboa provocara a morte de duas pessoas, um polícia e...

Tomás arregalou os olhos, atónito.

O Telejornal passava nesse instante a notícia do que acontecera com ele e Filipe nessa mesma tarde. Inclinou-se na cadeira e digeriu com a máxima atenção as informações que jorravam do televisor através da voz monocórdica do apresentador sobre imagens que mostravam os cacilheiros a cruzarem o Tejo.

" ... investigação foi entretanto entregue à unidade de combate ao banditismo armado da Polícia Judiciária, que há minutos divulgou uma 190


fotografia do principal suspeito." De repente o ecrã foi preenchido com uma imagem dele próprio. "Trata-se do historiador Tomás Noronha, que se encontra a monte e foi avistado por testemunhas a executar as vítimas com tiros à queima-roupa."

A estupefacção de Tomás não conhecia nesse instante limites.

Principal suspeito?! Avistado por testemunhas a executar as vítimas?!

Disparara tiros à queima-roupa?! Como? Onde? Quem? A perplexidade deixou-o por momentos paralisado, as interrogações a cruzarem-se na sua cabeça num caos sem igual; estava incapaz até de crer no que via e ouvia. Devia haver ali algum engano, um equívoco, uma troca de...

Não.

Fez um esforço para se acalmar e pensar a direito. O que ali estava a acontecer não podia ser normal, considerou. Como era possível que tivesse passado tão depressa de perseguido por um homicida a principal suspeito? Espreitou a convocatória da PSP que lhe fora entregue menos de uma hora antes no hospital. Se naquela altura não passava ainda de uma mera testemunha convocada para prestar declarações na esquadra, o que tinha acontecido em tão pouco tempo para a judiciária mudar o ângulo da investigação e fazer dele o homicida?

Lembrou-se do medo que surpreendera no olhar de Filipe e das suas palavras a alertá-lo repetidamente para o poder daqueles que os perseguiam. Sentiu nas mãos o peso do envelope que herdara do amigo e o taser escondido à cintura e percebeu que não estava metido num simples caso de polícia. O perseguidor dessa tarde abatera o guarda da PSP com um tiro na cabeça em plena rua e à luz do dia, recordou. Só fazia isso quem estivesse totalmente louco.

Ou quem se soubesse impune.

O seu pensamento voltou a Filipe, em particular à insistência com que o amigo usara os seus últimos instantes de vida para lhe suplicar que fugisse de imediato e o avisara de que "eles" viriam aí e 191


o iriam perseguir. O companheiro do liceu batera muito nessa tecla e Tomás começava a reflectir no caso com outro cuidado. Na altura não prestara atenção, parecia-lhe alarmismo injustificado, se calhar um complexo de perseguição, decerto não passariam de sintomas de paranóia, mas agora...

"Senhor guarda!", gritou uma das mulheres sentadas com ele na sala de espera. "Senhor guarda, ele está aqui!"

A mente de Tomás voltou ao sítio onde se encontrava e, com ar surpreendido, viu a mulher apontar-lhe o dedo denunciador.

"É mesmo ele!", exclamou por sua vez o velho de barba rala branca e roupa negra. "É ele o... o bandido!"

Caindo em si, o historiador apercebeu-se de que toda a gente naquela sala de espera tinha visto a mesma notícia no Telejornal e a fotografia que a judiciária acabara de distribuir, reconhecendo nela o rosto do homem que se sentava debaixo da janela.

"O bandido... o assassino está aqui!"

O graduado olhava-os por detrás do balcão com uma expressão de incompreensão no rosto, sem perceber exactamente a origem de toda aquela excitação, e Tomás tomou consciência de que dispunha apenas de alguns breves segundos para tomar uma decisão. Ficaria ali para esclarecer todo aquele equívoco? A tentação era grande, seria decerto a solução mais simples, mas concluiu que era justamente o que os seus perseguidores queriam. Tudo aquilo não passava de um estratagema para o localizarem e para lhe deitarem a mão.

Levantou-se e largou a correr.








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