XXXVI
Apeteceu-lhes aquecer a digestão com uns goles de chá e interromperam a conversa para Raquel ir à cozinha ferver água. A anfitriã tinha porém tanta curiosidade de saber como em nove anos os bancos haviam levado a economia ao caos que deixou a chaleira a aquecer a água e apressou-se a voltar à sala para retomar o fio da conversa.
"Então diga lá", lançou ao seu convidado. "O que aconteceu depois de eles terem desregulado tudo em 1999?"
Sentindo-se cansado e até algo saturado, Tomás fez um estalido impaciente com a língua.
"Oh, isso conto-lhe depois!", exclamou. "Agora deixe-me descontrair um pouco, pode ser?"
Raquel desferiu uma palmada na mesa.
"Não! Conte-me agora!"
"Para quê a pressa? Deixe-me descansar."
Mas a espanhola não era mulher para se deixar vencer com tanta facilidade. Mudando de táctica com agilidade desconcertante, inclinou-se sobre a mesa e, sempre de olhos cravados no interlocutor, esboçou um sorriso que lhe deu um ar perturbadoramente insinuante.
"Sabe que os homens inteligentes me atraem?"
Disse-o com uma voz infinitamente doce e o historiador, que esticava as 242
pernas por baixo da mesa num movimento lânguido, endireitou-se de repente, espicaçado pela observação.
"Deveras?"
"Ah, sim. Muito." Voltou a acomodar-se na cadeira, cheia de confiança na eficácia dos seus poderes de sedução. "Estou certa de que não me desapontará..."
Tomás pigarreou. Os argumentos da espanhola poderiam parecer um tanto básicos, mas a verdade é que produziam o seu efeito.
"Estava então eu a falar na Lei Glass-Steagall, não é verdade?", perguntou, talvez excessivamente ansioso por se mostrar brilhante.
"A primeira grande consequência da eliminação dessa lei em 1999 foi o crescimento desmesurado de certos bancos. Em 1995, os cinco maiores bancos . americanos controlavam oito por cento do mercado, fatia que poucos anos depois do fim formal da Lei Glass-Steagall ascendeu a trinta por cento. Essa evolução foi muito grave e -
deveria ter obrigado a uma intervenção do Fed. Mas, como os reguladores eram ideologicamente contra a regulação e contra os princípios da Lei Glass-Steagall, cruzaram os braços e nada fizeram."
"Porque diz que o crescimento dos maiores bancos foi grave?", estranhou Raquel. "Qual a relevância disso?"
"Um dos fundamentos do capitalismo é a livre concorrência", lembrou Tomás. "Para que ela exista, o mercado tem de ser cuidadosamente regulado. Quando deixa de o ser, como foi o caso, o sistema capitalista atrofia e criam--se os oligopólios e os monopólios, que são muito nocivos à concorrência. Foi o que sucedeu. A primeira grande fusão ocorreu entre o Citicorp e o Travelers para formar em 1998 a maior companhia de serviços financeiros do mundo, o Citigroup, uma fusão ilegal porque violava a Lei Glass-Steagall. Foi aliás essa fusão que precipitou o fim da lei no ano seguinte. Os grandes bancos começaram então a abocanhar outros e a engordar mais e mais, engordaram tanto que de repente 243
se tornaram demasiado grandes. Ficaram de tal modo gigantescos que o seu eventual colapso se tornou impensável porque arrastaria toda a economia com eles, percebe?"
"Criou-se um risco sistémico, como em 1929."
"Isso mesmo. Com uma agravante: como eles próprios sabiam que se tinham tornado demasiado grandes para que se aceitasse a sua falência, começaram a sentir-se impunes. Isto é, podiam correr todos os riscos imagináveis para ganhar dinheiro. Se corresse bem, ficavam com os lucros só para eles. Se corresse mal, o estado interviria com o dinheiro dos contribuintes para os salvar e impedir o colapso geral da economia. Está a ver o esquema? Arriscar passou a compensar porque os grandes bancos ficariam com os prémios e jamais com os prejuízos, uma vez que o estado nunca os deixaria cair."
A espanhola assentiu com um movimento pendular da cabeça.
"Hmm... estou a entender", murmurou. "Mas que riscos correram eles exactamente?"
O historiador esfregou as mãos com indisfarçável entusiasmo, preparando-se para entrar no filet mignon.
"Ah, isto agora é que se torna interessante!", exclamou. "Em primeiro lugar, desenvolveram um esquema de bónus em que recebiam uma fortuna por desempenhos anuais e até trimestrais. Se, por exemplo, tomassem uma medida que desse muito lucro imediato, embora fosse ruinosa a prazo, recebiam o bónus no final do ano ou mesmo do trimestre. Quando os efeitos negativos da decisão viessem, ao fim de alguns anos, já ninguém lhes podia tirar os seus ricos bó-
nus." Piscou o olho. "Está a ver a marosca?"
"Estou, estou."
"Isso escancarou os portões da ganância desenfreada, como é evidente", disse. "Tradicionalmente os bancos comerciais faziam lucro a emprestar o dinheiro dos depósitos a um Juro maior do que aquele que pagavam aos depositantes. Mas com os novos poderes 244
que lhes foram entregues pela desregulação descobriram novas maneiras de fazer dinheiro. Uma delas foram as comissões. O cliente faz uma transferência de dinheiro para a conta da avó? Paga uma comissão. O cliente compra à namorada um perfume com cartão de crédito? Paga uma comissão. Tudo paga comissão!"
"É um horror, eu própria me queixo disso", observou a espanhola. "O meu banco cobra-me pela mínima coisa que faça..."
"Na altura em que a Lei Glass-Steagall foi finalmente eliminada, em 1999, estava em curso a bolha dot com, em que toda a gente investia à maluca em empresas da internet", disse Tomás. "Acontece que essa bolha rebentou logo no ano seguinte, precipitando uma recessão nos Estados Unidos. O que fez o Fed? Baixou as taxas de juro, num esforço para encorajar o crescimento económico. O
dinheiro ficou muito barato e para onde começou a fluir? Para o mercado imobiliário, até porque o presidente Bush tinha acabado de isentar de impostos as casas até meio milhão de dólares. As propriedades são produtos caros e, como as comissões são muitas vezes cobradas em percentagens, os bancos viram aqui uma mina de ouro. Portanto, toca a emprestar dinheiro para as pessoas comprarem casa!"
O olhar de Raquel desviou-se quase instintivamente para Os prédios abandonados de Seseria, visíveis da janela da sala.
"Foi assim que começou a bolha do imobiliário?"
"Nem mais", confirmou o seu interlocutor. "Para alimentar essa bolha, os bancos contaram com as taxas de juro muito baixas e com uma série de inovações financeiras que pouca gente compreendia.
Os derivados, por exemplo, produtos novos que uma lei de 2000
garantiu não poderem ser regulados."
A espanhola esboçou um esgar de incompreensão. "Deriva... quê?
O que é isso?"
"Nem os próprios banqueiros percebem muito bem", riu-se Tomás.
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"Como o próprio nome indica, os derivados derivam o seu valor de qualquer produto. Por exemplo, imaginemos que eu aposto que o valor das acções da vossa companhia aérea, a Ibéria, daqui a um ano está mais alto. Essa aposta é um derivado, está a perceber? No fundo trata-se de um mercado de apostas. Fazem-se apostas sobre o valor futuro das acções das empresas, do estado do tempo, do preço do petróleo, do ouro, do milho... do que quer que seja. Isso são derivados. A aposta de que o valor da aposta de que as acções da Ibéria valem mais daqui a um ano é um derivado baseado num derivado."
Raquel revirou os olhos verdes luminosos.
"Santa Madre de Dios, as coisas que eles inventam!"
"Um verdadeiro casino, como vê. O mercado dos derivados passou a valer cinquenta biliões de dólares na numeração latina, cinquenta triliões na numeração anglo-saxónica. Nada era regulado e, isto é que é importante, os bancos receberam luz verde para investir neste jogo de sorte e azar o dinheiro que os seus depositantes lhes confiaram."
A verdadeira dimensão do problema começou a assentar na mente da agente da Interpol.
"Joder!"
"Está a ver a coisa, não está? Acontece que o mercado imobiliário tinha, e tem, os seus derivados. Trata-se de um processo chamado securitização."
"É outro sistema de apostas?"
"É uma forma inovadora de contrair dívida. Imagine que a lbéria precisa de dinheiro, mas tem Uma situação financeira tão duvidosa que os bancos só lhe emprestam a um juro muito alto. Nesse caso, a lbéria pode emitir um papel comercial com promessa de devolver o dinheiro com juros a quem lhe emprestar dinheiro."
"Isso não são obrigações?"
"São", confirmou o historiador. "O problema é que, se a situação da Ibéria for má, as agências de rating darão a essas obrigações uma má 246
nota, o que as torna menos apelativas para o mercado. Quem quer emprestar dinheiro a uma empresa que pode falir amanhã? Só uni doido.
Perante este problema, o que pode a Ibéria fazer? Pode recorrer à securitização. Um grupo de investidores compra à Ibéria as suas obrigações e corta-as em dez tranches, como uma salsicha separada em dez partes. Depois pega em obrigações com boa nota das agências, por exemplo a TAP, e corta-as também em dez tranches."
"Ay, coño!", protestou Raquel com sarcasmo. "Está-se mesmo a ver que, na boca de um português, a empresa espanhola é a má e a portuguesa a boa..."
Tomás reprimiu um sorriso.
"A Ibéria está muito bem e apenas estou a inventar estas notas para facilitar a compreensão do mecanismo", disse, preocupado com não ferir susceptibilidades. "A seguir os investidores pegam numa fatia das obrigações da TAP e colam-na a Uma fatia das obrigações da Ibéria e depois a uma fatia das obrigações da Alitalia e a outra das obrigações da British Airways. O novo produto é uma mistura de tranches de obrigações de diferentes companhias aéreas, umas bem cotadas pelas agências outras mal cotadas." Abriu os braços. "É isto a securitização."
"Continuo a dizer que não gostei de o ver a desconsiderar a nossa companhia aérea", resmungou a espanhola, fingindo-se ofendida.
"Mas... pronto, desta vez passa."
"Podem-se securitizar obrigações de dívidas do ramo automóvel, de cartões de crédito, de empresas... enfim, de tudo o que for dívida."
"Mas qual é a vantagem desse sistema?"
"Se a empresa estiver mal cotada, através da securitização consegue ligar-se a obrigações de outras empresas bem cotadas e assim obter uma boa cotação. Com boa cotação não terá de pagar juros tão elevados para que lhe emprestem dinheiro."
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"Ah, entendi."
"Acontece que se começaram a securitizar as hipotecas das pessoas que compravam casa." Bateu com a ponta do indicador na mesa. "E foi aqui, minha cara, que nasceu o problema que iria conduzir ao colapso do sistema financeiro internacional."
Um silvo prolongado cortou o ar. Voltaram-se ambos para a fonte do som e constataram que vinha da cozinha.
"A chaleira!", exclamou Raquel, dando um salto e correndo na direcção da cozinha. "A água já ferveu!" Da porta da cozinha ergueu a mão para o seu convidado, pedindo-lhe que aguardasse. "Eu já venho, está bem? É só um instante."
A espanhola desapareceu para lá da porta da cozinha e o olhar de Tomás desviou-se para os prédios abandonados do outro lado da rua.
Enquanto mirava os apartamentos vazios por detrás dos vidros sujos, o historiador reflectiu nos estranhos tempos que vivia, em que os acontecimentos no outro lado do Atlântico se propagavam quase à velocidade da luz e mudavam para sempre a vida neste lado. As alterações tinham sido tão grandes que ele próprio acabara por perder a coisa que mais o realizava na vida. O seu trabalho.
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