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O Mercedes dos vidros fumados contornou devagar a rotunda e imobilizou-se junto ao passeio, ao lado da cabina telefónica de onde Tomás ligara nessa manhã para Raquel e para o lar onde a mãe vivia. O
historiador e a agente da Interpol apertavam-se um contra o outro no assento traseiro, em silêncio e sob a vigilância apertada do assaltante corpulento.
Logo que desligou o motor, Decarabia voltou-se para trás e mirou as duas presas.
"Vamos sair agora", anunciou. "Teremos as armas escondidas no bolso dos casacos, prontas para entrarem em acção em caso de necessidade. Não quero nem um gesto em falso, entenderam?"
Apontou para Raquel, mas manteve os olhos fixos no português. "Se alguém do banco se aperceber de alguma anomalia, aqui a nossa beldade leva logo com um balázio nos miolos." Desviou o indicador para Tomás. "E, se as coisas se descontrolarem, tu vais a seguir. Não ficará ninguém para contar a história. Está claro?"
O historiador susteve o seu olhar.
"Se nos abaterem, não poderão aceder ao DVD..."
Decarabia encolheu os ombros com indiferença.
"Que importa isso?", perguntou, alardeando total des-267
preocupação. "A nossa prioridade é neutralizar o DVD. O ideal será ficarmos com ele, claro. Mas se esse material desaparecer por nós tudo bem." Levantou o dedo, à laia de aviso. "Portanto juizinho, hem? Não quero cá brincadeiras."
Depois de deixar por momentos a mensagem assentar nos dois prisioneiros, abriu a porta do condutor e apeou-se. Acto contínuo, as portas traseiras do Mercedes destrancaram-se com um claque simultâneo e os passageiros saíram para a rua. Fazia calor e o sol batia forte, escaldando as faces desprotegidas. Tomás pôs a palma da mão sobre a testa em pala e centrou o olhar na sucursal do banco onde entrara nessa manhã.
"É ali."
Decarabia fez-lhe sinal de que o acompanhasse à frente enquanto os seus dois homens enquadravam Raquel imediatamente atrás. Cruzaram o passeio em grupo e, diante do banco, as portas automáticas abriram-se com um som de aspiração. Entraram na sucursal e Tomás, sempre com toda a trupe no encalço, dirigiu-se directamente ao balcão.
"Olá", disse, cumprimentando a funcionária do guichet. "Queria aceder ao meu cofre, por favor."
"Tem identificação?"
"Está aqui."
O português entregou à funcionária do banco o bilhete de identidade e, preocupado com manter as aparências perante os seus captores, fez sinal a Raquel de que fizesse o mesmo. Na posse de ambas as identificações, a bancária inseriu os dois nomes no computador e aguardou. Ao ver o resultado negativo na busca do nome de Raquel Maria de la Concha González, esboçou um esgar de incompreensão.
"A señorita não está..."
"Ela veio comigo", apressou-se Tomás a dizer, antes que a bancária estragasse tudo. "Bem vê, o cofre tem os nossos pertences."
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A funcionária encolheu os ombros; não era anormal nem irregular, embora não fosse usual uma pessoa aceder ao seu cofre na companhia de amigos. Identificou no sistema o nome de Tomás Noronha e certificou-se de que a fotografia era da pessoa encostada ao balcão.
Deitou uma última espreitadela ao ecrã do computador e encarou de novo o cliente.
"A conta foi aberta esta manhã, não foi?", perguntou em jeito retórico, como se falasse consigo mesma e não esperasse resposta. "Tem a chave do cofre?"
O historiador tirou-a do bolso e mostrou-a.
"Está aqui."
A bancária ergueu-se por momentos de modo a ver por cima do balcão, varreu o átrio com os olhos e, lobrigando o segurança que vigiava o acesso ao banco, fez-lhe sinal a indicar o cliente.
"Estebán, acompanha os senhores ao cofre, por favor."
O segurança indicou o caminho e viu o grupo de cinco pessoas seguir-lhe os passos; franziu o sobrolho, não era comum tanta gente ir visitar um cofre, mas nada o interditava e por isso ficou calado e seguiu em frente. Meteram pelo corredor e chegaram a uma porta metálica, que o homem do banco abriu ao inserir um código num teclado digital pregado à parede.
Entraram na sala dos cofres e Tomás, instado por Decarabia, voltou-se para o segurança.
"Muchas gracias", agradeceu. "Eu sei qual é o nosso cofre. Pode aguardar lá fora, por favor."
O segurança deu meia volta e regressou para junto da porta da sala dos cofres. Decarabia fez com a cabeça sinal ao seu acompanhante mais ágil, indicando-lhe o guarda do banco.
"Fica com ele", sussurrou. "Neutraliza-o em caso de necessidade."
O operacional foi para a porta, deixando os seus dois 269
companheiros com os dois reféns. Os quatro ficaram todos muito juntos diante do cofre. Pareciam uma matilha bizarra, e Tomás, sentindo-se apertado, voltou-se para Decarabia.
"Dêem-me espaço!", protestou. "Assim não me consigo mexer."
"Não quero que te mexas", cortou o seu captor com um sorriso insidioso. "Abre o cofre e cala-te."
Com um trejeito de desagrado, o português voltou-se para o cofre e introduziu a chave. A porta destrancou-se com um dique suave e, como a caverna de Ali Babá, desvendou o seu segredo. Os olhares inquisitivos dos assaltantes precipitaram-se para o interior obscurecido, tentando destrinçar o que ele escondia. Apenas se via um sobrescrito volumoso pousado na base do cofre, mas na sombra era difícil determinar se não haveria ali mais alguma coisa.
"É aquele o envelope", disse Tomás. Abriu no rosto um sorriso convidativo. "Quer retirá-lo?"
Decarabia fitou-o nos olhos, desconfiado; o sorriso da sua presa não lhe inspirou confiança. Haveria ali alguma armadilha?
"Tira-o tu."
Era o que o português queria ouvir.
Inseriu a mão no interior do cofre e sentiu os dedos deslizarem sobre a superfície lisa do envelope. Meteu-os dentro do sobrescrito, como se a sua mão fosse uma aranha que explorava o desconhecido, e agarrou o objecto duro e frio que se ocultava no interior.
O taser.
Encheu a mão com ele, acomodando-o na palma e pôs o indicador no gatilho. Fechou os olhos e respirou fundo, preparando-se mentalmente para o momento decisivo que aí vinha. Contou em silêncio até três e, com um gesto fulminante, retirou-o de repente do cofre e apontou-o ao peito de Decarabia.
Carregou no gatilho.
Soou um estalido e o captor gritou de dor. Apercebendo-se que 270
algo de terrivelmente errado se passava, o assaltante corpulento retirou a Glock que escondia no bolso, mas não teve tempo de actuar porque Tomás já tinha voltado para ele o taser e disparado uma nova descarga eléctrica.
Alertados pelos berros junto ao cofre, os dois homens que aguardavam à porta entraram na sala, o assaltante já com a pistola na mão, o segurança sem perceber o que sucedia.
"Qué pasa?", perguntou, estupefacto. "Que está a acontecer?"
Nesse momento Raquel mostrou o que valia o seu treino. Vendo os dois captores a contorcerem-se de dores no chão, a agente da Interpol precipitou-se sobre o homem mais corpulento e arrancou-lhe a Glock da mão.
Soou um tiro.
O corpo do segurança tombou no chão, a cabeça desfeita como uma melancia em pedaços; o assaltante abatera-o para não interferir no que tinha de fazer. Afastado o empecilho, saltou para o corredor dos cofres de modo a ficar em linha com os alvos, os braços estendidos para a frente e as duas mãos a segurarem a pistola, um dedo colado ao gatilho preparado para abrir fogo.
Novo tiro.
Desta vez foi Raquel quem disparou. Atingido no abdómen, o assaltante que viera da porta dobrou-se e caiu para a frente.
Apercebendo-se de que Decarabia já começava a recuperar do electrochoque, Tomás voltou a premir o gatilho do taser na direcção dele, mas a arma desta vez não funcionou; estava descarregada.
Tomando consciência de que a janela de oportunidade se fechava rapidamente, agarrou a espanhola pelo braço e puxou-a.
"Depressa!", gritou, a urgência a dominar-lhe a voz. "Vamos sair daqui antes que eles se recomponham!"
Raquel ainda hesitou, no fim de contas tinha uma Glock na mão, mas percebeu que os seus inimigos lutariam até à morte. Baleara 271
um deles, mas estaria disposta a matar os outros dois enquanto ainda se encontravam indefesos? E quando recuperassem, daí a três ou quatro segundos, deixar-se-iam eles prender? Se não se deixassem, teria coragem de os abater também? A resposta às três perguntas, sabia, era negativa.
"Vamos!", insistiu Tomás em desespero. "Temos de fugir!"
Largaram em corrida, saíram da sala dos cofres e percorreram o corredor até ao átrio. O alarme começou a soar nesse momento no banco, no fim de contas haviam acabado de soar dois tiros no interior do edifício, mas os fugitivos lograram escapar para a rua antes que as portas exteriores se trancassem.
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