XLIII

"Qual é então o seu plano?"

A pergunta de Raquel foi feita com cepticismo, como se lhe parecesse impossível que uma situação tão complexa como aquela pudesse ser resolvida por um simples historiador. Não era ela afinal a a

polícia profissional?

Sem perceber a descrença da agente da Interpol, Tomás deu meia volta e regressou ao corredor. Pegou no envelope, que pousara sobre o estirador ao entrar no apartamento, e voltou à sala. A espanhola ficara sentada no sofá e olhava-o sem entender nada. O português ergueu o sobrescrito e mostrou uma das faces à sua interlocutora.

"Está a ver isto?"




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Raquel inclinou-se na direcção do envelope e estudou as quatro linhas rabiscadas de um dos lados.

"Que raio de salganhada é esta?"

O historiador voltou o criptograma para si e deitou-lhe um olhar analítico, contemplando as múltiplas possibilidades que as suas linhas encerravam.

"É o enigma que o Filipe me deixou", explicou. "Presumo que contenha a referência ao paradeiro do famoso DVD que toda a gente procura. Se o decifrarmos, chegaremos a ele."

Raquel pegou no sobrescrito e estudou a charada; parecia-lhe demasiado confusa e sabia que seria incapaz de quebrar o segredo.

"Não serve para nada", concluiu com altivez, devolvendo-lhe o envelope. "Isto não vai lá com segredinhos de adolescentes..."

A forma sumária e categórica como a espanhola despachou o assunto deixou Tomás desconcertado, ou até acabrunhado.

Segredinhos de adolescentes? Era assim que ela via a coisa? De certa forma tinha razão, a ideia de Filipe para aquele criptograma nascera das brincadeiras de ambos nos tempos do liceu, e em particular de quando queriam preencher o tempo livre nas férias.

Mas, que diabo, se a charada contivesse a solução para o problema, por que razão não deveriam seguir a pista até ao fim?

"Se este caminho não lhe agrada", perguntou Tomás, "o que sugere então que façamos?"

O olhar luminoso de Raquel estava nesse instante fixo no infinito, como se a sua mente se encontrasse longe dali, ocupada com coisas bem mais importantes. De repente estremeceu, como se voltasse à sala ou ao presente.

"A Interpol vai ajudar-nos, claro."

O ecrã iluminou-se como se ganhasse vida e o computador emitiu um zumbido ao começar a funcionar. Raquel acabara de se dirigir ao quarto 283


pequeno com uma escrivaninha que a sua colega ausente transformara em escritório e ligara o computador. A Internet estava acessível e a primeira página a aparecer-lhe foi o Google. Subiu à linha dos endereços, digitou a morada electrónica da Interpol e, instantes depois, conectou-se ao site da polícia internacional. Entrou na página dos funcionários, digitou a sua password e, para sua enorme surpresa, viu o acesso negado. Sem que nada fizesse, foi automaticamente reconduzida para uma página com Uma nota do seu chefe a mandar-lhe uma mensagem.

"Querem que entre em contacto com eles", disse, lendo a mensagem.

"O mais depressa possível."

"Que quer isso dizer?"

A espanhola fechou o rosto e não respondeu; ter o acesso vedado à página dos funcionários da sua própria polícia deixou-a inquieta. Após reflectir durante um momento mudou-se para o site da Guardia Civil e dirigiu-se directamente para a página da actividade das últimas horas. A primeira coisa que viu quando a página ficou disponível foi a sua própria fotografia, ao lado de uma imagem de Tomás, e a informação de que ambos eram procurados por causa de um assalto a um banco e pelo homicídio de um guarda. Raquel permaneceu um longo instante pregada ao ecrã, vendo e recusando-se a acreditar.

"Está tudo louco!", sussurrou, incrédula. Desviou o olhar atónito para Tomás, quase como se lhe pedisse que resolvesse o problema. "Já viu isto?", perguntou, fazendo um gesto impotente para as fotografias estampadas no ecrã. "Acusam-nos de termos assaltado o banco e de termos assassinado o guarda."

O português acenou afirmativamente; nada daquilo o surpreendia.

"Eu avisei-a."

O olhar da agente da Interpol saltitou sucessivamente entre o rosto de Tomás e o ecrã, quase como se esperasse que um dos dois, o historiador ou o computador, solucionasse o problema por artes mágicas. Mas ele não se resolveu assim e a realidade começou a assentar sobre Raquel.

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"E agora?"

Fez a pergunta com a ansiedade de quem se sentia encurralada e acabava de tomar consciência de que tomara um caminho que não levava a parte alguma. Se a própria polícia internacional, para quem ela trabalhava e onde conhecia toda a gente, a riscara do mapa, que hipóteses na verdade tinham? Tudo aquilo lhe parecia incrível e reforçava a convicção de que enfrentavam forças muito poderosas, demasiado para as suas capacidades limitadas.

"E agora?", disse Tomás, ecoando a pergunta da espanhola e preocupado com o seu semblante derrotado. "Isso pergunto-lhe eu, você é que é a profissional. Qual é a sua análise da situação?"

A expressão de Raquel, de olhos esbugalhados e presos nele, roçava o pânico.

"Estamos perdidos."

A agente da Interpol passou a tarde sentada no sofá, prostrada pelo desânimo, o televisor ligado num canal de notícias mas a atenção a deambular por parte incerta, perdida no labirinto da armadilha que sobre eles se fechara.

Depois de sair para comprar comida numa mercearia do bairro, Tomás sentou-se ao lado dela no sofá e entregou-lhe uma chávena de café que tinha trazido da rua. Na televisão passava um noticiário com os preparativos para a cimeira europeia em Roma, onde supostamente se iria preparar mais um "pacote decisivo" que poria fim à crise das dívidas soberanas, e informações sobre a sessão preliminar do TPI, marcada para o dia seguinte em Florença e presidida pelo próprio presidente da Comissão Europeia. Depois vieram imagens de tumultos estudantis em Madrid e a seguir um acidente numa carretera qualquer, assunto que lhe pareceu desinteressante e o fez desviar a atenção para outras prioridades.

Foi ao escritório buscar uma caneta e um bloco de notas e, sempre acompanhado do envelope que Filipe lhe dera, voltou ao sofá 285



e pôs-se a estudar o criptograma escrevinhado no sobrescrito.




"GOsanSEC não quer dizer coisa nenhuma", murmurou, entabulando uma conversa consigo mesmo. "Nem OTat+&AR nem qualquer das outras linhas horizontais." Leu as linhas verticais, começando pela primeira à esquerda. "GOHO." Pensou na palavra.

"Parece Soho, o bairro de Londres ou Nova Iorque." Abanou a cabeça.

"Mas é GOHO." Separou a palavra. "GO HO? GO de vai? Vai a HO?

Hmm..." Passou à segunda linha vertical. "OTEV." Parou aqui. O jogo entre vogais e consoantes sugeria de facto uma palavra. Leu ao contrário, de baixo para cima. "VETO." Ora aqui estava uma palavra.

A solução seria ler de baixo para cima? Tentou com a primeira linha vertical. "OHOG." Depois com a terceira linha vertical. "SRas." Não, não podia ser essa a rota adequada. Aliás, era até demasiado simples e Filipe jamais escolheria uma solução tão elementar. "Hmm... e se..."

Sentada ao lado dele, Raquel pareceu despertar.

"Que está você a fazer?"

As múltiplas hipóteses cruzavam-se na mente do historiador, como se a charada fosse um imenso Sudoku, mas desfizeram-se como uma nuvem de vapor quando se sentiu interpelado.

"Eu?" Indicou as quatro linhas enigmáticas garatujadas no sobrescrito. "Estou a decifrar isto, claro."

"Está a perder o seu tempo", resmungou ela. "Não é assim que resolvemos o nosso problema."

O português virou-se para ela com um sorriso a aflorar-lhe o rosto.

"Está enganada", sentenciou, deixando transparecer mais 286


confiança do que aquela que verdadeiramente sentia. "Está aqui a nossa salvação."

A forma categórica como falou pareceu emprestar algum ânimo à agente da Interpol. Raquel pousou os olhos felinos no criptograma, uma ténue luz de esperança a acender-lhe o rosto.

"Descobriu alguma coisa?"

Tomás abanou a cabeça e concentrou-se de novo na charada.

"Ainda não", reconheceu. "Mas tenho a certeza de que vou desvendar a mensagem aqui escondida."

"Como pode ter a certeza? Isso parece tão... tão estranho..."

O historiador riu-se.

"Tenho a certeza porque sou bom no que faço."

A agente da Interpol fez uma careta e, brincalhona, deitou-lhe a língua de fora.

"Convencido!"

Tomás ia responder, mas deteve-se e ficou a observá-la, Os olhares de ambos presos um no outro, verde-berlinde com verde-esmeralda, ele a desfazer o sorriso, ela a recolher a língua mas não totalmente, os lábios entreabertos e molhados, as chamas a acenderem-se e a transformarem-se num incêndio.

Caíram um no outro.


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