XXXVIII

Uma nuvem de vapor ascendia em coluna do bico do bule de porcelana, como o ruminar de uma cratera prestes a entrar em erupção. Raquel precipitou-se sobre a mesa e serviu o chá nas duas chávenas. Depois recostou-se na cadeira e, de braços cruzados, pousou nele os olhos expectantes.

"E então?"

O português bebericou o novo chá.

"Não está mal."

Ela riu-se.

"Não é isso", disse. "Então como é que as securitizações das hipotecas geraram a crise financeira?"

O historiador indicou a sua interlocutora com um gesto, interpelando-a directamente.

"Oiça lá, qual foi a primeira vez que pediu dinheiro emprestado para comprar casa?"

A pergunta apanhou Raquel em contrapé. Ainda pensou que o seu convidado estava a desviar a conversa, mas concedeu-lhe o benefício da dúvida.

"Eu?" Fez um ar pensativo. "Sei lá, foi há uns quinze anos, tinha acabado de tirar o meu curso de Direito. Porquê?" "Foi fácil convencer o 252


banco?"

"Ui, não. Quiseram ver o meu salário, as minhas condições de trabalho, as minhas contas... foi um inferno." Nova gargalhada.

"Quase só faltou verem-me as cuecas. E só me emprestaram dinheiro porque meti na casa vinte por cento do meu bolso e porque arranjei um fiador. "Fez um ar pensativo. "Ah, e também porque passei no exame de saúde da seguradora. Se não fosse isso..."

"Ou seja, o banco foi muito cauteloso a emprestar-lhe o dinheiro. Quis certificar-se primeiro de que você tinha de facto condições para pagar mensalmente o empréstimo mais os juros."

"Sim, pode dizer-se que foi isso."

"Na avaliação do banco, você era portanto uma cliente com bom rating, chamemos-lhe uma cliente AAA. Foi por isso que lhe emprestaram o dinheiro." Afinou a voz, preparando-se para ir ao ponto principal. "A grande novidade na bolha imobiliária americana é que os bancos se puseram também a emprestar dinheiro para compra de casa a pessoas que ganhavam pouco, clientes BB, ou que tinham rendimentos incertos ou até que estavam desempregadas, clientes CC, alguns deles com historial de não pagarem as suas dívidas. E não lhes exigiam que entrassem nem com um tostão, ouviu'? O banco dava cem por cento do crédito e às vezes dava mesmo cento e vinte por cento, ou seja, mais do que a casa valia."

Raquel carregou as sobrancelhas e fitou-o com uma expressão de incredulidade.

"Está a brincar..."

O português abanou enfaticamente a cabeça.

"Não estou não!", exclamou. "Não se lembra de ver na televisão aqueles anúncios dos bancos a dizer 'o crédito está fácil!', ou 'porque não pedir um emprestimozinho?', ou 'peça... e nós damos!? Em Portugal passava publicidade dessa a toda a hora."

"Tem razão! Em Espanha também."

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"Não achou estranho ver tantos anúncios desses?" A espanhola soltou uma gargalhada.

"Agora que menciona isso, confesso que sim. Como tinha sido muito difícil obter o meu primeiro empréstimo fiquei pasmada com a facilidade com que passaram a emprestar dinheiro. Era para a casa, para o carro, para a escola dos miúdos... até para as férias!

Emprestavam todo o dinheiro que pedíssemos para o que quiséssemos e não tínhamos de entrar com nada! Eram só facilidades!"

Tomás apontou-lhe o dedo.

"Essas facilidades só foram possíveis graças à securitização", atalhou. "O que aconteceu foi que os bancos americanos pegaram em hipotecas de pessoas como você, clientes AAA que podiam pagar o empréstimo, e cortaram-nas em tranches. Depois o que fizeram?

Misturaram uma fatia dos clientes bons pagadores com fatias de clientes medianamente pagadores e com fatias de clientes que teriam dificuldade em pagar, os tais de baixos salários ou até desempregados.

Ou seja, tranches de clientes AAA, BB e CC todas misturadas no mesmo produto."

"Mas.., mas era óbvio que isso ia dar barraca!" "Pois era."

"Então como é possível que uma coisa dessas tivesse ,;ido aceite? Os investidores não perceberam o que estavam a comprar?"

O olhar de Tomás acendeu-se.

"É que os bancos fizeram um truque adicional", revelou.

"Conseguiram que as agências de rating dessem nota máxima a esses produtos de qualidade duvidosa!"

"O quê?", admirou-se Raquel. "Como conseguiram eles uma coisa dessas?"

"Na década de 70, quando a desregulação começou a ganhar terreno, decidiu-se que quem pagava o trabalho das agências de rating era quem emitia os produtos que elas avaliavam. Isso criou um evidente conflito de interesses. Se as agências dependiam de quem 254


emitia os produtos, não lhes interessava desagradar-lhes, não é verdade? Se as avaliações fossem más, os emissores não as pagariam e iam ter com uma agência rival que fosse mais... digamos, simpática.

Portanto, havia que agradar aos emissores dos produtos. Quando os bancos apresentaram às agências as securitizações de hipotecas, chamaram-lhes a atenção para o facto de esses produtos terem fatias de clientes bons pagadores, clientes AAA."

"Mas esses produtos também tinham tranches de clientes CC", lembrou Raquel. "E esses clientes não têm o hábito de pagar o que devem."

"Pois é, mas as agências precisavam de agradar aos bancos que lhes pagavam as avaliações. Por isso avaliaram estas securitizações de hipotecas com nota AAA. Isso abriu as comportas para uma avalancha de compras destas securitizações. O mercado confiava nas avaliações das agências e, quando viram que estes produtos eram AAA, os investidores acreditaram que se tratava de uma coisa segura.

Portanto toca a comprar! Até os fundos de pensões, que só adquirem produtos seguríssimos e pouco especulativos, investiram nestas securitizações AAA. Fluíram assim rios de dinheiro para o mercado imobiliário."

"Com os bancos sempre a facturarem..."

"Claro! Já viu o dinheirão que fizeram em comissões? Dois por cento da venda de uma casa é muito mais do que dois por cento da compra de um perfume com cartão de crédito! Quando estenderam os empréstimos aos clientes CC, também chamados subprime, multiplicaram-se as operações que cobravam comissão. Os lucros de curto prazo dispararam e os bónus dos banqueiros também. Os empréstimos quase quadruplicaram todos os anos entre 2000 e 2003 e os cinco maiores bancos da América abocanharam dois terços de todo o dinheiro gerado pelas securitizações. A cereja em cima do bolo deste esquema piramidal é que os bancos não ficavam necessariamente com as securitizações nas 255


mãos. Elas eram vendidas a investidores de todo o mundo que não percebiam o que estavam a comprar, excepto que se tratava de um produto AAA. Ou seja, os bancos não tinham de se preocupar com saber a quem emprestavam o dinheiro, uma vez que venderam as securitizações a terceiros e, se as coisas corressem mal, estes é que pagariam a factura. Portanto havia um enorme incentivo para arriscar mais e mais." Apontou para a sua interlocutora. "Imagine que lhe davam um bónus de dez milhões de euros para tomar Uma decisão que pusesse a sua empresa em risco, e com uma vantagem adicional: quando chegasse a hora alguém pagaria a factura, mas não você. Tornaria essa decisão?"

Raquel hesitou na resposta.

"Gostaria de dizer que não, mas tenho de reconhecer que seria muito tentador."

"Pois foi assim que os banqueiros também pensaram, com a cobertura dos políticos a quem financiavam as campanhas em troca de promessas de que o mercado permaneceria desregulado."

"Mas os bancos sabiam que esses produtos eram maus?"

"Muitos sabiam, com certeza. O Goldman Sachs e o Morgan Stanley, por exemplo, apostaram dinheiro em como as securitizações iriam correr mal, isto numa altura em que eles próprios estavam a convencer os seus clientes a adquiri-las."

"Inacreditável!", espantou-se a agente da Interpol. "E as pessoas que compraram casa sem terem dinheiro para pagar o empréstimo? Não estavam preocupadas?"

"Porque haveriam de estar? Compraram uma casa sem meterem um tostão do seu bolso e o imóvel todos os anos ia valorizando, uma vez que a bolha imobiliária estava a crescer. Só se fossem doidas é que não alinhavam nisto! Os juros eram baixos, os bancos ofereciam dinheiro como se fosse tremoços e as casas estavam sempre a valorizar. Como não aproveitar? Foi uma festa de arromba! À medida que a procura 256


aumentava os preços dos imóveis subiam, tendo duplicado de valor em apenas sete anos. Como as casas valorizavam e os bancos continuavam a oferecer dinheiro em condições óptimas, mais e mais pessoas iam comprando casa, acreditando que iriam ganhar muito dinheiro quando as vendessem daí a uns anos. Estava montado um verdadeiro esquema piramidal."

"Mas isso era sustentável?"

"Nenhum esquema piramidal é sustentável!" Ergueu o dedo, professoral. "Lá diz a velha máxima em economia: o que não é sustentável não se sustentará. E não se sustentou. O encarecimento das casas gerou inflação, que foi agravada pela escalada do preço do petróleo. Receando que a inflação disparasse, o Fed começou a subir as taxas de juro. Tal como na Grande Depressão, foi isso que fez estourar a bolha. A subida dos juros encareceu as amortizações mensais e os clientes CC, que tinham salários baixos ou estavam desempregados, não tinham dinheiro para as pagar."

"Então o que fizeram?"

Tomás encolheu os ombros, como se a resposta fosse evidente.

"Não pagaram", disse. "Tinham comprado a casa sem meter um tostão seu, pelo que não lhes custou muito devolvê-la no momento em que as prestações mensais encareceram ao ponto de lhes levarem metade dos seus rendimentos mensais. Em vez de pagarem, os clientes CC preferiram entregar as chaves aos credores. Os bancos viram-se de repente com milhares de casas devolutas nas mãos e voltaram a colocá-

las no mercado para venda, mas as coisas já tinham mudado. Os juros estavam a subir, tornando menos atractivo pedir empréstimos para a compra de imóveis, e o regresso dessas casas ao mercado implicou que de repente a oferta disparasse, o que fez baixar os preços do imobiliário. Os clientes BB viram que o valor das casas tinha começado a baixar e... toca a vender, antes que baixasse mais. A oferta disparou e os preços caíram a pique. Em certas zonas da América houve casas que 257


perderam quase sessenta por cento do seu valor."

Raquel voltou a indicar os prédios do outro lado da rua, visíveis da sua janela.

"Exactamente o que aconteceu aqui em Espanha."

"O que se passou aqui, minha cara, foi consequência directa destes acontecimentos na América. Os clientes americanos entraram em default e abandonaram as suas casas em massa. As securitizações das hipotecas, avaliadas em AAA mas carregadas de fatias de obrigações BB e CC, começaram a dar prejuízos tremendos e tornaram-se verdadeiros sorvedouros de dinheiro. Quem as tinha estava tramado. Foi o caso de vários bancos gigantescos que, apesar de terem vendido muitas securitizações, ainda possuíam grandes stocks delas e descobriram que por causa disso se tinham tornado insolventes. O problema é que a falta de regulação permitira que os bancos crescessem tanto que eram agora demasiado grandes para caírem sem riscos para a economia e os banqueiros, que antes exigiam aos altos berros que o estado não interviesse no mercado livre, correram para o estado a suplicar de joelhos que interviesse."

"E o estado interveio?"

"Em grande! A administração Bush, até aí um arauto da desregulação e do não envolvimento cio estado no livre funcionamento do mercado, injectou centenas de milhares de milhões de dólares dos contribuintes em gigantes falidos. Directamente ou através de outras instituições financeiras foram salvos o Bear Stearns, o Merrill Lynch, o Citigroup, o Washington Mutual e o Wachovia, e ainda empresas de hipotecas como a Fannie Mac e o Freddie Mac, que tinham sido incumbidas pelo poder político de ajudar pessoas sem posses a comprar casa e que também se afundaram em securitizações tóxicas. Até a maior seguradora do mundo, a AIG, teve de ser salva com o dinheiro dos contribuintes."

"Isso é irónico", riu-se Raquel. "Já viu? A desregulação, concebida para 258


retirar o estado do mercado, acabou por obrigar à maior intervenção de sempre do estado no mercado."

"Um contra-senso total", concordou o português. "A chatice é que o problema não se ficou pela América, uma vez que muitas dessas securitizações haviam sido vendidas a bancos europeus. O governo britânico teve de nacionalizar os bancos Lloyds, Royal Bank of Scotland e Northern Rock, o governo francês fez o mesmo ao BNP Paribas, o holandês ao ABN Amro e ao Fortis e o suíço ao Crédit Suisse. Até que, quando chegou a vez do americano Lehman Brothers, em Setembro de 2008, a administração Bush decidiu mudar de táctica e deixá-lo falir."

"Ah, lembro-me de ver isso na televisão", observou Raquel. "Foi essa falência que provocou o colapso das bolsas, não foi?"

"Mais do que isso, o encerramento do Lehman Brothers, que a desregulação tinha permitido que se tornasse demasiado grande para cair, paralisou a economia quando caiu. Os bancos começaram a ter dúvidas sobre a solvibilidade dos outros bancos e deixaram de lhes emprestar dinheiro, com medo de não o ver de volta. Tal como em 1929, o dinheiro parou de circular. Como os empréstimos foram suspensos, o problema contaminou o resto da economia. As pessoas, por exemplo, deixaram de ter dinheiro para comprar automóveis. As vendas de carros caíram a pique e, sem negócio, construtoras como a General Motors e a Chrysler tiveram de despedir milhares e milhares de trabalhadores. Com a crise a alastrar, os consumidores cortaram nos gastos, deprimindo ainda mais as vendas. A economia e o mercado de trabalho entraram assim em colapso, mas os banqueiros mantiveram os bónus ganhos com a sua gestão danosa e os políticos que levaram a cabo a desregulação assobiaram para o ar como se não tivessem nada a ver com o que estava a acontecer."

"E nós?", quis saber a espanhola. "Como foi que isso afectou a Espanha?"

"Grande parte do crédito fácil na Europa era dinheiro gerado pelas 259


securitizações americanas e pelas taxas de juro muito baixas. Como as taxas subiram e a securitizações começaram a dar prejuízos incríveis, porque as pessoas na América entraram em default no pagamento das suas hipotecas, o dinheiro deixou de fluir para a Europa. O crédito foi cortado e os bancos europeus deixaram de emprestar. Foi por isso que as empresas europeias enfrentaram de repente dificuldades em financiar-se e, sem dinheiro, começaram a abrir falência umas atrás das outras. Com as empresas a fecharem, o desemprego disparou na Europa."

"E veio a crise das dívidas soberanas."

"Sim, mas num segundo tempo. Inicialmente o problema restringiu-se aos bancos e às empresas europeias e aos países europeus fora da zona euro, como a Islândia, os bálticos, a Ucrânia, a Bulgária, a Hungria e a Roménia. A crise da dívida soberana da zona euro só surgiu quando..."

Um estrondo brutal soou no interior do apartamento e uma fumarada cinzenta encheu a entrada como uma nuvem piroclástica. Tomás e Raquel viraram-se para a porta, surpreendidos, e aperceberam-se dos vultos que atravessavam a neblina metálica como espectros fugidios.

Obedecendo ao treino, a agente da Interpol deitou a mão ao coldre escondido debaixo do braço mas teve de se imobilizar.

Três homens apontavam-lhes pistolas.



















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