LIV

A noite não foi especialmente agradável, nem alguma vez Tomás alimentou ilusões de que o seria. Dormir sentado não lhe parecia propriamente a experiência mais agradável, mas, considerando as circunstâncias, acabara por repousar melhor do que pensava ser possível. Tivera um sono agitado e havia acordado várias vezes, claro, sobretudo quando a composição se imobilizava numa estação, mas em todas as ocasiões acabara por conseguir voltar a adormecer, embalado pelo balouçar ritmado da carruagem.

Excepto da última vez. O comboio acabara de arrancar da estação de Génova e lançara-se ao longo da costa da Ligúria. O Sol nascera pouco antes e, apesar de ainda baixo, reflectia-se numa miríade de luzes relampejantes nas águas adormecidas do Mediterrâneo. Ainda entorpecido 359


a hora tão matinal, Tomás percebeu que dessa vez não seria capaz de voltar ao sono.

Levantou-se e foi ao quarto de banho aliviar a bexiga. Todos dormitavam na carruagem, incluindo os casalinhos e as freiras, os corpos estendidos nas posições mais incómodas, as cabeças penduradas de formas bizarras. O corredor estava pejado de pessoas enfiadas em sacos-cama, pelo que teve de saltitar pelos espaços vazios de modo a não pisar ninguém.

Quando minutos mais tarde regressou ao seu lugar, deu com Raquel a espreguiçar-se.

"Olá", cumprimentou-a com um sorriso. "Dormiste bem?"

A espanhola ainda esticava os braços.

"Nem por isso", resmungou ela. "E tu?"

"Não foi mal de todo."

"Ay, coo!", protestou Raquel com voz de bagaço. "Que inveja tenho!

Só consegui pregar olho aí pelas três da manhã."

"Não te podes queixar muito. Sempre que acordei e olhei para ti dormias que nem um anjinho."

Ela riu-se.

"Lá isso é verdade."

A agente da Interpol pôs-se de pé e seguiu para o quarto de banho com o seu saco. Conhecendo as mulheres, o português percebeu que ela iria gastar algum tempo a arranjar-se. Recostou-se no seu assento e ficou a contemplar a paisagem. A seguir levantou-se e tirou o computador do saco que guardava no espaço para a bagagem, sobre os assentos. Ligou-o e ficou a aguardar.

Minutos volvidos, o comboio deu entrada na estação de La Spezia. Tomás verificou] se ali na estação haveria ligação à internet. O

sinal de Wi-Fi deu positivo. Sabia que tinha pouco tempo, pelo que foi directo ao seu endereço electrónico e inspeccionou o inbox. Ainda não havia resposta do lar; isso não o preocupou, no fim de contas era 360


ainda cedo. Para compensar deu de caras com um novo e-mail de Filipe.

Carregou na linha e abriu a mensagem.

Leu-a três vezes, indeciso em relação ao que fazer. Ainda considerou a possibilidade de responder, mas o comboio voltou a pôr-se em movimento e ele percebeu que a todo o instante iria perder a rede de Wi-Fi. Desligou o computador portátil e devolveu-o ao saco guardado por cima do assento.

"Tiveste saudades minhas?"

Era Raquel que regressava depois de ter feito a toilette; vinha linda, os lábios pintados de carmesim, o cabelo arranjado e os olhos luminosos.

"Ena, que brasa!"

A espanhola girou sobre si mesma para exibir as suas formas.

"Estou, não estou?" Inclinou-se sobre Tomás e ofereceu-lhe o pescoço. "E o cheirinho?"

O perfume doce invadiu-lhe as narinas.

"Ah, uma maravilha!"

Raquel sentou-se no seu lugar e, pestanejando exage-radamente, respirou fundo e pousou as palmas das mãos no peito.

"Sabes, sonhei contigo..."

"A sério?"

"É verdade", confirmou ela. "Sonhei com aquilo que me contaste ontem à noite."

O historiador teve de se concentrar e, ao lembrar-se do que haviam dito, esboçou um esgar de enfado.

"O quê? A conversa do euro?"

"Pois é, sempre achei que o euro era uma maravilha para a economia", confessou ela. "Mas quando me disseste que isso não é verdade fiquei em estado de choque, acredita. Como é tal coisa possível?"

"Eu não disse que o euro não era uma maravilha", corrigiu Tomás.

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"Limitei-me a rectificar a tua observação de que o euro ajudava o crescimento económico, só isso."

Raquel fez um gesto rápido com a mão, como se a resposta não passasse de um jogo semântico.

"Bueno, é a mesma coisa. O euro não ajuda as nossas economias a crescerem?"

"Não, segundo os números."

A espanhola manteve uma expressão de cepticismo no rosto.

"Ai não? Então o que dizem eles?"

Tomás suspirou. Não lhe apetecia retomar a conversa. Era cedo, sentia uma certa fome e tinha outras coisas em que pensar, mas percebia a curiosidade e até o entusiasmo que ela manifestava e não teve coragem de fugir à conversa.

"Está bem, vamos então ver isso."

Raquel ergueu-se e espetou-lhe um beijo quente na cara. "Gracias, cariño!"

"Comecemos, a título de exemplo, por ver o que aconteceu à economia de Portugal desde o nascimento do euro", propôs. "Com o início da moeda única, as taxas de juro caíram para valores irrisórios e, vendo o dinheiro tão barato, toda a gente se endividou. Estado, empresas e famílias foram buscar o dinheiro aos bancos e puseram-se a gastar como malucos. Em 2000 a dívida externa líquida de Portugal era de quarenta e quatro mil milhões de euros, equivalentes a trinta e oito por cento do PIB, e em 2010 já era de cento e oitenta e cinco mil milhões de euros, equivalentes a cento e nove por cento do PIB. Ou seja, a dívida aumentou doze mil milhões de euros por ano! Qualquer dona de casa percebe que Uma evolução destas é insustentável. Mas como os nossos governantes são burros que nem portas, ou mais provavelmente criminosos diplomados, deixaram andar. Os manuais explicam que, em circunstâncias destas, o estado deve reduzir as despesas ou aumentar os impostos para diminuir a despesa privada 362


ou uma mistura dos dois, mas aqueles camelos, com medo de perder votos, fizeram exactamente o contrário."

"Então a culpa não é do euro..."

"Não é de facto do euro", reconheceu o historiador. "Mas a moeda única, com as suas taxas de juro baixas, criou as condições para este descalabro. A má governação fez o resto."

"Pois, tens razão."

"Agora vejamos o desemprego", prosseguiu. "A taxa de desemprego em Portugal em 2000 era de quatro por cento. Em 2011, ano da chegada da troika, estava já nos catorze por cento. Ou seja, o euro não ajudou a combater o desemprego."

"Coño!", praguejou ela. "E o crescimento económico? Qual o impacto do euro no crescimento económico?"

"Uma

desgraça",

respondeu

Tomás.

"O

crescimento

económico em Portugal em 1998 era de cinco por cento."

"Não é assim tão mau..."

"Isso foi no ano antes de nascer o euro", notou o historiador.

"A moeda única apareceu em 1999 e, a partir daí, foi uma miséria.

De 1999 a 2009, ano em que começou a crise das dívidas soberanas, a economia portuguesa cresceu a uma taxa média anual de um vírgula dois por cento, sempre em plano descendente com o avanço da década e em divergência com o resto da Europa. Foi o pior crescimento anual médio do país desde a Primeira Guerra Mundial."

Raquel abanou a cabeça, ainda a digerir estes números.

"Dios mio!", murmurou. "Não imaginava que tivesse sido assim tão mau. Isso deveu-se mesmo ao euro?"

"É difícil ter a certeza. O período do nascimento do , euro coincidiu com o crédito barato que vinha da América, com a integração dos países do Leste da Europa na União, . com a adesão da China em 2001 à Organização Mundial do Comércio e com o maior envelhecimento da população, factos que pressionaram negativamente 363


a economia europeia em geral e a de Portugal em particular.

Considero até que o mais importante destes factores tenha sido a entrada da China no mercado global, que conduziu a uma assustadora desindustrialização do Ocidente. Mas todos estes acontecimentos eram do conhecimento público e os diversos governos, e neste caso os portugueses, deviam ter actuado para enfrentar os desafios que aí vinham. Nada fizeram, com medo de perderem os seus ricos votinhos. Os governantes portugueses foram criminosamente lapsos na preparação do país para os desafios do euro. Os economistas tinham avisado que a perda da moeda nacional, e consequente impossibi-lidade de proceder a desvalorizações que desencorajassem as importações e fomentassem as exportações, obrigava a reformas estruturais que criassem flexibilidade laborai. Nada foi feito. Pior ainda, em Portugal os governos puseram-se a aumentar os salários acima da taxa de crescimento económico. Enquanto a economia crescia entre 1999 e 2009 a uma taxa média anual de um vírgula dois por cento, no mesmo período os salários da função pública cresciam a uma taxa média anual de um vírgula sete por cento, o que significa que parte desses aumentos não resultava de efectivo crescimento da riqueza do país, mas de empréstimos contraídos no exterior. Como os salários cresceram mais do que a economia, os produtos portugueses tornaram-se mais caros e, consequentemente, ainda menos atractivos no estrangeiro.

Nestas condições, a economia portuguesa era um desastre à espera de acontecer."

"Sim, mas qual o contributo do euro para esse desastre?"

"Olha, Raquel, desde que nasceu o euro correu tudo mal a Portugal", sublinhou o historiador. "O crescimento económico abrandou, o desemprego disparou, a dívida ficou descontrolada, a competitividade caiu. O euro até pode não ter culpa, mas o facto é que não nos protegeu." Levantou o dedo, como se tivesse algo mais a dizer.

"Além disso, os modelos desenvolvidos pelos economistas mostram que 364


Portugal teria crescido pelo menos mais meio ponto em média anual do que cresceu no período de 1999 a 2009 se estivesse fora do euro, e estaria em convergência com o resto da Europa. Teria, é certo, sido mais abalado pela crise financeira, tal como aconteceu com a Islândia e os países bálticos, mas a recuperação também teria sido muito mais rápida." Afastou os braços e todo o seu corpo pareceu formar uni grande ponto de interrogação. "O que ganhámos nós afinal com a moeda única? Será que alguém me pode explicar?"

A espanhola parecia pensativa, tentando enumerar as vantagens.

"Bem... podemos viajar sem trocar dinheiro, o que é bem agradável. Há também a credibilidade da moeda a considerar. O

euro é muito mais credível do que a peseta ou o escudo."

"É verdade. Mas não achas que isso é pouco, sobretudo quando comparado com os inconvenientes?"

Raquel mordeu o lábio inferior.

"Talvez", admitiu. "De qualquer forma, apenas falaste no caso português. A situação é com certeza diferente nos outros países da zona euro..."

"O caso português, e ao contrário do que pensas, é típico. Onde eu disse 'Portugal' podes ouvir, com diferentes nuances, o nome de qualquer país do Club Med. É certo que a Espanha registou neste período um crescimento interessante, mas isso nada teve a ver com um aumento da produtividade. O crescimento espanhol foi essencialmente sustentado pela dívida contraída para alimentar a colossal bolha do imobiliário e os gastos nas regiões. Uma vez interrompido o fluxo de dinheiro do estrangeiro, a bolha rebentou, os bancos e os orçamentos regionais entraram em colapso e a economia espanhola precipitou-se na crise. Da Grécia nem vale a pena falar, toda a gente já percebeu o desgoverno do país. O governo grego usou o dinheiro que vinha do exterior para contratar pessoas para trabalhos inexistentes. Derreteram assim o dinheiro." Mudou de 365


posição no assento. "Há, porém, um caso interessante. A Irlanda."

"Esse não é do Club Med..."

"Pois não, mas é um país periférico e tem uma história ilustrativa. Quando o governo irlandês cortou os impostos das empresas para doze e meio por cento, a economia disparou. Todos queriam investir na Irlanda! Em 1993, ano em que o imposto foi reduzido, o crescimento económico do país estava nos dois e meio por cento. Em 1997, apenas quatro anos depois, tinha cavalgado para cima dos dez por cento."

"Joder!", pasmou-se Raquel. "A sério?"

"A Irlanda entrou no euro em velocidade de cruzeiro, as finanças públicas em ordem e a inflação controlada. O euro, no entanto, trouxe-lhe taxas de juro muito baixas, que alimentaram uma gigantesca bolha do imobiliário. Em resultado disso, a dívida total do país relativamente ao PIB mais do que duplicou de 2001 a 2008.

Para que percebas melhor o que aconteceu, basta veres que, em cada oito euros que circulavam no país, a Irlanda tinha criado apenas um e pedido emprestados os restantes sete. Quando os bancos alemães deixaram de emprestar dinheiro, foi o caos neste país que até ao nascimento da moeda única ia tão bem." Cruzou os braços, como se desse por terminada a sua argumentação. "Conclusão, o euro revelou-se uma catástrofe total para os Irlandeses..."

"De certeza que a culpa foi do euro?"

"A coincidência temporal entre o nascimento da moeda única e o declínio das economias europeias é perturbadora", disse o historiador.

"Claro que a entrada da China na economia global é o principal responsável por grande parte destes problemas, juntamente com o crédito barato, mas tenho uma certa dificuldade em isentar o euro de responsabilidades."

Raquel manteve os olhos cravados nele; queria uma resposta final à sua preocupação central e não a obtivera ainda.

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"Muito bem", disse. "Mas, se o euro sobreviver, afinal vamos ou não sair dele?"

A insistência implacável da espanhola arrancou uni sorriso divertido a Tomás.

"Deixa-me responder deste modo", retorquiu. "Para nos mantermos no euro, algo que me parece perfeitamente possível, é fundamental que algumas coisas mudem. Primeiro, temos de respeitar uma rigorosa disciplina orçamental, coisa que até agora não fomos capazes de fazer sem o FMI ou Bruxelas a darem-nos ordens. Segundo, temos de reduzir o investimento no sector não transaccionável e focar-nos no sector transaccionável para exportação, coisa que até agora também não fomos capazes de fazer. Terceiro, temos de aceitar cortes directos nos salários, nos subsídios e nas pensões de forma que os nossos produtos se tornem mais baratos e as importações mais inacessíveis, coisa que até agora só conseguimos aceitar quando é o FMI ou Bruxelas a ordená-lo. Quarto, temos de aceitar a perda quase total de soberania e a substituição da ordem constitucional dos nossos países por uma ordem federalista que transforme os nossos estados em regiões europeias e submeta os nossos orçamentos a controlo alheio, coisa que muitos europeus dão mostras de não tolerar. E, quinto, os Alemães têm de aceitar fazer transferências orçamentais para a periferia, coisa que começam a não estar dispostos a fazer."

"Achas que vamos conseguir cumprir essas cinco condições?" O

historiador abanou lentamente a cabeça.

"Duvido."

"Porquê?"

"Porque os eleitores têm tendência a votar em políticos que lhes vendam ilusões e prometam facilidades, subsídios, pensões e salários mais altos do que a produtividade. O Partido do Estado domina os países do Club Med, cujas receitas fiscais vão inteirinhas para 367


salários da função pública, para a segurança social e para a saúde. Ora disciplina orçamental e investimento no sector transaccionável são coisas que implicam menos estado. Além disso, a manutenção no euro significa que, sempre que houver crise, e uma vez que não se pode desvalorizar a moeda, terá de se voltar a cortar directamente nos salários e nas pensões para reduzir as importações e aumentar as exportações. Estás a ver os governantes portugueses e espanhóis a fazerem esses cortes? Os eleitores destes países não vão aceitar Uma coisa dessas e à primeira oportunidade elegerão políticos que façam despesa e contraiam dívida."

"Pois é, tens razão", acabou Raquel por reconhecer. "Isso significa que temos mesmo de sair do euro..."


"Ou mudamos muito ou isso é inevitável", anuiu ele. "Falta saber quando acontecerá. Poderá suceder de um momento para o outro, precipitados por uma agudização súbita e irreversível da crise, ou levar anos e anos de sofrimento, com a economia sempre a arrastar-se na estagnação e em crise, até que nos convençamos que o euro está formatado para defender os interesses de economias como a alemã, não como as nossas."

"Mas como se sai do euro?", perguntou a espanhola. "Aqui em Espanha os economistas dizem que as consequências seriam terríveis..."

O historiador assentiu.

"E têm razão."

"Têm?"

Tomás espreitou a paisagem. A costa da Ligúria era uni lugar espantoso, com as suas pequenas praias de pedrinhas e tendas cuidadosamente arranjadas. Olhando para ali, tudo o que lhe apetecia era apear-se e dar um mergulho naquelas águas tranquilas e quentes, enlevado pela superfície azul-turquesa que afagava as rochas e beijava as praias.

"Poderá ser um evento catastrófico."


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