XXX

Ao chegar ao local combinado uma pequena surpresa esperava Tomás. Apesar do nome, o Café Nirvana não era propriamente um café, mas o campo do clube de futebol de Sesefia. O recém-chegado dirigiu-se à entrada do campo e viu uma rapariga de jeans azul-claros e colete carmesim, o cabelo castanho com madeixas encaracoladas até aos ombros a fitá-lo inquisitivamente.

"Perdón", disse ele no seu portunhol sempre trapalhão. "Es aqui la entrada de el Café Nirvana?"

O que mais nela se destacava eram os olhos hipnóticos de felino, de um esmeralda-claro tão luminoso que pareciam dois focos de luz verde cravados no rosto. A rapariga levou um longo instante a responder. Manteve os olhos intensos espetados nele. Não se percebia se estavam alarmados ou desconfiados, o facto é que o estudavam com enorme atenção, talvez mesmo cautela.

"O senhor é o amigo de Filipe Madureira?"

Falou devagar, como se tacteasse o terreno, e o recém-chegado quase bufou de alívio.

"Tomás Noronha", apresentou-se, estendendo a mão. "Presumo que seja a Raquel."

A rapariga apertou-lhe a mão com uma certa hesitação, dir-se-ia relutância, mas depressa pareceu ganhar à-vontade. "Sim, sou eu. Quem é o senhor exactamente?"

"Sou um amigo de infância de Filipe", disse. "Fizemos o liceu juntos."

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"Então porque nunca me falou ele em si?"

"Os nossos caminhos separaram-se quando fui para a faculdade tirar História", explicou Tomás. "Os contactos entre nós tornaram-se esporádicos. Acontece que há uns dias ele apareceu-me em Lisboa com ar desgrenhado e pediu-me ajuda. Parece que estava envolvido numa investigação sobre a crise e que entrara na posse de determinada informação que..." "Aqui não!", interrompeu-o Raquel, lançando miradas em redor para se certificar de que ninguém os escutava. "Vamos para o meu apartamento, espero que não veja inconveniente nisso."

"Como queira."

A espanhola virou-se e começou a caminhar na direcção de uma fila de automóveis estacionados junto ao passeio. Tomás foi atrás dela e, quase sem querer, obedecendo a um instinto de homem, desceu o olhar para os jeans apertados, e em particular o traseiro arredondado; Raquel era uma rapariga incontestavelmente atraente, de um desportivo elegante, o corpo curvilíneo e adelgaçado.

"Certificou-se de que ninguém o seguiu?"

Numa reacção reflexa, Tomás olhou para trás.

"Não tenho qualquer qualificação ou talento especial para despistar pessoas", observou. "Mas não creio que me tenham seguido, fique descansada."

Raquel destrancou por controlo remoto um Ford Fiesta encarnado impecavelmente lavado e acomodaram-se ambos no interior da viatura. Fazia calor, mas ela ligou de imediato o ar condicionado e a temperatura ficou regularizada. Fez marcha atrás e arrancou rua fora sem dizer uma palavra. Não parecia conversadora, mas isso não incomodou Tomás. Tinha dormido mal nessa noite e aproveitara a curta viagem entre Madrid e Sesefia para pôr o sono em dia. Agora que ia no carro apetecia-lhe voltar a adormecer, mas achou que não faria boa figura e esforçou-se por manter os olhos abertos.

As ruas de Sesefia apresentavam-se desertas, com os blocos de 213




apartamentos repletos de cartazes a dizerem "se vende" ou "alquila"

e a indicarem números de telefone. Viam-se parques infantis sem vivalma, lojas fechadas e erva a nascer nos passeios. Algumas estruturas de prédios estavam em esqueleto, como se a construção tivesse sido abandonada a meio. Parecia que circulavam numa cidade-fantasma.

"Caramba!", exclamou o visitante, surpreendido. "É impressionante, isto! Olhe só para o número de apartamentos para venda ou aluguer... Incrível, hem?"

"É a crise", disse a espanhola sem tirar os olhos do caminho. "Já deve ter ouvido falar na crise, não?"

Disse-o com uma ironia amarga que não escapou ao português.

"Sim, com certeza", respondeu Tomás. "Eu próprio perdi O

emprego." Indicou os prédios que ladeavam a rua. "Mas Uma coisa assim nunca tinha visto..."

Raquel respirou fundo, como se se rendesse à evidência de que, contra a sua vontade, seria forçada a falar.

"Aqui em Seseña foram construídos dezasseis mil apartamentos, com capacidade para quarenta mil pessoas. Desde que a crise rebentou sabe quantos desses apartamentos estão ocupados?"

"Em dezasseis mil? Não faço ideia. Mil? Cinco mil?" A espanhola virou a cara para ele.

"Sessenta."

O visitante assobiou, os olhos colados às ruas desertas e aos blocos de prédios vazios.

"Incrível!", exclamou. Depois balançou afirmativamente a cabeça, como se aquilo batesse certo com tudo o que sabia. "Não há dúvida, a bolha imobiliária espanhola foi a maior de todas." Indicou as fachadas com o polegar. "Tanto quanto sei foram construídas mais habitações em Espanha do que em França, Alemanha e Itália juntas. Estamos a falar de seiscentas mil casas por vender e outras seiscentas mil em construção, o 214


que dá mais de um milhão, não é? É muito. Os empréstimos para os construtores espanhóis subiram oitocentos e cinquenta por cento desde 2000 até ao colapso financeiro." Suspirou. "Vocês estão atulhados em porcaria até ao pescoço, receio bem."

Raquel fitou-o com uma expressão admirada na face.

"Caramba! Tem os dados todos na cabeça!"

O seu passageiro sorriu.

"Desde que esta crise começou que tenho aprendido alguma coisa", confessou. "E o dossiê do Filipe, admito, é muito esclarecedor. Tal como os meus conhecimentos em história económica, aliás."

A condutora indicou as tabuletas azuis e vermelhas com indicação dos apartamentos para venda ou aluguer. "Então o que acha que nos vai acontecer?"

"Nada de bonito, lamento dizê-lo", vaticinou Tomás. "Tal como a Grécia e Portugal, a Espanha está endividada até ao tutano. Sabe, todos nós andámos a viver de dinheiro emprestado a juros baixos.

Os Portugueses derreteram-no em auto-estradas, vocês derreteram-no em imóveis. A grande diferença é que, ao contrário da Grécia e de Portugal, que entraram na crise com enormes défices públicos, a Espanha entrou na crise com excedente nas contas públicas do estado central. O vosso problema foi a dívida dos governos regionais e sobretudo a dívida privada, que alimentou a bolha imobiliária e que, proporcionalmente, foi até muito maior do que a bolha imobiliária americana que provocou o colapso de 2008. Com o rebentamento da bolha, os bancos espanhóis ficaram com as mãos cheias de hipotecas que não valem nada e credores de empréstimos que ninguém paga. O estado espanhol teve de intervir para salvar a banca, transferindo assim a dívida privada para o sector público central. Agora que os juros dispararam, ninguém empresta dinheiro barato e esperam-nos a todos anos e anos de cortes nas despesas, 215


com empresas a falirem e o desemprego a aumentar. A vossa sorte é que, ao contrário da Grécia e de Portugal, a Espanha é talvez um país demasiado grande para se deixar cair assim sem mais nem menos.

Mas o tempo do dinheiro fácil, minha cara, acabou. Se calhar para sempre."

O "minha cara" saiu-lhe de propósito, para criar maior proximidade com aquela rapariga de ares distantes, mas ficou na dúvida sobre se ela teria gostado.

"Sim, a Espanha viveu uma loucura de construção", admitiu Raquel, talvez demasiado concentrada no teor da conversa para notar o toque de familiaridade. "O que vemos aqui em Sesefia passa-se um pouco por toda a Espanha. Construímos que nem loucos, muitos empresários modestos fizeram fortunas incríveis na construção civil..."

"Como esse Florentino Pérez, do Real Madrid."

"Exacto. O dinheiro estrangeiro entrava no país a juros baixos, os preços das casas subiam e... toca a construir mais. Espanha transformou-se num estaleiro gigantesco. Só que a crise rebentou, os bancos estrangeiros deixaram de nos emprestar dinheiro, as pessoas deixaram de ter crédito para comprar casa e a bolha do imobiliário... pumba, explodiu! Sem compradores, as construtoras entraram em colapso, atrás delas vieram outras empresas que tiveram de fechar e o desemprego disparou. Mais de cinco milhões de pessoas sem trabalho."

Tomás ergueu dois dedos.

"Vocês têm outros dois problemas relacionados", indicou. "Um é o dos bancos, em particular as cajas, que ficaram totalmente entalados.

Emprestaram dinheiro às construtoras para fazerem esta obra toda e emprestaram dinheiro às pessoas para comprarem as casas que as construtoras faziam. Um clássico esquema piramidal que os vossos governos e o banco central não tiveram a sensatez de travar. A bolha rebentou, o dinheiro deixou de fluir, as pessoas pararam de comprar 216


casa, as construtoras foram à falência e as pessoas que haviam comprado no passado deixaram de pagar os empréstimos.

Conclusão, os bancos ficaram de repente com uma data de propriedades nas mãos que não valem nada porque ninguém as pode comprar." Mostrou o segundo dedo. "O outro problema são as autarquias e os governos regionais, que faziam obras a torto e a direito e financiavam-nas com o dinheiro dos impostos cobrados à custa destes empreendimentos. Como as obras pararam e as vendas também, as receitas dos impostos caíram. Está toda a gente crivada de dívidas e a Espanha inteira a dever centenas de milhares de milhões de euros aos bancos estrangeiros."

Com um gesto de desânimo, Raquel indicou os prédios em redor.

"A Espanha agora é isto."

O automóvel encostou junto ao passeio poeirento e Raquel desligou o motor.

"Chegámos", anunciou. "Vamos."

Tomás apeou-se e olhou em redor. A rua estava deserta e emparedada por prédios vazios e oliveiras solitárias; pareciam espectros em poses teatrais. O silêncio era perturbador e o sopro do vento tornava-o lúgubre. Além das tabuletas de venda e arrendamento, descortinou uma placa com o nome da rua.

Calle Velázquez.

"Você vive aqui?", estranhou. "Neste local abandonado?" A espanhola esperava no passeio que ele se habituasse ao estranho cenário que os cercava.

"Aluguei um apartamento. Porquê?"

O português ficou desconcertado com a pergunta, tão evidente era a resposta.

"Bem, é... é um sítio original."

Raquel fez-lhe sinal de que a seguisse e começou a andar na direcção da entrada de um prédio.

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"O Filipe tinha-me pedido que procurasse um local discreto", explicou. "Mais discreto que isto é impossível, não?"

Tomás estugou o passo e pôs-se ao lado dela.

"Um sítio discreto para quê?"

"Para levar a cabo a investigação, claro. Qualquer que ela seja..."

"Qualquer que ela seja como?", admirou-se o historiador. "Então não sabe qual é a investigação?"

"Claro que não", esclareceu a espanhola, abrindo a porta do prédio e entrando no edifício. "Apenas falei com ele ao telefone e por e-mail e mostrou-se sempre muito cuidadoso com o que dizia, com receio de ser interceptado. Só me faria um briefing completo quando estivéssemos juntos, o que aconteceria depois de ele ter ido a Lisboa. A única coisa que percebi foi que se tratava de uma operação que requeria o maior cuidado."

Entraram no elevador e Raquel carregou no botão do segundo andar. O ascensor deu um solavanco e começou a subir.

"A sua área não é o crime económico ou coisa do estilo?" " N ã o .

S o u u m a m er a o p e r a c i o nal d a I n t e r p ol. " "Então porque a contactou ele?"

"Precisava de protecção. Para quê, não sei."

O elevador chegou ao segundo andar e Tomás abriu a porta, virou-se para a espanhola e, com um gesto galante, fez-lhe uma vénia.

"Faça o favor."

Quando levantou os olhos, viu-a fitá-lo com uma expressão tensa, de predador, gata transformada em fera, uma pistola na mão apontada para ele.

"Quieto, cabrón!", rosnou ela, os olhos verde-claros a chisparem fogo. "Foste apanhado!"




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