XXXIX

De rostos voltados para a parede, pernas abertas e mãos erguidas, Tomás e Raquel sujeitaram-se à revista que lhes foi feita pelo mais corpulento dos assaltantes que haviam invadido o apartamento. O

homem retirou à agente da Interpol a pistola que ela trazia e, aproveitando o embalo, apalpou-lhe o seio.

"Bom material!"

"Tira a pata daí, cabrón!" , vociferou a espanhola, tentando dar-lhe uma sapatada com o cotovelo. "Não te atrevas a tocar-me com essas mãos de porco!"

O assaltante corpulento travou o braço da agente da Interpol e começou a torcê-lo, mas Decarabia deteve-o.

"Quieto!", ordenou. "Primeiro o trabalho, depois a brincadeira."

O homem ainda manteve o braço de Raquel preso nas mãos, debatendo se deveria obedecer ou desafiar a ordem, mas acabou por largá-

la com relutância e atirá-la contra a parede. Depois encostou-se à mulher e aproximou a boca do seu ouvido esquerdo.

"Quando isto acabar", soprou-lhe entre dentes com uma voz a ressumar agressão, "até vais uivar de prazer, minha linda..."

Com os alvos neutralizados e à sua mercê, Decarabia fez-lhes sinal de que se voltassem e indicou-lhes o sofá. Obedientes, os dois sentaram-se no lugar assinalado e Tomás não pôde deixar de reflectir 261


sobre a ironia de ser a segunda vez que se instalava no mesmo sofá com uma arma apontada à cabeça. Era incrível como desde a véspera a sua vicia pacata se havia transformado num verdadeiro filme de Hollywood.

Dando um passo em frente, Decarabia posicionou-se diante do historiador e curvou-se para ele fitando-o nos olhos com intensidade.

"Lembras-te de mim?"

Tomás observou o rosto que o encarava e um súbito fogacho de reconhecimento iluminou-o.

"És o pistoleiro!", exclamou, estarrecido. "O homem que nos perseguiu por Lisboa e matou o... o..."

"... o teu amiguinho abelhudo", sorriu Decarabia. "Sim, sou eu.

Fico contente por não me teres esquecido." "Meu grande filho da..."

Sentindo uma fúria descontrolada apossar-se dele, a meio do insulto Tomás não se conteve e desferiu um murro furioso na direcção do seu captor, mas Decarabia ergueu o braço esquerdo e bloqueou o ataque. Acto contínuo, respondeu com uma bofetada com as costas da mão que segurava a Beretta. O impacto foi tão forte que o português bateu com a nuca na parede.

"O teu amiguinho não se devia ter portado mal", rosnou o agressor em voz baixa. "Ficou com uma coisa que não lhe pertence e isso não é bonito." Voltou a inclinar-se para a sua presa, que parecia atordoada. "Onde está o DVD?"

Apesar de estonteado, Tomás endireitou a cabeça e fez um esforço para focar os olhos no homem que o agredira.

"Qual DVD? Não sei de..."

Uma bofetada fulminante incendiou a face do historiador. "Não te armes em parvo!", rugiu Decarabia. "Onde está a porra do DVD?"

Tomás teve vontade de se encolher para se proteger, mas o orgulho foi mais forte e, ainda aturdido, voltou a encarar o seu adversário.

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"Não tenho nenhum DVD", cuspiu em tom de desafio. "A não ser que te estejas a referir ao último filme do Steven Spielberg, Os Imbecis do DVD Perdido."

Com os olhos fixos na sua presa e a medi-la de alto a baixo, Decarabia endireitou-se e na sua cara desenhou-se um sorriso sem humor, carregado de cinismo e desprezo.

"Estás armado em engraçadinho, hem?", atirou-lhe com desdém.

"Então já vamos ver se vais continuar a rir."

Deu um passo para o lado e, com uni movimento súbito, agarrou no cabelo de Raquel e puxou-o com brutalidade.

"Ai, coño!", gritou ela de dor. "Largame!"

Decarabia mergulhou a mão atrás das costas e extraiu um canivete suíço cio bolso traseiro das calças. Aproximou o canivete da mulher e libertou a lâmina, encostando-a à face dela.

"Vou começar por lhe rasgar esta carinha laroca", anunciou, passeando a lâmina pela pele enrubescida da vítima. "Depois corto-a viva aos bocadinhos, sempre muito devagar e contigo a observar o espectáculo." Arqueou as sobrancelhas para cima e para baixo e soltou uma gargalhada baixa. "Vai ser divertido..."

Vendo Raquel à mercê do agressor e com a lâmina a acariciar-lhe a face, Tomás percebeu que não tinha margem para resistir. Não havia ele visto este mesmo homem a abater um polícia a sangue frio nas ruas de Lisboa em plena luz do dia? Sabia já que ele era capaz de tudo.

Respirou fundo e, de semblante derrotado, baixou Os olhos. "O que quer saber?"

A pergunta arrancou um sorriso a Decarabia, desta vez com naturalidade; ganhara a partida. Recolheu a lâmina, mas manteve o canivete perto da cara da espanhola.

"Onde está o DVD?"

"Não sei."

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O sorriso do agressor desfez-se e, com um movimento dos dedos, soltou de novo a lâmina do canivete e aproximou-a da sua vítima.

"Resposta errada", rosnou. "Vou perguntar outra vez: onde está o DVD?"

"O Filipe escondeu-o", revelou Tomás, falando depressa para evitar o pior. "Não sei onde o pôs, mas ele... ele deu-me uma pista."

"Uma pista?"

"Uma charada para eu decifrar. Ela contém a informação que me conduzirá ao DVD."

O rosto de Decarabia contraiu-se num esgar de perplexidade, como se nada daquilo fizesse sentido.

"Para que raio te deu ele uma charada? Porque não te disse directamente onde estava a porcaria do DVD?"

"Tinha medo que a informação caísse nas mãos erradas", retorquiu o historiador. "Quando éramos miúdos costumávamos brincar às charadas e ele achou que seria boa ideia ocultar assim a informação. Desse modo achava que só eu a poderia quebrar."

Na boca de Decarabia desenhou-se um sorriso retorcido enquanto ele considerava o que acabara de ouvir.

"Essa explicação é de tal modo estapafúrdia que é bem capaz de ser verdadeira", observou. "Onde está a charada?"

O português hesitou, como se duvidasse da sensatez de partilhar tal informação. Porém, a lâmina estava tão perto do rosto da agente da Interpol que ele convenceu-se de que não dispunha de alternativa a colaborar.

"Está rabiscada num envelope que o Filipe me entregou antes de...

enfim, antes de morrer."

O agressor virou-se para trás e passou os olhos perscrutadores pela sala do apartamento, varrendo as mesas e todas as superfícies onde algo pudesse encontrar-se pousado.

"Onde está esse envelope?"

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"No banco."

Arregalou os olhos de surpresa, uma centelha de alarme a atravessar-lhe o rosto.

"Qual banco?"

"Quando cheguei a Madrid fui a um banco e aluguei um cofre. O

envelope foi depositado nesse cofre."

"Um cofre, hem? Se assim é, há-de haver uma chave..."

Com um movimento do braço, executado lentamente para mostrar que não ia fazer nada de ameaçador, Tomás meteu a mão no bolso e extraiu uma pequena chave que exibiu aos captores.

"É esta."

Decarabia pegou na chave e estudou-a com atenção. Depois fitou o historiador e estreitou as pálpebras enquanto o examinava, como se visse através dos olhos dele.

"Espero bem que não me estejas a dar tanga", avisou num tom ameaçador. Fez com o cano da pistola um gesto na direcção de Tomás.

"Vá, levanta-te."

O português ergueu-se com um movimento incerto. "Onde vamos?"

"Ao banco, claro." Indicou o seu companheiro mais corpulento.

"Tu vens comigo." Desviou o olhar para o terceiro assaltante. "Tu ficas com ela. Não lhe toques enquanto a operação não estiver concluída, ouviste? Depois faz-lhe o que entenderes."

Raquel trocou com Tomás um olhar de alarme, como se lhe suplicasse que fizesse alguma coisa.

"Ela... ela tem de vir connosco", titubeou o historiador. "Senão não resulta."

Decarabia carregou as sobrancelhas, surpreendido. "Ora essa!

Porquê?"

"Porque se trata de uma conta conjunta", mentiu. "Foi a condição que impusemos para a abertura do cofre. Temos ambos de estar presentes quando ele for aberto. Se não estivermos os dois, 265


nenhum tem acesso ao cofre."

O olhar de Decarabia dançou entre Tomás e Raquel, que confirmou com um movimento afirmativo da cabeça, e voltou a imobilizar-se no português.

"Não disseste que tinhas aberto sozinho a conta no banco?"

Tomás esboçou uma expressão cheia de inocência.

"Eu? Claro que não. Ela foi buscar-me a Madrid e, antes de me trazer aqui a Seseria, recomendou que se guardasse o envelope num cofre. Como vimos o banco ali ao lado, aproveitamos."

-Decarabia desviou o olhar para os companheiros, como se lhes quisesse pedir a opinião, mas depressa percebeu que dali não viria ajuda; aqueles homens eram executores, não planificadores. Respirou fundo e, fitando Tomás, assentiu com um movimento leve da cabeça.

"Muito bem", acabou por decidir. "Vamos todos."



















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