XXXII

O cano escuro da pistola permanecia voltado para Tomás. O

historiador sentara-se na cadeira que Raquel lhe indicara e sentia-se infinitamente nervoso por estar sob a mira da arma; quem lhe garantia que, devido a um tropeção ou a qualquer outro incidente, ela não premia acidentalmente o gatilho?

"Isto é ridículo!", considerou. "Faça o favor de afastar essa arma, isso ainda pode..."

"Cale-se!", cortou a espanhola numa voz ameaçadora e autoritária. "Nem se atreva a fazer uni gesto brusco, ouviu?"

Intimidado, Tomás obedeceu. Fora revistado com as mãos encostadas à parede e algemado antes de ser atirado para o sofá, atónito com a forma como havia sido traído; não lhe dissera Filipe que esta rapariga era de confiança? O que mais o incomodava, porém, era a pistola; não conseguia desviar os olhos do cano.

A sua captora sentou-se diante dele e cruzou as pernas, ficando a contemplá-lo em silêncio; parecia estar a ponderar as suas opções e a decidir o que faria.

"O que se passa?", arriscou ele. "Porque me algemou?" Raquel manteve o olhar de gata cravado nele.

"Estou aqui a debater-me com uma dúvida", revelou num tom mordaz. "Devo matá-lo ou entregá-lo à polícia portuguesa?" Uma luzinha cintilou-lhe na íris. "O que acha?"

Assim postas as coisas, a opção preferível parecia-lhe a segunda.

Mas Tomás percebeu que não poderia entrar naquele jogo, teria de 221


entender primeiro o que estava a acontecer para poder lidar com a situação.

"Qual é o seu problema?"

A pergunta enrubesceu a espanhola.

"Como se atreve a fazer essa pergunta?", rugiu ela, o olhar a chispar fúria. "Aconselho-o a não brincar comigo."

"Não estou a brincar com ninguém", retorquiu o português de uma forma categórica. "Não percebo o que se está a passar e agradecia que me esclarecesse, se fizer o favor."

Raquel fitou-o com atenção, esforçando-se por lhe ler a expressão do rosto. A convicção que captou deixou-a um tudo-nada desconcertada.

"O senhor é um assassino", acabou por dizer, talvez com menor firmeza do que gostaria. "Matou o Filipe e veio aqui..."

"Eu matei o Filipe?"

O olhar de Tomás ateou-se com uma expressão de tão genuíno escândalo que a sua interlocutora voltou a vacilar. Puxou o computador portátil que tinha pousado sobre a mesa e começou a digitar no teclado com a mão esquerda, a direita sempre a segurar a pistola.

"Depois do seu telefonema esta manhã contactei o meu serviço para verificar se teria havido algum assassínio em Lisboa", revelou.

"Como deve calcular, a notícia que me deu deixou-me em estado de choque. A resposta veio pouco depois por e-mail. Filipe tinha de facto sido morto e a polícia portuguesa emitiu um mandado de captura com o nome do assassino. Mandaram-me a fotografia que Lisboa enviou para a Interpol com o rosto do suspeito. Quando há ROUCO

você veio ter comigo ao Café Nirvana, pode imaginar a minha surpresa ao deparar-me com a sua cara."

Virou o computador para o português com a imagem difundida pela Polícia Judiciária. Previsivelmente, o ecrã mostrava o seu próprio 222


rosto.

"Não sei como explicar-lhe isto", murmurou ele. "Mas eu não matei o Filipe."

"Então como justifica que a polícia do seu país esteja a difundir a sua imagem e o seu nome?"

"Não sei explicar", confessou. "Mas tenho uma teoria. O Filipe deu-me a entender que a sua investigação mexia com pessoas muito poderosas. Tenho de concluir que são suficientemente poderosas para manipular a polícia portuguesa e lançá-la contra mim."

Raquel considerou o argumento.

"Suponhamos que essa teoria é verdadeira", propôs ela. "Porque fariam isso?"

"Porque existe um DVD muito comprometedor e o Filipe estava na posse dele", explicou. "Os homens que o mataram pelos vistos acreditam que ele me passou esse DVD. Estão a usar a polícia para me capturarem e terem acesso a ele."

"O DVD está mesmo consigo?"

Tomás levou um longo instante a responder à pergunta. "Sim e não."

A resposta suscitou o visível desagrado da espanhola. Raquel fez um estalido impaciente com a língua e agitou a pistola.

"Não brinque comigo!", avisou. "Tem ou não tem o DVD do Filipe?"

"Não tenho", foi a resposta directa. "Receio que ele tenha falecido antes de me dizer onde estava esse maldito DVD. Porém, e quando tentava dar-me essa informação, nos seus últimos momentos, o Filipe apontou-me para uma cifra. Presumo pois que ela contenha o paradeiro do DVD."

"Onde se encontra essa cifra?"

"Num envelope que guardei no cofre de um banco, em Madrid, antes de vir para cá", revelou. "Pareceu-me mais seguro."

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A espanhola calou-se. De olhos fixos no seu prisioneiro e a mordiscar o lábio inferior, ficou a amadurecer durante momentos o que acabara de escutar. A pistola dançava na sua mão enquanto ia considerando os vários ângulos do problema, como se os dedos irrequietos reflectissem o debate interior que nesse instante processava mentalmente.

"A sua explicação bate certo com algumas coisas que o Filipe me explicou ao telefone e por e-mail quando pediu a minha ajuda", acabou por admitir. "E há outras duas coisas que jogam a seu favor. A primeira é que está desarmado. Um fugitivo não viria ter com uma agente da Interpol sem uma arma. A segunda deriva das suas motivações. Se é o assassino, por que motivo veio ter comigo? Para quê procurar uma agente da polícia quando na verdade deveria estar a fugir? Que eu saiba não tenho nada que lhe interesse..."

O raciocínio abriu uma janela de esperança em Tomás.

"Justamente."

Raquel semicerrou os olhos, mostrando que havia ainda o outro lado do problema a considerar.

"Para compensar, não posso ignorar a existência de um mandado de captura em seu nome", lembrou. "E, tenho de o dizer, custa-me a acreditar que, considerando todo o secretismo com que Filipe me envolveu nesta operação, o tivesse mandado vir ter comigo sem nada a autenticar a sua idoneidade."

"Ele estava à morte quando me deu o seu nome", justificou-se Tomás. "Não foi nada que tivesse sido planeado, entende?"

"Mesmo assim..."

Os acontecimentos da véspera, incluindo o que se passara dentro do cacilheiro, haviam ficado gravados a fogo na memória do historiador; no fim de contas, não era possível esquecer facilmente coisas daquelas. Mas a informação era tanta que se amontoava quase caoticamente no espírito de Tomás. As palavras da sua 224


captora, porém, acenderam uma luzinha no seu cérebro. Realmente, seria natural que Filipe lhe tivesse passado algo a autenticá-lo junto de Raquel. Agora que ela falava nisso, e pensando bem, o amigo moribundo dissera de facto qualquer coisa que... que...

"Diz-lhe que não vou poder levá-la à Disneylândia!" A agente da Interpol arregalou os olhos.

"Perdão?"

"Foi o recado que ele deu quando me pediu que viesse ter consigo", explicou o português, a lembrança da conversa ainda fresca, os pormenores a realinharem-se como peças de um puzzle.

"Diz-lhe que não vou poder levá-la à Disneylândia.' Foram exactamente essas as palavras que o Filipe proferiu quando me deu o seu contacto."

Raquel pareceu ficar abalada. As pálpebras humedeceram e o olhar tornou-se brilhante; era evidente que a frase queria dizer alguma coisa pessoal para ela. Ao fim de um longo instante respirou fundo e baixou enfim a pistola.

"Muy bien", disse. "Estou convencida."

O português bufou de alívio.

"Ufa, ainda bem!", sorriu. "Estava a ver que esta história ia acabar mal!..."

Raquel levantou-se e, abrindo o colete carmesim, guardou a arma num coldre preso por baixo do braço esquerdo. Depois aproximou-se dele e inseriu uma chave nas algemas. Libertou-o e afastou-se em direcção à cozinha.

"Tem fome?", perguntou, atirando um olhar ao seu interlocutor. "Quer tomar alguma bebida?"

"Confesso que era menino para trincar qualquer coisinha. O que tem por aí que se coma?"

"Paella."

Tomás revirou os olhos, desagradado; os arrozes espanhóis, secos e 225


salgados, estavam longe de ser os seus pratos favoritos. Mas poderia dar-se ao luxo de ser exigente? A mãe costumava dizer-lhe que em tempo de guerra até ratos se comem. Até nova ordem, paella era infinitamente melhor que rato.

"Óptimo."

Ouviu pratos a tilintar na cozinha, o som de uma portinha a fechar e o zumbido de um microondas a funcionar. Três minutos depois, Raquel reapareceu na sala a segurar uma bandeja com dois pratos e dois copos de vinho tinto. Pousou a bandeja sobre a mesa e convidou o historiador a sentar-se. Depois de se acomodar, Tomás meteu a primeira garfada à boca e, saboreando a comida, sorriu.

"Foi feito ontem", revelou a anfitriã. "Está bom?" Era horrível.

"Excelente!", mentiu ele. "Uma maravilha!"

Em boa verdade, a fome mitigava o desagrado que a paella lhe suscitava. Preferia mil vezes os arrozes portugueses, molhados e suculentos, mas naquelas circunstâncias o apetite dominava e, após as primeiras garfadas, até começou a achar que o seu prato talvez não fosse tão mau quanto isso, sobretudo quando regado com o Rioja.

"Ternos de desenvolver um plano de acção", sentenciou ela. "Tem alguma coisa em mente?"

Tomás mastigou à pressa o que tinha na boca; falar com arroz a entaramelar-lhe a língua não fazia o seu género.

"O plano de acção é muito simples", disse depois de engolir a comida. "Deixe-me descansar ao longo do dia de hoje." Pôs-se a gesticular com o garfo. "Amanhã de manhã vamos a Madrid, levantamos o material que o Filipe me passou e vou tentar decifrar a chave que nos conduzirá ao DVD. O resto será fácil. Vamos buscar esse maldito DVD, espreitamos o que está lá dentro e entregamos o material ao Tribunal Penal Internacional." Encolheu os ombros. "Como vê, nada mais elementar."

A espanhola arqueou uma sobrancelha.

"O Filipe já me tinha falado no TPI", observou. "Mas confesso não 226


perceber bem porquê."

"O TPI abriu um processo aos responsáveis pela crise por crimes contra a humanidade. O DVD contém material relevante para esse processo."

"Tem alguma ideia do que seja?"

Tomás balançou afirmativamente a cabeça.

"O conteúdo é explicado num dossiê que o Filipe me entregou.

Trata-se de matéria muito sensível relacionada com a crise."

"Ah, bueno", assentiu Raquel. "Confesso, no entanto, que não percebo bem a natureza da crise."

"Sabe ao menos como foi ela desencadeada, não?" "Quem não sabe? A bolsa caiu em Nova Iorque e... alastrou pelo planeta."

O português meteu mais uma porção de arroz à boca e esforçou-se por mastigar rapidamente. Depois de engolir encarou a sua interlocutora.

"Está habituada a lidar com crimes?"

"Com certeza", foi a resposta pronta. Enfrentar crimes é a minha profissão."

Tomás pousou o garfo no prato e sorriu, uma expressão de desafio a bailar-lhe no rosto.

"Então vou contar-lhe como foi executado o crime do século."











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