9
5h25m
O patologista da polícia, dr. Meng, ajustou o foco do microscópio e examinou a lasca de carne que cortara da orelha. Brian Kwok observava-o, impaciente. O médico era um can-tonense pequeno e pedante, com óculos de lentes grossas encarapitados na testa. Finalmente, ergueu os olhos, e os óculos caíram convenientemente sobre seu nariz.
— Bem, Brian, pode ter sido cortada de uma pessoa viva, e não de um cadáver... possivelmente. Possivelmente dentro das últimas oito ou dez horas. A machucadura... aqui, olhe aqui atrás — o dr. Meng mostrou delicadamente a descoloração atrás e em cima —, isso certamente indica para mim que a pessoa estava viva na hora do corte.
— Por que a machucadura, dr. Meng? O que a causou? O corte?
— Podia ter sido causada por alguém que estivesse segurando firmemente o espécime — falou o dr. Meng, cautelosamente — enquanto era removido.
— Pelo quê? Faca, navalha, canivete, ou um cutelo chinês... cutelo de cozinha?
— Por um instrumento cortante. Brian Kwok soltou um suspiro.
— E isso poderia matar alguém? O choque? Uma pessoa como John Chen?
O dr. Meng formou um triângulo com os dedos.
— Poderia, possivelmente. Possivelmente não. Ele tem problemas cardíacos?
— O pai disse que não; ainda não falei com o médico particular dele, o sacana está de férias, mas John sempre demonstrou gozar de boa saúde.
— Esta mutilação provavelmente não mataria um homem saudável, mas ele se sentiria muito desconfortável por uma ou duas semanas. — O doutor abriu um sorriso. — Muito desconfortável, mesmo.
— Meu Deus! — exclamou Brian. — Não pode me dizer nada que me ajude?
— Sou um patologista forense, Brian, não um vidente.
— Não dá para me dizer se a orelha é eurasiana... ou apenas chinesa?
— Não. Não, com este espécime seria quase impossível. Mas certamente não é anglo-saxã, indiana ou negróide. — O dr. Meng tirou os óculos e fitou com olhar míope o superintendente alto. — Isto poderia possivelmente causar uma agitação e tanto na Casa de Chen, heya?
— É, e na Casa Nobre. — Brian Kwok pensou por um momento. — Na sua opinião, este Lobisomem, este maníaco, diria que ele é chinês?
— A escrita pode ser de uma pessoa instruída. Igualmente, pode ser de um quai loh fingindo ser uma pessoa instruída. Mas se ele ou ela era uma pessoa instruída, isso não significa necessariamente que a mesma pessoa que cometeu a ação tenha escrito a carta.
— Sei disso. Quais as probabilidades de que John Chen esteja morto?
— Pela mutilação?
— Pelo fato de que o Lobisomem, ou mais provavelmente os Lobisomens, mandaram a orelha sem sequer dar início às negociações.
O homenzinho sorriu e falou, secamente:
— Está se referindo ao ditado do velho Sun Tse "Mate um para aterrorizar dez mil"? Não sei. Não faço especulações sobre coisas tão imponderáveis. Calculo apenas as probabilidades dos cavalos, Brian, ou da Bolsa de Valores. Que tal a Golden Lady de John Chen no sábado?
— Tem grandes chances. Definitivamente. E a Noble Star de Struan, o Pilot Fish de Gornt, e mais ainda, a Butter-scotch Lass de Richard Kwang. Nesta favorita é que vou apostar. Mas Golden Lady é uma lutadora. Vai começar com três contra um. Corre muito, e a pista lhe vai ser favorável. Seca. Não dá nada na pista molhada.
— Ah, e algum sinal de chuva?
— É possível. Dizem que vem temporal por aí. Até um chuvisco pode fazer diferença.
— Então, é melhor que não chova até domingo, heya?
— Não vai chover este mês... só se tivermos uma sorte enorme.
— Bem, se chover, chove, e se não chover, não chove, e daí! O inverno já vem vindo... então esta maldita umidade irá embora. — O dr. Meng deu uma olhada para o relógio de parede. Eram cinco e trinta e cinco da tarde. — Que tal um traguinho rápido antes de irmos para casa?
— Não, obrigado. Ainda tenho umas coisinhas para fazer. Mas que abacaxi danado, esse!
— Amanhã verei se posso arrumar algumas pistas no pano, no papel de embrulho ou nas outras coisas. Quem sabe as impressões digitais serão de alguma ajuda — acrescentou o médico.
— Não estou apostando nisso. Essa história toda me cheira mal, me cheira muito mal, mesmo.
O dr. Meng concordou, e sua voz perdeu a suavidade.
— Qualquer coisa ligada à Casa Nobre e à sua marionete, a Casa de Chen, cheira mal, não é?
Brian Kwok passou a conversar em sei yap, um dos principais dialetos da província de Kwantung, falado por muitos dos cantonenses de Hong Kong.
— Ei, irmão, não quer dizer que todo e qualquer cão capitalista cheira mal, e que a Casa Nobre e a Casa de Chen têm os que mais fedem a bosta? — disse, caçoando.
— Ah, Irmão, não sabe ainda, bem dentro da sua cabeça, que os ventos da mudança estão varrendo o mundo? E que a China, sob a orientação imortal do presidente Mao, e do Pensamento de Mao, lide...
— Guarde a sua doutrinação para si mesmo — disse Brian Kwok friamente, voltando a falar em inglês. — A maioria dos pensamentos de Mao é tirada dos escritos de Sun Tse, Confúcio, Marx, Lao-Tse e outros. Sei que ele é um poeta... um grande poeta... mas usurpou a China, e agora ali não existe liberdade. Nenhuma.
— Liberdade? — replicou desafiadoramente o homenzinho. — O que significa a liberdade por alguns anos, quando, sob a liderança do presidente Mao, a China voltou a ser a China, e retomou o seu lugar de direito no mundo? Agora, a China é temida por todos os capitalistas nojentos! Até mesmo pela Rússia revisionista.
— É. Concordo. E por isso eu agradeço a ele. Entrementes, se não gosta daqui, volte para Cantão e vá trabalhar até gastar os colhões no seu paraíso comunista, e dew neh loh moh para todos vocês, comunistas... e seus seguidores da mesma estirpe!
— Você devia ir para lá, para ver por si mesmo. É pura propaganda que o comunismo é ruim para a China. Não lê os jornais? Agora não há ninguém passando fome.
— E quanto aos vinte e tantos milhões que foram assassinados após a tomada do poder? E quanto a toda a lavagem cerebral?
— Mais propaganda! Só porque freqüentou escolas inglesas e canadenses, e fala feito um porco capitalista, não quer dizer que seja um deles. Lembre-se das suas origens.
— Lembro. E muito bem.
— Seu pai errou quando o mandou embora!
Todos sabiam que Brian Kwok nascera em Cantão, e que, aos seis anos de idade, fora a Hong Kong para estudar. Foi um estudante tão bom que, em 1937, aos doze anos, ganhou uma bolsa de estudos para uma excelente escola particular em Londres, e seguiu para lá, e depois, em 1939, com o começo da Segunda Guerra Mundial, toda a escola foi transferida para o Canadá. Em 1942, aos dezoito anos, formou-se em primeiro lugar como monitor, e entrou para a Real Polícia Montada do Canadá, no setor à paisana, no imenso Bairro Chinês de Vancouver. Falava cantonense, mandarim, sei yap, e serviu com distinção. Em 1945, solicitou transferência para a Real Polícia de Hong Kong. Com a aprovação relutante da RPMC, que queria que continuasse lá, voltou a Hong Kong.
— Você está perdendo tempo trabalhando para eles, Brian — continuou o dr. Meng. — Devia servir às massas e trabalhar para o partido!
— O partido assassinou meu pai e minha mãe, e a maioria da minha família, em 43!
— Nunca se provou isso! Nunca. Foram boatos. Talvez os demônios do Kuomintang o tenham feito... havia caos àquela época em Cantão. Eu estava lá, eu sei! Talvez os porcos japoneses tenham sido os responsáveis... ou as tríades... quem sabe? Como pode estar certo?
— Estou certo, por Deus.
— Houve alguma testemunha? Não! Você mesmo me contou! — A voz de Meng era áspera, e ele ergueu os olhos míopes para Kwok. — Ayeeyah, você é chinês, use a sua educação para a China, para as massas, não para o amo capitalista.
— Vá tomar no rabo!
O dr. Meng riu, e os óculos caíram para cima do nariz.
— Espere só, superintendente Kar-shun Kwok. Um dia, seus olhos se abrirão. Um dia verá toda a beleza da coisa.
— Enquanto isso não ocorre, trate de me arranjar umas respostas!
Brian Kwok saiu com largas passadas do laboratório e subiu o corredor até o elevador, com a camisa grudada às costas. "Gostaria que chovesse", pensou.
Entrou no elevador. Outros policiais o cumprimentaram, e ele retribuiu o cumprimento. Saltou no terceiro andar e caminhou pelo corredor até o seu gabinete. Armstrong estava à sua espera, lendo preguiçosamente um jornal chinês.
— Oi, Robert — disse ele, satisfeito ao ver o outro. — O que há de novo?
— Nada. E com você?
Brian Kwok contou-lhe o que o dr. Meng dissera.
— Aquele sacana e os seus "possivelmente"! A única coisa sobre a qual é enfático é um cadáver... e mesmo assim tem que verificar umas duas vezes.
— É... ou sobre o presidente Mao.
— Ah, tocou de novo esse disco quebrado?
— Foi. — Brian Kwok sorriu. — Disse-lhe que voltasse para a China.
— Jamais irá embora.
— Eu sei. — Brian ficou olhando para uma pilha de papéis na sua mesa, e soltou um suspiro. Depois, falou: — Não faz o gênero do pessoal daqui cortar uma orelha tão cedo.
— Não, não se for um seqüestro de verdade.
— Como?
— Podia ser uma vingança, e o seqüestro ser só um disfarce — falou Armstrong, o rosto gasto endurecendo. — Concordo com você e Dunross. Acho que já o mandaram desta para melhor.
— Mas, por quê?
— Talvez John estivesse tentando fugir, talvez tenha começado uma luta, e eles ou ele entraram em pânico, e antes que eles ou ele soubessem o que se passava, eles ou ele o esfaquearam ou o acertaram na cabeça com um instrumento rombudo. — Armstrong suspirou e espreguiçou-se para aliviar a pressão nos ombros. — De qualquer modo, meu caro, nosso Grande Pai Branco quer isso resolvido rapidamente. Honrou-me com um telefonema para dizer que o governador ligara-lhe pessoalmente para expressar sua preocupação.
Brian Kwok praguejou baixinho.
— Notícias ruins correm depressa! Nada ainda nos jornais?
— Não, mas toda a Hong Kong já sabe, e teremos um vento em brasa soprando nos nossos traseiros amanhã de manhã. O Sr. Maldito Lobisomem... assistido pela imprensa bexiguenta... malvada e não-cooperativa de Hong Kong... nos causará somente aborrecimentos, temo eu, até que prendamos o filho da mãe, ou os filhos da mãe.
— É. Mas nós vamos pegá-lo, ora se vamos!
— É. E que tal uma cerveja... ou melhor, um gim com tônica bem grande? Bem que me agradaria.
— Boa idéia. Seu estômago está ruim de novo?
— Está. Mary diz que são todos os bons pensamentos que guardo dentro de mim.
Riram juntos e dirigiram-se para a porta; já estavam no corredor quando o telefone tocou.
— Ignore o danado, não atenda, só pode ser problema — disse Armstrong, sabendo que nem ele nem Brian deixariam de atender.
Brian Kwok pegou o telefone e ficou petrificado. Era Roger Crosse, superintendente-chefe, diretor do Serviço Especial de Informações.
— Pronto, senhor?
— Brian, quer subir imediatamente?
— Sim, senhor.
— Armstrong está com você?
— Está, sim, senhor.
— Traga-o, também.
O telefone foi desligado.
— Sim, senhor. — Recolocou o fone no gancho, sentindo as costas molhadas de suor. — Deus está nos chamando, e rapidinho.
O coração de Armstrong bateu descompassado.
— Quem, eu? — Juntou-se a Brian, que se dirigia para o elevador. — Para que diabo ele me quer? Não pertenço mais ao sei.
— Não nos cabe perguntar por quê, cabe-nos apenas cagar nas calças quando ele murmura. — Brian Kwok apertou o botão do elevador. — O que estará havendo?
— Tem que ser importante. Será o continente?
— Chu En-lai derrubou Mao e os moderados estão no poder?
— Sonhador! Mao vai morrer no posto, a Divindade da China.
— A única coisa boa que se pode dizer de Mao é que é chinês em primeiro lugar, e comuna em segundo. Amaldiçoados comunas!
— Ei, Brian, quem sabe os soviéticos não estão criando caso de novo na fronteira! Outro incidente?
— Quem sabe. É. A guerra está chegando... é, a guerra entre a Rússia e a China. Mao está certo nisso, também,
— Os soviéticos não são assim tão estúpidos.
— Não faça apostas, meu velho. Já disse e repeti antes, os soviéticos são o inimigo do mundo. Vai haver guerra... logo você vai me dever mil dólares, Robert.
— Não gostaria de pagar essa aposta. A matança será pavorosa.
— É. Mas, ainda assim, vai acontecer. Mao está certo, outra vez. Será realmente pavorosa... mas não catastrófica. — Brian Kwok apertou de novo o botão do elevador, com irritação. Ergueu os olhos, subitamente. — Será que finalmente foi iniciada a invasão, vinda de Formosa?
— Qual é, Brian! Fantasia? Deixe disso! Chang Kai-chek jamais sairá de Formosa.
— Se não sair, o mundo todo ficará atolado na pilha de estrume. Se Mao tiver trinta anos para consolidar... Meu Deus, você nem imagina! Um bilhão de autômatos? Chang é que estava certo em perseguir os comunas sacanas... são eles os verdadeiros inimigos da China. São a praga da China. Santo Deus, se tiverem tempo para condicionar todos os garotos!
— Você fala exatamente como um nacionalista militante — disse Armstrong suavemente. — Esfrie a cuca, rapaz, tudo está uma bosta no mundo, que não é nem nunca será normal... mas você, cão capitalista, pode correr no sábado, fazer alpinismo no domingo, e há sempre muitas gatinhas para comer. Certo?
— Desculpe. — Entraram no elevador. — Aquele sacana do Meng me tirou do sério — disse Brian, apertando o botão do último andar.
Armstrong passou a falar em cantonense.
— Dane-se a sua mãe com o seu desculpe, Irmão.
— E a sua foi enfiada por um macaco vagabundo com um só testículo num balde de excrementos de um porco.
Armstrong riu de orelha a orelha.
— Nada mau, Brian — falou, em inglês. — Nada mau mesmo.
O elevador parou. Seguiram pelo corredor pardacento. Diante da porta, prepararam-se, Brian bateu suavemente.
— Entre.
Roger Crosse estava na casa dos cinqüenta anos, um homem alto e magro de olhos azuis muito claros e cabelos louros, que começavam a ficar ralos, e mãos pequenas, de dedos longos. Sua mesa era meticulosamente arrumada, como suas roupas civis — um gabinete espartano. Indicou as cadeiras. Sentaram-se. Continuou lendo uma pasta. Quando acabou, fechou-a com cuidado e colocou-a diante de si. A capa era pardacenta, comum, de uso dos gabinetes.
— Um milionário americano chega com armas contrabandeadas, um milionário xangaiense muito suspeito, ex-traficante de drogas, foge para Formosa, e agora um seqüestro com, Deus nos ajude, Lobisomens e uma orelha mutilada. Tudo isso em dezenove horas e uns quebrados. Onde está a ligação? Armstrong rompeu o silêncio.
— E deveria haver alguma, senhor?
— Não deveria?
— Desculpe, senhor, não sei. Ainda.
— Isso é muito chato, Robert, muito chato mesmo.
— Sim, senhor.
— Tedioso, para falar a verdade, especialmente porque os poderes lá de cima já começaram a respirar pesadamente no meu pescoço. E quando isso acontece... — Sorriu para eles, e ambos reprimiram um arrepio. — Claro, Robert, eu lhe avisei ontem que nomes importantes poderiam estar envolvidos.
— Sim, senhor.
— Bem, Brian, estamos preparando você para um alto posto. Não acha que podia desviar sua atenção de corridas de carro, corridas de cavalo e rabos-de-saia, e aplicar alguns dos seus talentos incontestes na solução deste modesto enigma?
— Sim, senhor.
— Por favor, faça-o. E bem depressa. Está designado para o caso juntamente com o Robert, porque pode requerer a sua perícia... durante os próximos dias. Quero essa história solucionada muito, mas muito depressa mesmo, pois temos um ligeiro problema. Um dos nossos amigos americanos no consulado ligou para mim ontem à noite. Particularmente. — Fez um gesto na direção da pasta. — Este é o resultado. Com a dica dele interceptamos o original nas horas mortas... é claro que esta é uma cópia, o original foi devolvido, naturalmente, e o... — ele hesitou, escolhendo a palavra correta — mensageiro, um amador, diga-se de passagem, saiu sem ser incomodado. É um relatório, uma espécie de análise confidencial de notícias com diferentes cabeçalhos. São todos muito interessantes. É, são. Um deles diz "KGB na Ásia". Alega que têm uma rede de espionagem ultra-secreta, da qual nunca ouvi falar, de codinome "Sevrin", com gente hostil de alto nível em posições-chaves no governo, na polícia, no empresariado, ao nível dos tai-pans, espalhada por todo o sudeste asiático, especialmente aqui em Hong Kong.
Um assobio mudo escapou dos lábios de Brian Kwok.
— Isso mesmo — disse Crosse, amavelmente. — Se for verdade.
— E acha que é, senhor? — perguntou Armstrong.
— Francamente, Robert, talvez você esteja precisando de uma aposentadoria precoce por motivos de saúde: está de miolo mole. Se eu não estivesse preocupado, acha que me submeteria ao prazer infeliz de solicitar a assistência do DIC de Kowloon?
— Não, senhor. Desculpe, senhor.
Crosse virou a pasta para eles, e abriu-a na página inicial. Os dois homens soltaram uma exclamação abafada. Dizia: "Confidencial, somente para Ian Dunross. Entregue em mãos, relatório 3/1963. Uma única cópia".
— É — continuou Crosse. — É. Esta é a primeira vez que temos provas concretas de que a Struan tem seu próprio sistema de informações. — Sorriu para eles, que ficaram arrepiados. — Certamente me agradaria saber como os negociantes conseguem estar a par de todo tipo de informações muito íntimas que devíamos saber séculos antes deles.
— Sim, senhor.
— É óbvio que o relatório faz parte de uma série. Ah, sim, e este aqui está assinado pelo Comitê de Pesquisas da Struan 16, por um certo A. M. Grant... datado em Londres, há três dias.
Brian Kwok soltou nova exclamação.
— Grant? Seria o Alan Medford Grant, associado do Instituto de Planejamento Estratégico de Londres?
— Nota 10, Brian, não errou uma. É. O Sr. A. M. Grant em pessoa. O Sr. VIP, o conselheiro do governo de Sua Majestade para negócios sigilosos, que sabe distinguir alhos de bugalhos. Conhece-o, Brian?
Brian Kwok respondeu:
— Encontrei-o umas duas vezes na Inglaterra o ano passado, senhor, quando fiz o curso para oficiais superiores da Escola do Estado-Maior. Apresentou um trabalho sobre as considerações estratégicas avançadas no Extremo Oriente. Brilhante. Absolutamente brilhante.
— Felizmente ele é britânico e está do nosso lado. Mesmo assim... — Crosse soltou outro suspiro. — Espero sinceramente que ele esteja enganado desta vez, ou estamos mais atolados do que até eu imaginava. Parece que poucos dos nossos segredos ainda são segredos. Cansativo. Muito. E quanto a isso — tocou de novo na pasta —, estou realmente muito chocado.
— O original foi entregue, senhor? — quis saber Armstrong.
— Foi. A Dunross, pessoalmente, às quatro horas e dezoito minutos desta tarde. — A voz dele ficou ainda mais sedosa. — Felizmente, graças a Deus, minhas relações com nossos primos de além-mar são de primeira classe. Como as suas, Robert... e ao contrário das suas, Brian. Nunca realmente gostou dos Estados Unidos, não é, Brian?
— Não, senhor.
— Por quê, posso perguntar?
— Falam demais, senhor, e não dá para a gente lhes confiar nenhum segredo... são escandalosos, e acho que são burros.
Crosse sorriu apenas com os lábios.
— Não é motivo para não se dar bem com eles, Brian. Quem sabe o burro não é você?
— Sim, senhor.
— Não são todos burros, de jeito nenhum.
O diretor fechou a pasta, mas deixou-a virada para eles, que a fitavam, fascinados.
— Os americanos contaram como descobriram sobre a pasta, senhor? — perguntou Armstrong, sem pensar.
— Robert, creio realmente que sua sinecura em Kowloon deixou você de miolo mole. Devo recomendá-lo para uma aposentadoria por razões de saúde?
O grandalhão se crispou todo.
— Não, senhor. Obrigado, senhor.
— Nós lhes revelaríamos as nossas fontes?
— Não, senhor.
— Eles me diriam, se eu fosse grosso a ponto de lhes perguntar?
— Não, senhor.
— Essa história toda é muito tediosa, e cheia de desprestígio. Para mim. Não concorda, Robert?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Ainda bem.
Crosse recostou-se na sua cadeira, balançando-a. Seus olhos não se desgrudavam dos dois homens. Ambos se perguntavam quem dera a dica, e por quê.
"Não pode ter sido a CIA", pensava Brian Kwok. "Teria interceptado a informação ela mesma, não precisa do sei para fazer seu trabalho sujo. Aqueles filhos da mãe malucos fariam qualquer coisa, pisariam em todo mundo", pensou, enojado. "Se não foram eles, quem?
"Quem?
"Deve ter sido alguém que pertence aos serviços de informações, mas que não pode, ou não pôde, interceptar o material, alguém que se dá bem, com segurança, com Crosse. Um funcionário consular? É possível, Johnny Mishauer, do Serviço Naval de Informações? Fora do seu campo. Quem? Não há muitos que... Ah, o sujeito do FBI, o protegido de Crosse! Ed Langan. Bem, e como Langan saberia desta pasta? Informações de Londres? É possível, mas o FBI não tem escritório lá. Se a dica veio de Londres, provavelmente a MI-5 ou 6 teriam sabido dela primeiro, e eles dariam um jeito de arranjar o material na fonte, e o teriam mandado por telex para nós, dando-nos o maior esporro por sermos incapazes no nosso próprio quintal. O avião do mensageiro pousou no Líbano? Parece que me lembro de um homem do FBI. Se não foi do Líbano ou de Londres, a informação deve ter vindo do próprio avião. Ah, um delator amistoso que estava presente e viu a pasta, ou a capa? Tripulação? Ayeeyah! Será que o avião era da twa ou da Pan Am? O FBI tem todo tipo de ligações, ligações estreitas... com todo tipo de empresas comuns, e acertadamente. Ah, sim. Há um vôo de domingo? Há. Pan Am, hora aproximada de chegada: vinte e trinta. Tarde demais para uma entrega noturna, na hora em que se chegasse ao hotel. Perfeito."
— É estranho que o mensageiro tenha vindo pela Pan Am e não pela boac... o vôo é muito melhor — disse, satisfeito com o modo oblíquo pelo qual sua mente funcionara.
— É, foi o que pensei — disse Crosse, serenamente. — Terrivelmente antibritânico da parte dele. Claro que a Pan Am sempre pousa na hora, enquanto com a pobre velha boac nunca se sabe, hoje em dia... — Fez um gesto de cabeça afável na direção de Brian. — Nota 10, de novo. É o primeiro da classe.
— Obrigado, senhor.
— O que mais você deduziu? Após uma pausa, Brian Kwok disse:
— Em troca da dica, o senhor concordou em dar a Langan uma cópia exata da papelada.
— E...?
— E lamenta ter cumprido o prometido. Crosse soltou um suspiro.
— Por quê?
— Só saberei depois de ter lido o que contém a pasta.
— Brian, você está realmente se superando, hoje. Ótimo. — Distraidamente, o diretor ficou brincando com a pasta, e os dois homens sabiam que ele os estava provocando, deliberadamente, mas nenhum sabia por quê. — Há uma ou duas coincidências muito curiosas em outras seções desta pasta. Nomes como Vincenzo Banastasio... locais de encontro como o Sinclair Towers... O nome Nelson Trading significa algo para qualquer um de vocês?
Ambos sacudiram a cabeça.
— Tudo muito curioso. Comunas à nossa direita, comunas à nossa esquerda... — Os olhos dele ficaram ainda mais duros.
— Parece que temos um homem mau nas nossas próprias fileiras, possivelmente a nível de superintendente.
— Impossível! — exclamou Armstrong, involuntariamente.
— Durante quanto tempo esteve conosco no sei, meu rapaz?
Armstrong quase se encolheu.
— Dois turnos, quase cinco anos, senhor.
— O espião Sorge era impossível, Kim Philby era impossível, santo Deus, Philby! — A súbita deserção para a Rússia soviética, em janeiro daquele ano, desse inglês, desse antigo agente destacado da MI-6, o serviço de informações militar britânico para espionagem e contra-espionagem além-mar, fizera correr ondas de choque por todo o mundo ocidental, especialmente porque, até recentemente, Philby fora primeiro-secretá-rio da embaixada britânica em Washington, responsável pela ligação com os departamentos de Estado e da Defesa dos Estados Unidos e a CIA sobre todos os assuntos de segurança, no mais alto nível. — Como, em nome de tudo o que é sagrado, podia ter sido um agente soviético por todos esses anos, e continuar despercebido? É impossível, não é, Robert?
— Sim, senhor.
— E no entanto continuou, e esteve por dentro dos nossos principais segredos durante anos. Sem dúvida, de 42 a 58. E onde começou a espionar? Deus nos ajude, em Cambridge, em 1931. Recrutado para o partido por outro arquitraidor, Burgess, também de Cambridge, e seu amigo Maclean, que ambos queimem no inferno por toda a eternidade. — Alguns anos antes, esses dois diplomatas do Ministério do Exterior, em importantes colocações (ambos haviam sido do Serviço de Informações, durante a guerra), haviam fugido abruptamente para a Rússia segundos antes de serem apanhados pelos agentes da contra-espionagem britânica, e o escândalo que se seguiu abalara os alicerces da Grã-Bretanha e de toda a OTAN. — Quem mais recrutaram eles?
— Não sei, senhor — respondeu Armstrong, cautelosamente. — Mas pode apostar que agora são todos VIPS no governo, no Ministério do Exterior, no setor da educação, na imprensa, especialmente na imprensa, e como Philby, todos muito bem entocados.
— Com as pessoas, nada é impossível. Nada. As pessoas são realmente terríveis. — Crosse deu um suspiro e endireitou levemente a pasta. — É. Mas é um privilégio pertencer ao sei, não é, Robert?
— Sim, senhor.
—. É preciso ser convidado, não é? Não se pode entrar como voluntário, pode?
— Não, senhor.
— Nunca lhe perguntei por que não ficou conosco, perguntei?
— Não, senhor.
— E então?
Armstrong gemeu intimamente e respirou fundo.
— É porque gosto de ser policial, senhor, não um homem de capa-e-espada. Gosto de trabalhar no DIC. Gosto de medir inteligência com o bandido, gosto da caçada e da captura, e depois de provar tudo no tribunal, segundo as regras... a lei, senhor.
— Ah, mas no sei não agimos assim, não é? Não estamos interessados em tribunais ou leis ou coisa nenhuma, só nos resultados?
— O SEI e a SB têm regras diferentes, senhor — disse Armstrong, com cuidado. — Sem eles, a colônia estaria liquidada.
— É, estaria sim. As pessoas são terríveis, e os fanáticos se multiplicam como vermes num cadáver. Você foi um bom agente secreto. Agora me parece que chegou a hora de pagar todas as horas e meses de treinamento cuidadoso que teve, às expensas de Sua Majestade.
O coração de Armstrong baqueou duas vezes, mas ele ficou calado, apenas prendeu a respiração, e agradeceu a Deus porque nem mesmo Crosse poderia transferi-lo do DIC contra a sua vontade. Ele detestara os períodos passados no sei — no começo, fora excitante, e o fato de ter sido escolhido representava um grande voto de confiança, mas logo perdeu a graça —, os ataques súbitos contra os bandidos, nas horas mortas, interrogatórios in camera, nenhuma preocupação sobre a existência de provas concretas, apenas resultados e uma ordem secreta e rápida de deportação assinada pelo governador, depois a viagem imediata até a fronteira, ou até um junco com destino a Formosa, sem apelação ou volta. Jamais.
— Não é o estilo britânico, Brian — sempre comentara com o amigo. — Sou a favor de um julgamento justo, público.
— E que diferença faz? Seja prático, Robert. Sabe que os sacanas são todos culpados... são o inimigo, agentes inimigos comunas que se valem de nossas regras para continuar aqui, destruindo-nos e à nossa sociedade... auxiliados por alguns advogados filhos da mãe que fariam qualquer coisa por trinta moedas de prata, ou menos. A mesma coisa no Canadá. Santo Deus, cortávamos um dobrado na RPMC, nossos próprios advogados e políticos eram o inimigo, e canadenses recentes, curiosamente sempre britânicos, líderes dos sindicatos socialistas que estavam sempre na dianteira de qualquer agitação. Que diferença faz, contanto que a gente se livre desses parasitas?
— Faz diferença, no meu modo de pensar. E aqui não há só bandidos comunistas. Há um bocado de bandidos nacionalistas que querem...
— Os nacionalistas querem que os comunas saiam de Hong Kong, só isso.
— Uma ova! Chang Kai-chek queria tomar posse da colônia, depois da guerra. Foi a marinha britânica que o deteve, depois que os americanos abriram mão de nós. Ainda deseja ser o nosso soberano. Nesse aspecto, não é diferente de Mao Tsé-tung!
— Se o sei não tiver a mesma liberdade que o inimigo, como vamos evitar que ele nos aniquile?
— Brian, meu rapaz, só disse que eu não gosto de pertencer ao sei. Você vai adorá-lo. Eu só quero ser um tira, não um maldito Bond!
"É", pensou Armstrong, sombriamente, "só um tira, no DIC, até me aposentar e voltar para a boa e velha Inglaterra. Santo Deus, tenho problemas de sobra com os amaldiçoados Lobisomens." Olhou para Crosse, mantendo a fisionomia cuidadosamente impassível, e esperou.
Crosse o observou, depois deu uma batidinha na pasta.
— Segundo isto aqui, estamos muito mais atolados na lama do que até mesmo eu imaginava. Muito deprimente. É. — Ergueu os olhos. — Este relatório se refere a outros, anteriores, enviados a Dunross. Gostaria de vê-los o mais depressa possível. Rápida e discretamente.
Armstrong olhou para Brian Kwok.
— Que tal Claudia Chen?
— Não. Nem pensar. De jeito nenhum.
— Então o que sugere, Brian? — perguntou Crosse. — Imagino que meu amigo americano vá ter a mesma idéia... e se ele foi mal orientado o bastante para passar adiante a pasta, uma cópia dela, para o diretor da CIA aqui... eu realmente me sentiria muito deprimido se eles chegassem lá primeiro de novo.
Brian Kwok pensou por um momento.
— Podíamos mandar uma equipe especializada aos escritórios executivos e à cobertura do tai-pan, mas levaria tempo... não sabemos onde procurar... e teria que ser à noite. Poderia ser complicado, senhor. Os outros relatórios, se é que existem, podem estar num cofre na Casa Grande, ou na casa dele em Shek-O... até mesmo no seu... apartamento particular no Sinclair Towers, ou num outro qualquer cuja existência desconhecemos.
— Deprimente — concordou Crosse. — Nosso serviço de informações está ficando espantosamente relaxado, na nossa própria jurisdição. Uma pena. Se fôssemos chineses, saberíamos tudo, não é, Brian?
— Não, senhor. Desculpe, senhor.
— Bem, se não sabe onde procurar, terá que perguntar.
— Senhor?
— Pergunte. Dunross sempre pareceu cooperar, no passado. Afinal, é seu amigo. Pergunte onde estão, peça para vê-los.
— E se ele disser que não, ou que foram destruídos?
— Use a sua cuca talentosa. Bajule-o um pouco, use de alguma arte, chegue-se a ele. E negocie.
— Temos algo no momento para negociar com ele?
— A Nelson Trading.
— Senhor?
— Parte consta do relatório. Mais uma informaçãozinha modesta que terei prazer em dar-lhes, mais tarde.
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
— Robert, o que você fez para encontrar John Chen e o Lobisomem, ou os Lobisomens?
— O DIC inteiro foi alertado, senhor. Pegamos o número do carro dele imediatamente e já o distribuímos num boletim. Entrevistamos a mulher dele, sra. Barbara Chen, entre outros... ela estava histérica quase o tempo todo, mas lúcida, muito lúcida sob a torrente de lágrimas.
— É?
— Sim, senhor. Ela... Bem, o senhor compreende.
— Sim.
— Disse que não era incomum o marido ficar fora até tarde... disse que tinha muitas reuniões de negócios até altas horas, e às vezes saía cedo para ir ao prado ou ao seu barco. Tenho absoluta certeza de que ela sabia que ele dava as suas voltinhas. Reconstituir os movimentos dele ontem à noite foi relativamente fácil até as duas da madrugada. Deixou Casey Tcholok no Old Vic por volta das dez e meia...
— Ele viu Bartlett ontem à noite?
— Não, senhor. Bartlett ficou dentro do seu avião em Kai Tak o tempo todo.
— John Chen falou com ele?
— Só se houvesse algum modo de ligar o avião ao nosso sistema telefônico. Nós o mantivemos sob vigilância até a batida de hoje de manhã.
— Continue.
— Depois de deixar a srta. Tcholok (a propósito, descobri que aquele era o Rolls-Royce do pai dele), ele tomou a balsa para o lado de Hong Kong, onde foi a um clube chinês particular perto da Queen's Road, e dispensou carro e chofer... — Armstrong pegou o seu bloquinho e consultou-o. —...Era o Tong Lau Club. Lá encontrou-se com um amigo e colega de negócios, Wo Sang Chi, e começaram a jogar mah-jong. Mais ou menos à meia-noite o jogo foi encerrado. Depois, com Wo Sang Chi e os outros dois jogadores, ambos amigos, Ta Pan Fat, um jornalista, e Po Cha Sik, corretor de valores, pegaram um táxi.
Robert Armstrong ouviu sua voz relatar os fatos, caindo no padrão policial familiar, e isso o deixou satisfeito e distraiu sua atenção da pasta e de todos os conhecimentos secretos que continha, e do problema do dinheiro de que necessitava com tanta pressa. "Tomara Deus eu pudesse ser apenas um policial", pensou, detestando o Serviço Especial de Informações e a necessidade da sua existência.
— Ta Pan Fat saltou do táxi primeiro, em sua casa na Queen's Road, depois Wo Sang Chi saltou na mesma rua, logo a seguir. John Chen e Po Cha Sik — achamos que ele tem ligações com as tríades, está sendo investigado com muito cuidado — foram para a Garagem Ting Ma, na Sunning Road, Causeway Bay, para apanhar o carro de John Chen, um Jaguar 1960. — Novamente consultou o bloquinho, desejando ser preciso, achando os nomes chineses confusos como sempre, mesmo depois de tantos anos. — Um empregado da garagem, Tong Ta Wey, confirmou isso. Depois, John Chen levou o amigo Po Cha Sik de carro até sua casa, Village Street, 17, no Happy Valley, onde o amigo saiu do veículo. Entrementes, Wo Sang Chi, companheiro de negócios de John Chen, que, curiosamente, dirige a companhia de transportes da Struan, que tem o monopólio dos carretos de e para Kai Tak, fora para o Restaurante Sap Wah, na Fleming Road. Declara que, quando já estava lá há trinta minutos, John Chen veio se encontrar com ele, e saíram do restaurante no carro de John, pretendendo apanhar umas dançarinas na rua e levá-las para cear...
— Ele nem pensou em ir a um cabaré e pagar pela companhia das garotas? — perguntou Crosse, pensativo. — Quanto custaria, Brian?
— Sessenta dólares de Hong Kong, senhor, àquela hora da noite.
— Sei que Phillip Chen tem reputação de ser avarento, mas o filho é igual?
— Àquela hora da noite, senhor — explicou Brian Kwok —, muitas moças começam a deixar os clubes, se ainda não arrumaram um parceiro. A maioria dos clubes fecha por volta da uma hora. O domingo não é um dia rendoso, senhor. É bem comum rodar por aí, pois não há necessidade de desperdiçar sessenta dólares, talvez duas ou três vezes sessenta dólares, porque as garotas decentes andam aos pares, ou trios, e comumente se leva duas ou três para jantar primeiro. Não há por que desperdiçar todo esse dinheiro, não é, senhor?
— Você roda por aí, Brian?
— Não, senhor. Não tenho necessidade... não, senhor. Crosse soltou um suspiro e voltou-se para Armstrong.
— Continue, Robert.
— Bem, senhor, eles não conseguiram pegar nenhuma moça, e foram para o Copacabana Night Club, no Sap Chuk Hotel, na Gloucester Road, para cear. Chegaram lá por volta da uma hora, e saíram por volta de uma e quarenta e cinco. Wo Sang Chi disse que viu John Chen entrar no seu carro, mas que não o viu sair dirigindo... depois foi a pé para casa, pois mora ali perto. Disse que John Chen não estava alto, ou de mau humor, nada disso, mas parecia animado, embora, anteriormente, no Tong Lau Club, parecesse irritadiço e quisesse interromper logo o jogo de mah-jong. E é o fim de tudo. Daí em diante, John Chen não foi mais visto pelos amigos... nem pela família.
— Ele contou a Wo Sang Chi aonde iria?
— Não. Wo Sang Chi nos disse que imaginara que tivesse ido para casa, mas depois acrescentou: "Quem sabe foi visitar a namorada?" Perguntamos quem era, mas ele disse que não sabia. Depois de muito insistirmos, falou que parecia lembrar um nome, Flor Fragrante, mas nada de endereço ou telefone... só isso.
— Flor Fragrante? Isso poderia se aplicar a uma infinidade de damas da noite.
— Sim, senhor.
Crosse ficou imerso em pensamentos, por um momento.
— Por que motivo Dunross iria querer eliminar John Chen?
Os dois policiais fitaram boquiabertos o seu superior.
— Ponha isso no seu cérebro de ábaco, Brian.
— Sim, senhor, mas não há motivo. John Chen não representa ameaça para Dunross, de modo algum... mesmo que se tornasse o representante nativo. Na Casa Nobre, o tai-pan detém todo o poder.
— É?
— Ê. Por definição. — Brian Kwok hesitou, desconcertado de novo. — Bem, senhor, sim... eu... na Casa Nobre, sim.
Crosse voltou a atenção para Armstrong.
— E então?
— Nenhum motivo que eu possa imaginar, senhor. Ainda.
— Bem, continue tentando.
Crosse acendeu um cigarro, e Armstrong sentiu violentamente ânsia de fumar. "Nunca vou manter minha promessa", pensou. "Sacana maldito, Crosse, a cruz-que-todos-temos-que-carregar! Que diabo está pensando?" Viu Crosse oferecer-lhe um maço de Sênior Service, a marca que costumava fumar. "Não se iluda", pensou, "a marca que você ainda fuma."
— Não, senhor, obrigado — ouviu-se dizer, agulhadas de dor no estômago, no corpo todo.
— Não está fumando, Robert?
— Não, senhor, parei... estou tentando parar.
— Admirável! Por que motivo Bartlett iria querer eliminar John Chen?
Novamente, os dois policiais o fitaram, embasbacados. Depois Armstrong perguntou, com voz rouca:
— Sabe por quê, senhor?
— Se soubesse, por que lhes perguntaria? Cabe a vocês descobrir. Há uma ligação num canto qualquer. Coincidências demais, a coisa está certinha demais, simples demais... e fedendo demais. É, isso está me cheirando a envolvimento do KGB, e quando isso acontece nos meus domínios, devo confessar que fico irritado.
— Sim, senhor.
— Então, até agora tudo bem. Ponham a sra. Phillip Chen sob vigilância. É bem provável que esteja implicada, de alguma forma. As vantagens para ela são realmente bastante compensadoras. Sigam Phillip Chen também, por um ou dois dias.
— Isso já foi feito, senhor. Com os dois. Quanto a Phillip Chen, não é que suspeite dele, mas só porque acho que eles farão o de costume: não cooperar, ficar na moita, negociar em segredo, pagar em segredo e soltar um suspiro de alívio quando tudo estiver terminado.
— Exatamente. Por que será que esses sujeitos, não importa o quanto sejam educados, acham que são muito mais espertos do que nós, e não nos ajudam a fazer o trabalho que somos pagos para fazer?
Brian Kwok sentiu os olhos de aço penetrantes sobre si, e o suor escorreu pelas suas costas. "Controle-se", pensou. "Esse sacana não passa de um demônio estrangeiro, incivilizado, comedor de bosta, coberto de merda, sem mãe, saturado de dew neh loh mob, descendente de um macaco."
— É um velho costume chinês, que certamente o senhor conhece — retrucou, cortesmente —, desconfiar de todos os policiais, de todos os funcionários do governo... eles têm quatro mil anos de experiência, senhor.
— Concordo com a hipótese, mas com uma exceção. Os britânicos. Provamos, sem margem de dúvida, que somos dignos de confiança, podemos governar, e, de um modo geral, nossa burocracia é incorruptível.
— Sim, senhor.
Crosse fitou-o por um momento, tirando baforadas do seu cigarro. Depois, falou:
— Robert, sabe o que disseram ou conversaram John Chen e a srta. Tcholok?
— Não, senhor. Ainda não pudemos interrogá-la... passou o dia inteiro na Struan. Poderia ter importância?
— Vai à festa de Dunross, logo mais à noite?
— Não, senhor.
— Brian?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Robert, estou certo de que Dunross não vai se importar se eu o levar comigo, venha me buscar às oito. Todas as pessoas que contam em Hong Kong estarão lá... você pode ficar de ouvidos abertos e enfiar o nariz em qualquer canto. — Sorriu do seu comentário, e não se importou porque nenhum dos dois sorriu com ele. — Leiam agora o relatório. Volto logo. E Brian, por favor, não falhe hoje à noite. Seria realmente muito chato.
— Sim, senhor. Crosse saiu da sala.
Quando ficaram a sós, Brian Kwok enxugou a testa.
— Esse sacana me aterroriza.
— A mim, também, meu chapa. Sempre aterrorizou.
— Será que mandaria mesmo uma equipe invadir a Struan? — perguntou Brian Kwok, incrédulo. — O âmago dos âmagos da Casa Nobre?
— Claro. Até lideraria a equipe, pessoalmente. Este é o seu primeiro período no sei, meu rapaz, portanto você não o conhece como eu. Aquele sacana lideraria uma equipe de assassinos até o inferno, se achasse isso suficientemente importante. Aposto que foi ele próprio que pegou a pasta. Santo Deus, atravessou a fronteira duas vezes, que eu saiba, para bater papo com um agente amistoso. Foi sozinho, imagine só!
Brian soltou uma exclamação abafada.
— E o governador sabe disso?
— Acho que não. Teria uma hemorragia, e se a MI-6 soubesse, ele seria assado vivo, e Crosse seria mandado para a Torre de Londres. Ele conhece segredos demais para se arriscar desse jeito... mas é o Crosse, e não há nada que se possa fazer a respeito.
— Quem era o agente?
— O nosso homem em Cantão.
— Wu Fong Fong?
— Não, um novo; pelo menos era novo no meu tempo. Do exército.
— Capitão Ta Quo Sa? Armstrong deu de ombros.
— Esqueci. Kwok sorriu.
— É isso aí.
— Mesmo assim, o fato é que Crosse atravessou a fronteira. Ele faz as suas próprias leis.
— Puxa vida, você nem pode ir a Macau porque pertenceu ao sei há dois anos, e ele cruza a fronteira. É louco de se arriscar assim.
— É. — Armstrong começou a imitar Crosse. — "E como é que os comerciantes sabem das coisas antes de nós, meu caro rapaz? "É simples" — disse, respondendo a si mesmo, e sua voz voltou ao normal. — Eles gastam dinheiro. Gastam porradas de dinheiro, enquanto nós só temos brisa para gastar. Ele sabe disso, eu sei, e o mundo todo sabe. Santo Deus, como é que o FBI, a CIA, o KGB ou a CIA coreana trabalham? Gastando dinheiro! Diabos, mas é fácil ter Alan Medford Grant na sua equipe. Dunross o contratou. Um adiantamento de dez mil libras, isso compraria um bocado de relatórios. É mais do que o suficiente, quem sabe foi até menos. Quanto nos pagam? Duas mil libras por ano por trezentos e sessenta e seis dias de vinte e cinco horas, e um patrulheiro ganha quatrocentas libras. Imagine a burocracia que teríamos que enfrentar para obter dez mil libras secretas para comprar informações de um homem. Onde o FBI, a CIA e o maldito KGB estariam, se não tivessem fundos ilimitados? Diabos — acrescentou com azedume —, levaríamos seis meses para obter o dinheiro, se conseguíssemos obtê-lo, enquanto Dunross e cinqüenta outros tiram esse dinheiro da "caixinha". — O grandalhão ficou largado na cadeira, olheiras escuras, olhos vermelhos, as maçãs do rosto marcadas pela luz do teto. Lançou um olhar para a pasta em cima da mesa, à sua frente, mas sem tocá-la, imaginando as notícias tenebrosas que devia conter. — É fácil para os Dunrosses do mundo — comentou.
Brian Kwok concordou, enxugou as mãos e guardou o lenço.
— Dizem que Dunross tem um fundo secreto, o fundo do tai-pan, iniciado por Dirk Struan com o dinheiro obtido quando incendiou e saqueou Foochow, um fundo que apenas o tai-pan atual pode usar para esse tipo de coisa, para h'eung yau, pagamentos especiais, qualquer coisa... quem sabe até um assassinatozinho. Dizem que chega a milhões.
— Também ouvi esse boato. É. Tomara Deus... ora, deixe pra lá. — Armstrong estendeu a mão para a pasta, hesitou, depois se levantou e se dirigiu para o telefone. — As primeiras coisas em primeiro lugar — disse ao amigo chinês, com um sorriso sardônico. — Primeiro vamos arrochar alguns VIPS. — Ligou para o QG da polícia, em Kowloon. — Armstrong... ligue-me com o sargento comissionado Tang-po, por favor.
— Boa noite, senhor. Sim, senhor? — a voz do sargento comissionado Tang-po era cálida e amistosa.
— Boa noite, sargento — respondeu ele, docemente. — Preciso de informações. Preciso saber a quem aquelas armas eram destinadas. Preciso saber quem são os raptores de John Chen. Quero John Chen, ou o corpo dele, de volta em três dias. E quero o Lobisomem, ou Lobisomens, atrás das grades, rapidinho.
Fez-se uma ligeira pausa.
— Sim, senhor.
— Por favor, espalhe a notícia. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. E quando ele fica só um pouquinho zangado, os superintendentes são enviados para outros comandos, e os inspetores também... até os sargentos, mesmo os sargentos comissionados de primeira classe. Alguns chegam a ser rebaixados para simples guardas e mandados para a fronteira. Alguns podem até ser exonerados ou deportados ou mandados para a prisão. Certo?
Fez-se uma pausa maior.
— Sim, senhor.
— E quando ele está realmente muito zangado, os homens sensatos fogem, antes que o combate à corrupção desabe sobre os culpados, e até sobre os inocentes.
Outra pausa.
— Sim, senhor. Vou espalhar a notícia, senhor, imediatamente. Sim, imediatamente.
— Obrigado, sargento. O Grande Pai Branco está muito zangado, de verdade. Ah, mais uma coisa. — A voz dele tornou-se mais seca. — Talvez você deva pedir ajuda aos seus irmãos sargentos. Eles certamente entenderão, o meu modesto problema é deles também. — Passou a falar em cantonense. — Quando os Dragões arrotam, Hong Kong inteira defeca. Heya?
Uma pausa mais longa.
— Cuidarei do caso, senhor.
— Obrigado.
Armstrong pôs o fone no gancho. Brian Kwok sorriu.
— Isso vai lhe contrair alguns músculos do esfíncter.
O inglês assentiu e sentou-se de novo, mas sua fisionomia continuava dura.
— Não gosto de apelar para isso com freqüência... para falar a verdade, é a segunda vez que o faço, mas não tenho opção. Ele deixou isso bem claro, assim como o Velho. É melhor você fazer o mesmo com suas fontes.
— Claro. "Quando os Dragões arrotam..." Estava fazendo trocadilho com os Cinco Dragões lendários?
— Estava.
Agora, o belo rosto de Brian Kwok se acomodara num molde — frios olhos negros na pele dourada, o queixo quadrado quase imberbe.
— Tang-po é um deles?
— Não sei, ao certo. Sempre achei que era, embora sem nada em que me basear. Não, não estou certo, Brian. Ele é?
— Não sei.
— Bem, não importa que seja ou não. A notícia chegará a um deles, e é só o que me interessa. Pessoalmente, estou convencido de que os Cinco Dragões existem, que são cinco sargentos chineses, talvez até sargentos de polícia, que controlam toda a jogatina ilegal de Hong Kong, e provavelmente, possivelmente, redes de proteção, alguns cabarés e garotas... cinco entre onze. Cinco sargentos superiores entre onze possibilidades. Hem?
— Eu diria que os Cinco Dragões são reais, Robert, talvez haja mais, talvez menos, mas toda a jogatina de rua é controlada pela polícia.
— Provavelmente controlada por membros chineses da nossa Real Força Policial, meu rapaz — disse Armstrong, corrigindo-o. — Ainda não temos prova concreta alguma... e há anos que estamos atrás dela. Duvido que jamais consigamos provar a coisa. — Abriu um sorriso. — Talvez você consiga, quando for comissário assistente.
— Corta essa, Robert, pelo amor de Deus.
— Diabos, você tem apenas trinta e nove anos, tem o curso especial de figurão da Escola do Estado-Maior, e já é superintendente. Aposto cem contra dez que você vai terminar nesse posto.
— Fechado.
— Devia ter apostado cem mil — falou Armstrong, fingindo azedume. — Aí você não teria aceito.
— Experimente para ver.
— Não posso. Quem sou eu para perder todo esse tutu? Você pode ser morto, ou coisa parecida, neste ano ou no próximo, ou pedir demissão... mas se nada disso acontecer, vai para o posto antes de se aposentar, presumindo-se que queira chegar lá.
— Nós dois.
— Eu não... sou um inglês fanático demais. — Armstrong bateu-lhe nas costas, satisfeito. — Vai ser um grande dia. Mas você também não vai acabar com os Dragões... mesmo que consiga provar a coisa, do que duvido.
— Não?
— Não. Pouco se me dá a jogatina. Todos os chineses querem jogar, e se alguns sargentos chineses da polícia controlam a jogatina ilegal de rua, na sua maior parte ela será limpa e justa, embora ilegal pra caramba. Se eles não a controlarem, as tríades o farão, e então os pequenos grupos de sacanas nojentos que conseguimos manter afastados com tanto cuidado vão se unir de novo num único e grande tong, e aí teremos um problema de verdade. Você me conhece, rapaz, não sou cara de balançar nenhum coreto, e é por isso que não chegarei a comissário assistente. Gosto do status quo. Os Dragões controlam a jogatina, e assim mantemos as tríades divididas... e enquanto a polícia se mantiver unida e for a tríade mais forte de Hong Kong, sempre teremos paz nas ruas, uma população bem-comportada e quase nenhum crime, crime violento.
Brian Kwok fitou-o.
— Você acredita mesmo nisso, não é?
— Acredito. No momento, de uma maneira meio estranha, os Dragões são um dos nossos esteios mais fortes. Sejamos realistas, Brian, só os chineses podem governar os chineses. O status quo também é bom para eles... o crime violento é ruim. E assim, obtemos ajuda quando precisamos, e às vezes, ajuda que nós, demônios estrangeiros, provavelmente não conseguiríamos obter de outra maneira. Não sou favorável à corrupção deles, ou à infração da lei, de modo algum... ou ao suborno e a todos os outros golpes baixos que temos que dar, ou aos delatores. Mas qual a força policial do mundo que pode operar sem sujar as mãos algumas vezes, e sem os alcagüetes filhos da mãe? Assim, o mal que os Dragões representam preenche uma necessidade existente aqui, acho eu. Hong Kong é a China, e a China é um caso especial. Enquanto for só o jogo ilegal, pouco se me dá. Se estivesse nas minhas mãos, tornaria o jogo legal hoje mesmo, mas arrasaria com qualquer um por rede de proteção a lojas, cabarés, garotas, ou seja lá o que for. Não suporto cafetão, como bem sabe... O jogo já é outra história. Como se pode impedir que um chinês jogue? Não se pode. Assim, tornemo-lo legal, e deixemos todo mundo feliz. Há quantos anos a polícia de Hong Kong vem aconselhando isso, e todo ano a proposta é rejeitada? Que eu saiba, vinte anos. Mas, ah, não, e por quê? Macau. Claro como a água. A boa e velha Macau portuguesa se alimenta do jogo ilegal e do contrabando de ouro, e é isso o que a mantém viva, e nós não podemos nos dar ao luxo, nós, o Reino Unido, não podemos nos dar ao luxo de deixar o nosso velho aliado entrar pelo cano.
— Robert Armstrong para primeiro-ministro!
— Vá tomar no rabo! Mas é verdade. O que recolhemos com o jogo ilegal é o nosso único dinheiro para suborno... um bocado da grana vai para o pagamento da nossa rede de informantes. Onde mais podemos conseguir esse dinheiro? Com o nosso governo agradecido? Não me faça rir! De alguns dólares extras de impostos da população agradecida que protegemos? Ah!
— Talvez. Talvez não, Robert. Mas o tiro vai sair pela culatra, qualquer dia desses. Os pagamentos especiais... o dinheiro solto e sem origem definida que, "por acaso", vai parar numa gaveta de delegacia? Não é?
— É, mas não no meu bolso, porque não estou metido nisso, não recebo nada por fora, e nem a grande maioria, quer seja britânica, quer chinesa. Entrementes, como podemos nós, trezentos e vinte e sete pobres demônios estrangeiros policiais superiores, controlar oito mil e tantos policiais subalternos e tiras, e mais três milhões e meio de filhos da mãe civilizados que nos odeiam? É essa a questão.
Brian Kwok riu. Foi uma risada contagiosa, e Armstrong riu com ele, acrescentando:
— Vá tomar no rabo de novo, por provocar o meu desabafo.
— Da mesma forma. Como é, quem vai ler primeiro, você ou eu?
Armstrong olhou para a pasta que tinha nas mãos. Era fina continha doze páginas datilografadas em espaço 1, e mais parecia um relatório confidencial de análise de notícias, com tópicos sob cabeçalhos diferentes. A página do índice dizia: "Parte 1: Previsão política e comercial do Reino Unido. Parte 2: O KGB na Ásia. Parte 3: Ouro. Parte 4: Progressos recentes da CIA".
Com ar cansado, Armstrong pôs os pés em cima da mesa e se acomodou mais confortavelmente na cadeira. Depois, mudou de idéia e entregou a pasta ao outro.
— Tome, leia você. Lê mais depressa do que eu, mesmo. Já estou cansado de ler sobre desgraças.
Brian Kwok pegou a pasta, mal contendo a impaciência, o coração batendo forte e pesadamente. Abriu-a e começou a ler.
Armstrong observava-o. Viu o rosto do amigo se modificar imediatamente e perder a cor. Aquilo o perturbara demais. Brian Kwok não se chocava com facilidade. Observou-o enquanto lia até o fim sem fazer comentário, depois voltava a reler um ou outro parágrafo, até que fechou a pasta, devagar.
— É tão ruim assim? — falou Armstrong.
— É pior. Parte dele... bem, se não fosse assinado por A. Medford Grant, eu diria que ele estava doido. Alega que a gia tem uma ligação séria com a Máfia, que estão tramando e já tramaram o assassinato de Castro, estão com força total no Vietnam, envolvidos em drogas e sabe lá Deus o que mais... tome... leia você mesmo.
— E quanto ao agente inimigo infiltrado, ao "toupeira"?
— Temos um toupeira, sem dúvida. — Brian reabriu a pasta e achou o parágrafo que queria. — Escute: "Não há dúvida de que atualmente existe um agente comunista de alto nível infiltrado na polícia de Hong Kong. Documentos altamente secretos que foram trazidos para o nosso lado pelo general Hans Richter (segundo em comando do Departamento de Segurança Interna da Alemanha Oriental), quando se bandeou para nós em março deste ano, afirmam claramente que o codinome do agente é 'Nosso Amigo', e que está na posição há pelo menos dez, ou talvez quinze anos. O contato dele é provavelmente um oficial do KGB em Hong Kong, fazendo-se passar por um empresário amigável em visita, vindo dos países da Cortina de Ferro, possivelmente por um banqueiro ou um jornalista, ou um marujo de um dos cargueiros soviéticos visitando Hong Kong ou sendo consertado aqui. Entre outras informações documentadas que agora sabemos que Nosso Amigo forneceu ao inimigo estão: todos os canais de rádio reservados, todos os números de telefone particulares do governador, chefe de polícia e altos escalões do governo de Hong Kong, juntamente com dossiês muito particulares sobre a maioria deles..."
— Dossiês? — interrompeu Armstrong. — Estão incluídos?
— Não.
— Merda! Continue, Brian.
— "...sobre a maioria deles; os planos de batalha secretos da polícia para enfrentar uma insurreição provocada pelos comunistas, ou uma repetição dos tumultos de Kowloon; cópias dos dossiês particulares de todos os policiais acima do posto de inspetor; os nomes dos seis principais agentes secretos nacionalistas do Kuomintang, operando em Hong Kong sob a autoridade atual do general Jen Tang-wa (Apêndice A); uma lista detalhada dos agentes do Serviço Especial de Informações em Kwantung, sob a autoridade geral do agente graduado Wu Fong Fong (Apêndice B)."
— Meu Deus! — Armstrong soltou uma exclamação abafada. — É melhor tirarmos o velho Fong Fong e o pessoal dele de lá, rapidinho.
— Wu Tat-sing está na lista? Kwok examinou o apêndice.
— Está. Ouça, o parágrafo termina assim: "...O comitê chegou à conclusão de que, até que este traidor seja eliminado, a segurança interna de Hong Kong está em perigo. Ignoramos por que esta informação ainda não foi passada adiante à própria polícia. Imaginamos que isso tenha ligação com a atual infiltração política soviética na administração do Reino Unido, em todos os níveis, o que permite a existência de Philbys e que informações como estas sejam omitidas, suavizadas ou até alteradas (o que foi material do Estudo 4/1962). Sugerimos que este relatório, ou parte dele, chegue imediatamente por vias indiretas aos ouvidos do governador ou do comissário de polícia de Hong Kong (se os considerar dignos de confiança)". — Brian Kwok ergueu os olhos, a mente em torvelinho. — Tem mais umas coisinhas aqui. Deus, a situação política no Reino Unido, e depois Sevrin... Leia. — Sacudiu a cabeça, desalentado. — Pombas, se isso é verdade... estamos atolados até o pescoço. Deus do céu!
Armstrong praguejou baixinho.
— Quem? Quem poderia ser o espião? Tem que ser lá de cima. Quem?
Depois de um grande silêncio, Brian disse:
— O único... o único que poderia saber disso tudo é o próprio Crosse.
— Ora, qual é, pela madrugada!
— Pense bem, Robert. Ele conhecia Philby. Não freqüentou Cambridge, também? Ambos têm origens semelhantes, estão na mesma faixa de idade, pertenceram à Inteligência durante a guerra... como Burgess e Maclean. Se Philby conseguiu tapear o mundo por todos esses anos, por que não Crosse?
— Impossível!
— Quem mais, senão ele? Não pertenceu à MI-6 a vida toda? Não passou um período trabalhando aqui, no começo dos anos 50, e não foi trazido de volta para organizar o nosso sei como setor separado da sb há cinco anos? Não tem sido o diretor, desde então?
— Isso não prova nada.
— É?
Fez-se um longo silêncio. Armstrong observava o amigo atentamente. Conhecia-o bem demais e sabia que falava sério.
— O que você sabe? — perguntou, inquieto.
— Digamos que Crosse seja homossexual.
— Você está completamente louco — explodiu Armstrong. — Ele é casado e... e pode ser um filho da mãe safado, mas nunca houve sequer um murmúrio a respeito disso, nunca.
— É, mas ele não tem filhos, a mulher mora quase permanentemente na Inglaterra, e, quando está aqui, dormem em quartos separados.
— Como sabe?
— A amab sabe, portanto, se eu quisesse saber, seria fácil descobrir.
— Isso não prova nada. Muita gente tem quartos separados. Está errado sobre Crosse.
— Digamos que eu pudesse apresentar-lhe provas?
— Que provas?
— Onde vai sempre passar parte da sua licença? Nas montanhas Cameron, na Malásia. Digamos que tenha um amigo ali, um jovem malaio, um conhecido pervertido.
— Eu precisaria de fotografias, e ambos sabemos que elas podem ser adulteradas — disse Armstrong, asperamente. — Precisaríamos de fitas gravadas, e ambos sabemos que também podem ser adulteradas. O jovem? Isso nada prova... é o truque mais antigo do mundo apresentar falso testemunho e falsas testemunhas. Nunca houve nem mesmo uma insinuação... e ainda que seja "gilete", isso nada prova... nem todos os pervertidos são traidores.
— Não. Mas todos os pervertidos são um excelente alvo para a chantagem. E se ele for, é altamente suspeito. Altamente suspeito. Certo?
Armstrong olhou à sua volta, inquieto.
— Ele pode ter posto escutas na sala.
— E se tiver?
— Se tiver e for verdade, pode acabar com a gente num piscar de olhos. Sendo verdade ou não.
— Pode ser... mas se ele for o espião, saberá que nós estamos sabendo, e se não for, rirá na nossa cara, e eu estou fora do sei. De qualquer maneira, Robert, ele não pode acabar com todos os chineses da força policial.
Armstrong fitou-o.
— O que quer dizer com isso?
— Talvez também haja uma pasta sobre ele. Talvez todo chinês, de cabo para cima, já a tenha lido.
— Como?
— Qual é, Robert? Você sabe como os chineses são unidos. Talvez haja uma pasta, tal...
— Está querendo dizer que estão todos organizados numa irmandade? Uma tong, uma sociedade secreta? Uma tríade dentro da polícia?
— Eu disse "talvez". Tudo isso são suposições, Robert. Eu disse "talvez" e "pode ser".
— Quem é o Grande Dragão? Você?
— Nunca disse que havia tal agrupamento. Disse "talvez". — Existem outras pastas? Sobre mim, por exemplo?
— Talvez.
— E?
— E, se houvesse, Robert — disse Brian Kwok, suavemente —, ela diria que você é um excelente policial, incorrupto, que jogou muito na Bolsa, e jogou mal, e precisava de vinte e tantos mil dólares para pagar umas dívidas urgentes... e mais algumas coisinhas.
— Que coisinhas?
— Estamos na China, amigão. Sabemos de quase tudo o que se passa com os quai loh. Temos que sobreviver, não?
Armstrong olhou para ele, de modo estranho.
— Por que não me contou antes?
— Não lhe contei nada, agora. Nada. Disse "talvez" e repito: "talvez". Mas se tudo isso for verdade... — entregou a pasta e enxugou o suor do lábio superior. — Leia você mesmo. Se for verdade, estamos no mato sem cachorro e teremos que agir muito rapidamente. O que eu falei foram apenas suposições. Mas não quanto a Crosse. Escute, Robert, aposto mil... mil contra um que o toupeira é ele.