56

23h59m

Dunross fitava a triste carcaça do Dragão Flutuante, ader-nada nas águas de seis metros de profundidade de Aberdeen. Os outros navios-restaurantes de muitos andares que flutuavam ali por perto ainda estavam fortemente iluminados, vulgares e barulhentos, totalmente cheios, suas cozinhas novas e temporárias instaladas às pressas em barcaças ao lado do navio-mãe, caldeirões fumegando, fogo sob os caldeirões, um monte de cozinheiros e ajudantes como abelhas na colméia. Garçons subiam e desciam as passarelas precárias com bandejas e pratos. Sampanas circulavam por perto, sob os olhares dos turistas e dos yan de Hong Kong, que observavam, pasmados, a carcaça, uma grande atração.

Parte da superestrutura da carcaça sobressaía de dentro d'água. Turmas de reparos trabalhavam nela, sob a luz de holofotes, recuperando-a, aprontando o que restara dela para flutuar. Na sua parte do cais e do estacionamento haviam sido instalados barracos e cozinhas temporários. Mascates estavam muito ocupados, vendendo fotos do incêndio, lembranças, comidas de todos os tipos, e um imenso cartaz iluminado, em chinês e inglês, orgulhosamente anunciava que o novo, único, totalmente MODERNO RESTAURANTE FLUTUANTE À PROVA DE fogo, o "dragão flutuante", logo estaria em funcionamento, maior do que nunca, melhor do que nunca... "Enquanto isso, não deixem de provar a comida dos nossos famosos cozinheiros. " O negócio funcionava como sempre, só que temporariamente em terra, não no mar.

Dunross caminhou pelo cais até uma das escadinhas que davam para o mar. Havia grupos de sampanas por perto, grandes e pequenas, a maioria de aluguel. Cada pequena embarcação tinha um remador, homem, mulher ou criança de qualquer idade. Cada embarcação tinha um teto de lona que a cobria pela metade e protegia do sol, da chuva ou dos olhares indiscretos. Algumas das sampanas eram mais sofisticadas. Eram os luxuosos Barcos do Prazer. Lá dentro havia almofadões e mesas baixas, com lugar de sobra para duas pessoas comerem, beberem e depois fazerem amor, o único remador discretamente afastado da cabine. Podiam ser alugados por uma hora ou uma noite, e o barco flutuaria preguiçosamente pelos caminhos secundários. Outras sampanas ofereciam o melhor sortimento de comida e bebida, alimentos frescos servidos bem quentes, delicadamente. Nelas um homem e sua acompanhante podiam passar a noite num sonho de perfeita intimidade.

O homem podia ir sozinho, se quisesse. Então, perto de uma das vastas ilhas de barcos, sua sampana se encontraria com a das Damas da Noite, e ele escolheria, pechincharia e depois se poria ao largo. No porto era possível satisfazer qualquer vontade, sede, desejo... sem gastar muito, o preço justo, fosse quem fosse o cliente... se pudesse pagar e fosse homem. Ópio, cocaína, heroína, o que desejasse.

Às vezes a comida era ruim, ou a garota era ruim, mas isso era apenas azar, um engano lamentável, mas não deliberado. Às vezes podia-se perder a carteira, mas, afinal, só mesmo um otário viria ostentar sua fortuna no meio de tanta miséria orgulhosa.

Dunross sorriu ao ver um turista corpulento entrar nervosamente numa das embarcações, ajudado por uma garota de cheong-sam. "Está em boas mãos", pensou, muito satisfeito com a azáfama de negócios à sua volta, compras, vendas, pechinchas. "É", disse para si mesmo, "os chineses são os verdadeiros capitalistas do mundo.

"E quanto ao Tiptop e o pedido de Johnjohn? E quanto ao Lando Mata, ao Pão-Duro e à Par-Con? E o Gornt? E Alan, e Riko Anjin, e Sinders, e...

"Não pense neles agora. Concentre-se! Wu Quatro Dedos não o chamou para discutirem o tempo. "

Passou pela primeira escadinha e seguiu pelo cais em direção à escada principal, a luz dos postes da rua lançando fortes sombras. Imediatamente, todas as sampanas ali começaram a se empurrar, para tomar posição, os donos chamando, convidando. Quando ele chegou ao topo da escada, a comoção cessou.

— Tai-pan!

Um bem-equipado Barco do Prazer com a bandeira Lótus Prateada na popa vinha abrindo caminho por entre elas. O barqueiro era baixo e atarracado, com muitos dentes de ouro. Usava calças cáqui rasgadas e uma camiseta.

Dunross assobiou, reconhecendo o filho mais velho de Wu Quatro Dedos, o loh-pan, chefe da frota de Barcos do Prazer de Wu. "Não admira que os outros barcos lhe tenham dado passagem", pensou, impressionado por Wu Dente de Ouro vir recebê-lo pessoalmente. Agilmente, subiu a bordo, cumprimen-tando-o. Dente de Ouro começou a remar, afastando-se rapidamente.

— Fique à vontade, tai-pan — disse Dente de Ouro num inglês perfeito, com sotaque da Inglaterra. Ele era bacharel em ciências pela Universidade de Londres, e queria permanecer na Inglaterra. Mas Quatro Dedos ordenara que voltasse para casa. Era um homem meigo, quieto, bondoso, de quem Dunross gostava.

— Obrigado.

Na mesa laqueada havia chá fresco, uísque e copos, conhaque e água engarrafada. Dunross olhou ao seu redor, atentamente. A cabine era arrumada e iluminada por pequenas lâmpadas, limpa, agradável e espaçosa. Um pequeno rádio tocava boa música. "Esta deve ser a nau capitania do Dente de Ouro", pensou, divertido, e muito desconfiado.

Não havia necessidade de perguntar aonde Dente de Ouro o estava levando. Serviu-se de um pouco de conhaque, adicionando soda. Não havia gelo. Ele nunca usava gelo, na Ásia.

— Pombas — murmurou repentinamente, lembrando-se do que Peter Marlowe dissera sobre a possibilidade de hepatite infecciosa. Umas cinqüenta ou sessenta pessoas estavam com esse perigo pendendo sobre suas cabeças agora, quer soubessem ou não. Gornt era uma delas. "É, mas o sacana é forte como um cutelo de carne. Nem sequer teve um desarranjozinho. O que devo fazer quanto a ele? Qual será a solução permanente?"

Estava fresco e agradável na cabine, meio aberta à brisa, o céu escuro. Um junco enorme passou por eles, o motor roncando, e ele se recostou, curtindo as tensões que sentia, a expectativa. O coração batia firme. Saboreou o conhaque, calmamente, exercitando a paciência.

O lado da sampana roçou noutra. Ficou de ouvido atento. Pés descalços subiram a bordo. Dois pares de pés, um deles ágil, o outro não.

— Salve, tai-pan! — cumprimentou Quatro Dedos, abrindo o seu sorriso sem dentes. Entrou sob o toldo e sentou-se. — Como vai, bem? — perguntou, num inglês pavoroso.

— Bem, e você? — respondeu Dunross, fitando-o e tentando disfarçar o espanto. Wu Quatro Dedos vestia um bom terno, camisa branca limpa, gravata espalhafatosa e usava sapatos e meias. A última vez que Dunross o vira daquele jeito fora na noite do incêndio, e antes disso, uma única vez, há anos, na imensa festa de casamento de Shitee T'Chung.

Mais passos se aproximaram. Desajeitadamente, Paul Choy se sentou.

— Boa noite, senhor. Sou Paul Choy.

— Como vai? — perguntou, sentindo um grande desconforto e apreensão.

— Bem, senhor, obrigado. Dunross franziu o cenho.

— Bem, é um prazer — falou, pondo de lado a preocupação. — Está trabalhando para o seu tio, agora? — perguntou, sabendo toda a verdade sobre Paul Choy, mas continuando o fingimento combinado com Quatro Dedos, e muito impressionado com o rapaz. Soubera do golpe que ele dera na Bolsa, através de seu velho amigo Soorjani.

— Não, senhor. Estou na Rothwell-Gornt. Comecei faz uns dois dias. Estou aqui para servir de intérprete... se o senhor precisar.

Paul Choy virou-se para o pai e explicou o que fora dito. Quatro Dedos balançou a cabeça.

— Conhaquiii?

— Está ótimo, obrigado. — Dunross ergueu o copo. — Prazer em vê-lo, heya — continuou, em inglês, esperando que o velho começasse em haklo. Era uma questão de prestígio, e, com a presença de Paul Choy, a cautela latente de Dunross aumentara mil vezes.

O velho marujo conversou fiado por algum tempo, tomando uísque. Nenhuma bebida foi oferecida a Paul Choy, e nem ele se serviu. Ficou sentado nas sombras, escutando, assustado, sem saber o que esperar. O pai fizera com que jurasse segredo perpétuo, com juramentos de sangue de arrepiar os cabelos.

Finalmente, Wu desistiu de enervar o tai-pan e começou a falar em haklo.

— Há muitos anos que nossas famílias são Velhas Amigas — disse, falando lenta e cuidadosamente, ciente de que o haklo de Dunross não era perfeito. — Muitos e muitos anos.

— É. Os Wu Marítimos e a Struan como irmãos — replicou o tai-pan, cautelosamente.

Quatro Dedos soltou um resmungo.

— O presente é como o passado, e o passado, o presente. Heya?

— O Velho Cego Tung diz que o passado e o presente o mesmo. Heya?

— O que o nome Wu Kwok significa para o tai-pan da Casa Nobre?

Dunross sentiu um nó no estômago.

— Ele seu bisavô, heya? Seu ilustre antepassado. Filho e almirante do ainda mais ilustre senhor da guerra dos mares, Wu Fang Choi, cuja bandeira, a Lótus Prateada, tremulou em todos os quatro mares.

— Esse mesmo! — Quatro Dedos debruçou-se para a frente, e Dunross dobrou sua cautela. — Qual era a ligação entre o Demônio de Olhos Verdes... entre o primeiro tai-pan da Casa Nobre e o ilustre Wu Kwok?

— Conheceram-se no mar. Encontraram-se no estuário do rio Pearl, perto de Wh...

— Foi perto daqui, perto de Pok Liu Chau, entre Pok Liu Chau e Aplichau.

Os olhos do velho eram como fendas em seu rosto.

— Depois, encontraram-se perto de Hong Kong. O tai-pan subiu a bordo da nau capitania de Wu Kwok. Foi sozinho e... — Dunross buscou a palavra — e negociou um acordo com ele.

— O acordo foi escrito num papel e carimbado?

— Não.

— O acordo foi cumprido?

— É uma porra duma falta de educação fazer tal pergunta a Velho Amigo, quando outro Velho Amigo sabe resposta!

Paul Choy teve um sobressalto involuntário ao súbito veneno e tom cortante das palavras. Nenhum dos homens prestou-lhe atenção.

— É verdade, é verdade, tai-pan — disse o velho, tão destemido quanto Dunross. — É, o acordo foi cumprido, embora torcido. Parte dele foi torcida. Conhece o acordo?

— Não, todo não — disse Dunross, sem mentir. — Por quê?

— O acordo dizia que, em cada um dos seus vinte veleiros, poríamos um homem para ser treinado como capitão... meu avô era um deles. Depois, o Demônio de Olhos Verdes concordou em pegar três dos rapazes de Wu Kwok e mandá-los para a sua terra, para treiná-los como demônios estrangeiros nas melhores escolas, como seriam treinados os seus próprios filhos. Depois, o tai...

— Como? Quem? Quem são esses rapazes? Quem vieram a ser? — perguntou Dunross, olhos arregalados.

Wu Quatro Dedos apenas deu um sorriso torto.

— A seguir, o Demônio de Olhos Verdes concordou em arranjar para o ilustre Wu Fang Choi um veleiro dos demônios estrangeiros, armado, equipado, e lindo. Wu Fang Choi pagou pelo navio, e o tai-pan o providenciou, e chamou-o de Lotus Cloud. Mas, quando Culum, o Fraco, o entregou, quase dois anos mais tarde, o desgraçado do seu almirante, Stride Orlov, o Corcunda, surgiu do leste como um assassino dentro da noite e assassinou o nosso navio, e Wu Kwok com ele.

Dunross sorvia o seu conhaque, esperando, aparentemente tranqüilo, intimamente chocadíssimo. Quem poderiam ser os tais rapazes? Aquilo realmente fazia parte do acordo? Não havia nada no diário ou testamento de Dirk sobre os filhos de Wu Kwok. Nada. Quem po...

— Heya?

— Sei tudo sobre o Lotus Cloud. E sobre os homens, os capitães. Acho que eram dezenove, e não vinte veleiros. Mas nada sei sobre os três rapazes. Quanto ao Lotus Cloud, meu ancestral prometeu não lutar contra navio, depois de dar navio?

— Não. Ah, não, tai-pan, isso ele não prometeu. O Demônio de Olhos Verdes era esperto, muito esperto. A morte de Wu Kwok? Joss. Todos temos que morrer. Joss. Não, o Demônio de Olhos Verdes cumpriu o seu acordo. Culum, o Fraco, também. Você o cumprirá?

Wu Quatro Dedos abriu a mão. Dentro dela estava a meia moeda.

Dunross segurou-a com cuidado, o coração doendo no peito. Os dois o fitavam como cobras, e ele pôde sentir a força de seus olhares. Seus dedos tremiam imperceptivelmente. Era como as outras meias moedas que ainda estavam na bíblia de Dirk, no cofre da Casa Grande, duas ainda ali, duas já desaparecidas, resgatadas, uma delas a de Wu Kwok. Lutando para controlar o tremor dos dedos, devolveu a moeda. Wu a pegou, sem ligar para o tremor da própria mão.

— Talvez verdadeira — disse Dunross, a voz soando estranha. — Preciso verificar. Onde conseguiu?

— É genuína, claro que é genuína, porra! Admite que é genuína?

— Não. Onde conseguiu?

Quatro Dedos acendeu um cigarro e tossiu. Pigarreou e cuspiu.

— Quantas moedas havia, para começar? Quantas o ilustre mandarim Jin-qua deu ao Demônio de Olhos Verdes?

— Não tenho certeza.

— Quatro. Eram quatro.

— Ah, uma para o seu ilustre ancestral, Wu Kwok, paga e resgatada. Por que o grande Jin-qua lhe daria duas? Impossível... esta roubada. De quem?

O velho enrubesceu, e Dunross perguntou-se se teria ido longe demais.

— Roubada ou não — cuspiu o velho —, você concede favor. Heya? — Dunross apenas olhou-o fixamente. — Heya? Ou a dignidade do Demônio de Olhos Verdes não é mais a dignidade da Casa Nobre?

— Onde conseguiu?

Wu fitou-o. Apagou o cigarro no tapete.

— Por que o Demônio de Olhos Verdes concordaria com quatro moedas? Por quê? E por que juraria pelos deuses que ele e todos os seus herdeiros honrariam a palavra dele, heya?

— Por um outro favor.

— Ah, tai-pan, é, por um favor. Sabe que favor? Dunross devolveu-lhe o olhar.

— O Honorável Jin-qua emprestou ao tai-pan, meu trisavô, quarenta laques de prata.

— Quarenta laques... quatro milhões de dólares. Há cento e vinte anos. — O velho soltou um suspiro. Seus olhos se estreitaram ainda mais. Paul Choy estava imóvel, mal respirava. — Pediu um documento? Um papel de dívida carimbado pelo seu ilustre ancestral... ou o carimbo da Casa Nobre?

— Não.

— Quarenta laques de prata. Nem papel nem carimbo, só confiança! O acordo foi apenas um acordo entre Velhos Amigos, sem carimbo, só confiança, heya?

— É.

A mão sem polegar do velho subiu com a palma para cima e segurou a meia moeda sob o rosto de Dunross.

— Uma moeda concede favor. A quem quer que peça. Eu peço.

Dunross soltou um suspiro. Finalmente, rompeu o silêncio.

— Primeiro, encaixo uma metade na outra. Depois, vejo bem se metal daqui igual a metal de Iá. Depois, você diz favor.

Já ia pegar a moeda, mas o punho se cerrou e se afastou, e Quatro Dedos fez um sinal com o polegar que tinha para Paul Choy.

— Explique.

— Com licença, tai-pan — disse Paul Choy em inglês, bem pouco à vontade, detestando o ar abafado e as correntes diabólicas da cabine, tudo por causa de uma promessa feita há doze décadas por um pirata a outro, os dois um bom par de assassinos, se metade das histórias eram verdadeiras. — Meu tio quer que eu lhe explique como quer agir. — Tentou manter a voz serena. — Claro que ele compreende que o senhor tem reservas e quer estar mil por cento certo. Ao mesmo tempo, ele não quer abrir mão da posse da moeda, não agora. Até que se tenha certeza, de uma forma ou de outra, prefere...

— Está querendo dizer que ele não confia em mim?

Paul Choy crispou-se ante a violência das palavras.

— Oh, não é isso, senhor — falou, depressa, e traduziu o que Dunross dissera.

— Claro que confio em você — disse Wu, com um sorriso torto. — Mas você confia em mim?

— Ah, sim, Velho Amigo, confio muito. Entregue-me moeda. Se real, eu, tai-pan da Casa Nobre, concederei o que pedir... se possível.

— O que for pedido, o que for, será concedido! — explodiu o velho.

— Se possível. É. Se moeda real, concedo favor. Se não real, devolvo moeda. Acabado.

— Não acabado. — Wu fez um gesto para Paul Choy. — Você acaba, depressa.

— Meu... meu tio sugere a seguinte acomodação: o senhor fica com isso. — O rapaz apanhou um pedaço chato de cera de abelha. Havia nele três impressões separadas da meia moeda. — O senhor poderá encaixar a outra metade nelas. As beiradas são nítidas o bastante para poder ter certeza, quase certeza. Esse é o primeiro passo. Se estiver razoavelmente satisfeito, iremos juntos a um avaliador do governo, ou ao curador de um museu, e mandaremos que teste as duas moedas na nossa frente. Assim, ambos saberemos a um só tempo. — Paul Choy pingava de suor. — É isso o que o meu tio deseja.

— Um dos lados poderia facilmente subornar o avaliador.

— Claro. Mas antes de irmos falar com ele, misturaremos as duas metades. Conheceríamos a nossa, o senhor conheceria a sua... mas ele não, certo?

— Dar-se-ia um jeito.

— Claro. Mas se... se fizermos isso amanhã, e se Wu Sang lhe der a sua palavra, e o senhor lhe der a sua palavra, de não tentar nada, daria certo. — O rapaz enxugou o suor do rosto. — Puxa, mas como está abafado aqui!

Dunross pensou por um momento. Depois, voltou os olhos frios para Quatro Dedos.

— Ontem eu pedi favor, você disse não.

— Aquele favor era diferente, tai-pan — replicou prontamente o velho, a língua dardejando como a de uma cobra. — Não era a mesma coisa que uma promessa antiga cobrando uma dívida antiga.

— Perguntou a seus amigos sobre meu pedido, heya? Wu acendeu outro cigarro. Sua voz tornou-se mais cortante.

— Sim. Meus amigos estão preocupados com a Casa Nobre.

— Sem Casa Nobre, nada de nobre favor, heya?

O silêncio ficou mais denso. Dunross viu os olhos velhos e astutos dardejarem para Paul Choy, e depois de volta para ele. Sabia que estava preso pela moeda. Teria que pagar. Se fosse genuína, teria que pagar, quer fosse roubada ou não. "Roubada de quem?", berravam seus pensamentos. "Quem aqui teria uma delas?" Dirk Struan nunca soubera a quem as outras haviam sido dadas. No seu testamento, escrevera que suspeitava que uma tivesse sido dada à sua amante, May-may, mas não havia motivo para tal presente por parte de Jin-qua. Se May-may a tivesse possuído, raciocinou Dunross, então teria passado de geração em geração até Shitee T'Chung, que era o atual chefe da linhagem T'Chung, a linhagem de May-may. Talvez tivesse sido roubada dele.

"Quem mais em Hong Kong?

"Se o tai-pan ou a Bruxa não sabiam a resposta para isso, muito menos eu. Não há ligação de família que remonte a Jin-qua!"

No pesado silêncio, Dunross observava e esperava. Outra gota de suor escorreu do queixo de Paul Choy enquanto olhava para o pai, depois voltava o olhar para a mesa. Dunross sentiu ódio nele, e aquilo o interessou. Então, notou que Wu olhava para Paul Choy de maneira estranha e avaliadora. Instantaneamente, seu pensamento deu um salto à frente.

— Sou o árbitro de Hong Kong — disse em inglês. — Apóie-me e dentro de uma semana poderá ter lucros imensos.

— Heya?

Dunross observava Paul Choy. Viu quando ele ergueu o olhar, espantado.

— Por favor, traduza, sr. Choy — falou.

Paul Choy obedeceu. Dunross soltou um suspiro, satisfeito. Paul Choy deixara de traduzir "sou o árbitro de Hong Kong". Novo silêncio. Ele se descontraiu, agora mais tranqüilo, sentindo que os dois homens haviam engolido a isca.

— Tai-pan, a minha sugestão sobre a moeda, concorda? — perguntou o velho.

— Sobre o meu pedido, meu pedido de dinheiro de apoio, concorda?

Wu exclamou, irado:

— As duas coisas não estão interligadas como a chuva numa tempestade fornicadora. Sim ou não quanto à moeda?

— Concordo quanto à moeda. Mas não amanhã. Semana que vem. Quinto dia.

— Amanhã.

Paul Choy se interpôs, cuidadosamente:

— Honrado Tio, talvez possa pedir de novo a seus amigos amanhã. Na parte da manhã. Talvez possam ajudar o tai-pan. — Seus olhos argutos viraram-se para Dunross. — Amanhã é sexta-feira — disse, em inglês. — Que tal na segunda às... às quatro da tarde, para a moeda?

Repetiu em haklo.

— Por que a essa hora? — perguntou Wu, irritado.

— O mercado de dinheiro dos demônios estrangeiros fecha na terceira hora da tarde, Honrado Tio. A essa altura, a Casa Nobre será nobre, ou não.

— Sempre seremos a Casa Nobre, sr. Choy — disse Dunross, cortesmente, em inglês, impressionado com a habilidade do sujeito... e a argúcia com que entendera a indireta. — Concordo.

— Heya?

Depois que Paul Choy acabou, o velho soltou um resmungo.

— Primeiro, vou verificar os fluxos de Céu e Terra para ver se o dia é auspicioso. Se for, então concordo. — Fez um sinal com o polegar para Paul Choy. — Vá para o outro barco.

Paul Choy se levantou.

— Obrigado, tai-pan. Boa noite.

— Até breve, sr. Choy — replicou Dunross, esperando-o para o dia seguinte.

Quando estavam completamente sozinhos, o velho disse, suavemente:

— Obrigado, Velho Amigo. Logo faremos negócios mais íntimos.

— Lembre-se, Velho Amigo, do que dizem meus ancestrais — falou Dunross, agourentamente. — Tanto o Demônio de Olhos Verdes quanto aquela do Mau-Olhado e de Dentes de Dragão puseram uma grande maldição e mau-olhado nos Pós Brancos e naqueles que obtêm lucros com os Pós Brancos!

O velho marujo curtido pelo tempo, vestido nas suas belas roupas, deu de ombros, nervoso:

— E eu com isso? Não sei nada de Pó Branco nenhum. Fodam-se todos os Pós Brancos. Não sei nada sobre eles.

E foi embora.

Com mãos trêmulas, Dunross serviu-se de uma boa dose de bebida. Sentiu os movimentos da sampana sendo remada de novo. Seus dedos apanharam as impressões em cera. "Mil contra um que a moeda é genuína. Deus Todo-Poderoso, o que aquele demônio vai pedir? Drogas. Aposto que tem alguma coisa a ver com drogas! Eu inventei a tal história da maldição e do mau-olhado... não fazia parte do acordo de Dirk. Mesmo assim, não vou concordar com drogas. "

Mas estava pouco à vontade. Podia ver a letra de Dirk Struan na bíblia que assinara e endossara, concordando, perante Deus, "conceder a quem quer que apresente uma das meias moedas o que quer que ele peça, se estiver ao alcance do tai-pan dá-lo... "

Seus ouvidos pressentiram a presença estranha antes de ouvir o som. Outro barco roçou suavemente no seu. Ruído de passos. Ficou preparado, desconhecendo o perigo.

A moça era jovem, bela e alegre.

— Meu nome é Jade de Neve, tai-pan. Tenho dezoito anos e sou o presente pessoal do Honorável Wu Sang para a noite! — Um cantonense cantado, cheong-sam elegante, gola alta, pernas longas envoltas em meias e saltos altos. Sorriu, mostrando os belos dentes brancos. — Ele achou que o senhor talvez precisasse se alimentar.

— É mesmo? — murmurou ele, tentando se recompor. Ela riu e sentou-se.

— É, sim, foi o que ele disse. E eu também gostaria do seu alimento... está morrendo de fome, não está? O Honorável Dente de Ouro encomendou um ou dois petiscos para aguçar o seu apetite: camarões fritos com ervilhas, carne desfiada em molho de feijão-preto, bolinhos de massa fritos à moda de Xangai, legumes ligeiramente fritos temperados com couve de Szechuan, e galinha condimentada de Chiang Pao. — Abriu um amplo sorriso. — Eu sou a sobremesa!


Sexta-feira

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