24

18h20m

O tai-pan e Roger Crosse cruzavam o chão de pedrinhas brancas em direção à porta da frente do Palácio do Governo. Brian Kwok esperava ao lado do carro da polícia. A porta da frente se abriu e o jovem camarista com a farda da Marinha Real cumprimentou-os educadamente, depois fê-los entrar numa ante-sala exótica.

Sua Excelência, Sir Geoffrey Allison, DSO¹, OBE², era um homem de cabelos avermelhados de cinqüenta e muitos anos, impecável, de fala macia e extremamente durão. Estava sentado a uma escrivaninha antiga, e os observava.

¹ "Distinguished Service Order", comenda por destacados serviços. (N. da T.)

² "Order of British Empire", comenda do Império Britânico. (N. da T.)

— Boa noite — cumprimentou, serenamente, fazendo sinal para que se sentassem. Seu camarista fechou a porta, deixando-os a sós. — Parece que temos um problema, Roger. Ian possui legalmente certos documentos particulares que reluta em lhe entregar... e que você quer...

— Quero legalmente, senhor. Tenho autorização para isso, conferida por Londres a mim, de conformidade com a Lei dos Segredos Oficiais.

— É, eu sei, Roger. Falei com o ministro faz uma hora. Ele disse, e eu concordo, que não tem sentido prendermos o Ian e revistarmos a Casa Nobre como se fosse uma casa qualquer. Isso não ficaria bem, nem seria sensato, embora estejamos muito decididos a obter as pastas de Alan Medford Grant. E, igualmente, não ficaria bem nem seria sensato obtê-las à moda de capa-e-espada... sabe a que me refiro, não é?

Crosse retrucou:

— Com a cooperação de Ian nada disso seria necessário. Já o fiz ver que o governo de Sua Majestade está completamente envolvido. Ele parece que não quer entender, senhor. Devia cooperar.

— Concordo inteiramente. O ministro disse a mesma coisa. Naturalmente, quando Ian esteve aqui, pela manhã, explicou seus motivos para ser tão... tão cauteloso... motivos bem justos, devo dizer. O ministro também concorda. — Seus olhos cinzentos tornaram-se penetrantes. — Exatamente, quem é o agente comunista infiltrado na minha polícia? Quem são os agentes da Sevrin?

Fez-se um vasto silêncio.

— Não sei, senhor.

— Então, queira me fazer a gentileza de descobrir bem rápido. Ian foi bastante gentil, e me deixou ler o relatório de Alan Medford Grant que vocês corretamente interceptaram. — O rosto do governador ficou rubro, ao citar um trecho dele:

— "... esta informação deve ser transmitida particularmente ao comissário de polícia e ao governador, caso sejam considerados leais..." Virgem Santíssima! O que está havendo no mundo?

— Não sei, senhor.

— Mas devia saber, Roger. É. — O governador fitou-os.

— Bem, e quanto ao tal toupeira? Que tipo de homem poderia ser?

— O senhor, eu, Dunross, Havergill, Armstrong... qualquer um — replicou Crosse imediatamente. — Mas com uma característica: acho que ele se infiltrou tão fundo que provavelmente quase esqueceu quem realmente é, ou de que lado ficam seu verdadeiro interesse político e sua verdadeira lealdade. Deve ser alguém muito especial... como todo o pessoal da Sevrin. — O homem de rosto magro fitou Dunross. — Tem que ser gente muito especial. As verificações e vistorias do sei são realmente excelentes, assim como as da CIA, mas jamais tivemos sequer uma sombra de idéia da existência da Sevrin.

— Como vai pegá-lo? — perguntou Dunross.

— Como vai pegar o agente infiltrado na Struan?

— Não tenho a menor idéia. — "O espião da Sevrin será o mesmo que revelou nossos segredos a Bartlett?", perguntava-se Dunross, inquieto. — Se for do primeiro escalão, é um entre sete... todos acima de qualquer suspeita.

— Aí está — disse Crosse. — Todos acima de qualquer suspeita. Mas um deles é um espião. Se conseguirmos pegar um deles, provavelmente arrancaremos dele os nomes dos outros, se ele os souber. — Sua calma perversidade deixou os dois homens gelados. — Mas, para pegar um, alguém tem que cometer um deslize, ou teremos que ter um pouco de sorte.

O governador pensou por um momento. Depois, disse:

— Ian me assegurou que em momento algum os relatórios anteriores citam o nome de alguém... ou dão alguma pista. Sendo assim, os outros relatórios não teriam utilidade imediata para nós.

— Teriam, senhor. Em outras áreas, senhor.

— Eu sei. — As palavras foram ditas serenamente, mas significavam: "Cale a boca, sente-se e espere até eu acabar". Sir Geoffrey deixou o silêncio pesar por alguns momentos. — Portanto, nosso problema parece ser simplesmente uma questão de pedir a Ian a sua cooperação. Repito: concordo que sua precaução seja justificada. — Seu rosto enrijeceu-se. — Philby, Burgess e Maclean nos ensinaram a todos uma bela lição. Devo confessar que cada vez que telefono para Londres fico imaginando se não estarei falando com outro maldito traidor. — Assoou o nariz com um lenço de tecido. — Bem, chega dessa conversa. Ian, faça a gentileza de dizer ao Roger as circunstâncias sob as quais entregará as cópias dos relatórios de Alan Medford Grant.

— Eu as entregarei, pessoalmente, ao chefe ou subchefe da MI-6 ou da MI-5, desde que tenha a garantia por escrito de Sua Excelência de que o homem para quem as estou entregando é quem alega ser.

— O ministro concorda com isso, senhor?

— Se você concordar, Roger.

Novamente, ele falou de modo cortês, mas estava subentendido: "É melhor concordar, Roger".

— Muito bem, senhor. O Sr. Sinders concordou com o plano?

— Estará aqui na sexta-feira, se a BOAC quiser.

— Sim, senhor. — Roger Crosse olhou para Dunross. — É melhor eu ficar com as pastas, até lá. Você me dará um pacote lacra...

Dunross fez que não com a cabeça.

— Estarão em segurança até que eu as entregue. Crosse fez que não com a cabeça.

— Não. Se nós estamos sabendo, outros também estão. Os outros não jogam tão limpo quanto nós. Precisamos saber onde estão... temos que pô-las sob guarda, vinte e quatro horas por dia.

Sir Geoffrey concordou.

— Parece-lhe justo, Ian? Dunross pensou por um momento.

— Está certo. Coloquei-as numa caixa-forte do Victoria Bank. — O pescoço de Crosse ficou rosado quando Dunross tirou do bolso uma chave e colocou-a sobre a mesa. Os números haviam sido cuidadosamente apagados. — Existem cerca de mil cofres individuais. Só eu conheço o número. Esta é a única chave. Se quiser guardá-la, Sir Geoffrey... bem, é o máximo que posso fazer para evitar riscos.

— Roger?

— Sim, senhor. Se está de acordo.

— Lá estão realmente em segurança. É impossível arrombar todos eles. Ótimo, então isso está resolvido. Ian, o mandado está cancelado. Promete, Ian, entregá-las a Sinders, tão logo ele chegue? — Os olhos ficaram penetrantes de novo. — Tive uma trabalheira para resolver isso.

— Sim, senhor.

— Ótimo. Então, estamos conversados. Ainda nenhuma notícia do pobre John Chen, Roger?

— Não, senhor, estamos tentando tudo.

— Que coisa terrível. Ian, e essa história do Ho-Pak? Estão mesmo em dificuldades?

— Estão, senhor.

— Vão soçobrar?

— Não sei. Corre o boato de que vão.

— Que merda! Não estou gostando nada disso. Muito ruim para a nossa imagem. E a transação com a Par-Con?

— Parece boa. Espero ter um relatório favorável para o senhor na semana que vem.

— Excelente. Bem que podíamos usar umas boas firmas americanas por aqui. — Sorriu. — Ouvi dizer que a garota é um encanto! A propósito, a Delegação Comercial Parlamentar deve chegar de Pequim amanhã. Vou dar um jantar para eles na quinta-feira... você virá, é claro.

— Sim, senhor. O jantar será só para homens?

— É, boa idéia.

— Vou convidá-los para as corridas de sábado... o pessoal que sobrar poderá ir para o reservado do banco.

— Ótimo. Obrigado, Ian. Roger, se tiver um momentinho sobrando...

Dunross levantou-se, apertou a mão dos outros e saiu. Embora tivesse vindo com Crosse no carro da polícia, seu Rolls estava à espera. Brian Kwok interceptou-o.

— A que conclusão chegaram, Ian?

— Pediram-me para deixar que seu patrão lhe contasse.

— É justo. Ele vai demorar?

— Não sei. Está tudo bem, Brian. Não há com que se preocupar. Acho que resolvi o dilema corretamente.

— Espero que sim... que merda de situação.

— É. — Dunross entrou no banco traseiro do Silver Cloud. — Balsa Dourada — falou, vivamente.

Sir Geoffrey servia o excelente xerez em duas exóticas xícaras de porcelana casca de ovo.

— Essa história de Alan Medford Grant é bem assustadora, Roger — falou. — Infelizmente ainda não me acostumei às traições, e a toda a podridão de que o inimigo é capaz... mesmo depois de todo esse tempo. — Sir Geoffrey servira no corpo diplomático desde que começara a trabalhar, exceto na época da guerra, quando fora oficial do estado-maior do exército britânico. Falava russo, mandarim, francês e italiano. — É terrível.

— É sim, senhor. — Crosse observava-o. — Tem certeza de que pode confiar em Ian?

— Na sexta-feira você não necessitará da autorização de Londres para prosseguir. Tem uma ordem no conselho. Na sexta-feira, nós nos apossaremos das pastas.

— Sim, senhor. — Crosse aceitou a xícara de porcelana, preocupado com a sua fragilidade. — Obrigado, senhor.

— Sugiro que mantenha dois homens nas caixas-fortes ininterruptamente, um do sei e outro do DIC, para efeito de segurança, e um vigia à paisana atrás do tai-pan... discretamente, é claro.

— Providenciarei quanto ao banco antes de sair. Quanto a ele, já está sob vigilância discreta.

— Ah, já?

— Sim, senhor. Imaginei que ele manipularia a situação para ir de encontro aos seus propósitos. Ian é um sujeito muito ardiloso. Afinal, o tai-pan da Casa Nobre nunca é um tolo.

— Não. Saúde! — Tocaram as xícaras delicadamente, uma na outra. O ruído emitido era lindo. — Este tai-pan é o melhor dentre todos com quem já lidei.

— Ian mencionou se tinha relido todas as pastas recentemente, senhor? Ontem à noite, por exemplo?

— Não creio — disse Sir Geoffrey franzindo o cenho, relembrando a conversa deles, pela manhã. — Espere aí, ele falou... falou exatamente: "Quando li os relatórios de Alan pela primeira vez, achei que algumas das idéias dele eram exageradas demais. Mas agora... e agora que está morto, mudei de idéia..." Isso pode significar que ele as tenha relido recentemente. Por quê?

Crosse examinava contra a luz a xícara de porcelana delicadíssima.

— Sempre ouvi dizer que ele tem uma memória notável. Se as pastas na caixa-forte são intocáveis... bem, não gostaria que o KGB se sentisse tentado a seqüestrá-lo.

— Santo Deus, não acha que seriam burros a esse ponto, acha? O tai-pan?

— Depende da importância que dêem aos relatórios, senhor — falou Crosse, serenamente. — Talvez nossa vigilância deva ser relativamente ostensiva... isso os faria correr, caso estivessem com tal idéia. Quer explicar isso a ele, senhor?

— Mas, claro. — Sir Geoffrey tomou nota no seu bloquinho. — Boa idéia. É um caso sério. Será que os Lobisomens... será que existe algum elo entre as armas contrabandeadas e o seqüestro de John Chen?

— Não sei, senhor. Ainda. Já encarreguei Armstrong e Brian Kwok do caso. Se houver alguma ligação, eles. a encontrarão. — Ficou olhando a luz do pôr-do-sol que tocava na porcelana translúcida, azul-pálida, que parecia realçar o brilho dourado do xerez seco La Ina. — Interessante, o jogo de cores.

— É. São T'ang Ying... têm o nome do diretor da fábrica do imperador, em 1736. Na verdade, o imperador Ch'en Leung. — Sir Geoffrey ergueu os olhos para Crosse. — Um espião infiltrado na minha polícia, na minha secretaria colonial, no meu Departamento do Tesouro, na base naval, no Victoria, na companhia telefônica, e até mesmo na Casa Nobre. Poderiam paralisar-nos e criar a maior confusão entre nós e a RPC.

— Sim, senhor. — Crosse examinou a xícara. — Parece impossível que seja tão fina. Nunca vi uma xícara assim antes.

— Você é colecionador?

— Não, senhor. Infelizmente, não sei nada sobre elas.

— Essas são as minhas favoritas, Roger. Muito raras. Têm o nome de t'o t'ai: "sem corpo". São tão finas que os esmaltes, por dentro e por fora, parecem tocar-se.

— Quase me dá medo segurá-la.

— Ah, mas são bem fortes. Delicadas, é claro, mas fortes. Quem poderia ser Arthur?

Crosse soltou um suspiro.

— Não há pista alguma neste relatório. Nenhuma. Já o li cinqüenta vezes. Deve haver alguma nos outros, não importa o que Dunross ache.

— Possivelmente.

A xícara delicada parecia fascinar Crosse.

— A porcelana é uma argila, não é?

— É. Mas este tipo é feito de uma mistura de duas argilas, Roger: caulim (em homenagem à zona montanhosa de King-tehchen, onde é encontrada) e pan tun tse, os chamados bloquinhos brancos. Os chineses os chamam a carne e os ossos da porcelana. — Sir Geoffrey foi até junto da mesa de tampo de couro trabalhado que fazia as vezes de bar e trouxe de lá a garrafa de licor. Tinha uns vinte centímetros de altura, e era bastante translúcida, quase transparente. — O azul também é admirável. Quando o corpo está bem seco, sopra-se cobalto em pó sobre a porcelana com um pedaço de bambu. Na realidade, a cor é composta de milhares de pintinhas minúsculas individuais de azul. Depois, ela é vitrificada e levada ao forno... a cerca de mil e trezentos graus.

Ele a devolveu ao bar, o toque de artesanato e a visão da peça encantando-o.

— Notável.

— Sempre houve um decreto imperial proibindo a sua exportação. Nós, quai loh, tínhamos apenas direito a artigos feitos de hua shih, "pedra escorregadia", ou tun ni, "lama de tijolo". — Olhou de novo para a sua xícara, como um connaisseur. — O gênio que fez isto provavelmente ganhava cem dólares por ano.

— Talvez estivesse ganhando demais — disse Crosse, e os dois homens sorriram juntos.

— Talvez.

— Vou descobrir Arthur, senhor, e os outros. Pode contar com isso.

— Parece que tenho que contar, Roger. Tanto o ministro quanto eu estamos de acordo. Ele terá que informar ao primeiro-ministro, e aos chefes do estado-maior.

— Então a informação passará por toda espécie de mãos e línguas, e o inimigo sem dúvida descobrirá que estamos no seu rastro.

— É. Portanto, teremos que andar depressa. Comprei quatro dias de vantagem para você, Roger. O ministro não passará nada adiante durante esse período.

— Comprou, senhor?

— É um modo de falar. Na vida, obtemos e damos vales... até mesmo no corpo diplomático.

— Sim, senhor. Obrigado.

— Nada ainda sobre Bartlett e a srta. Casey?

— Não, senhor. Rosemont e Langan solicitaram dossiês atualizados. Parece haver alguma ligação entre Bartlett e Banastasio... não temos ainda certeza do que é. Tanto ele quanto a srta. Tcholok estiveram em Moscou no mês passado.

— Ah! — Sir Geoffrey voltou a encher as xícaras. — O que fez com relação àquele pobre sujeito, o Voranski?

— Devolvi o corpo ao navio, senhor.

Crosse resumiu para ele o seu encontro com Rosemont e Langan, e a história das fotos.

— Mas que golpe de sorte! Nossos primos estão ficando muito sabidos — comentou o governador. — É melhor você achar os tais assassinos antes do KGB... ou da CIA, não?

— Tenho equipes agora cercando a casa. Tão logo apareçam, nós os agarraremos. Ficarão incomunicáveis, é claro. Mandei apertar a segurança ao redor do Ivânov. Ninguém mais vai escapar pelas malhas da rede, prometo. Ninguém.

— Ótimo. O comissário de polícia me disse que mandou o DIC ficar mais alerta, também. — Sir Geoffrey pensou por um momento. — Vou mandar um memorando ao secretário explicando por que você não obedeceu à l-4a. O pessoal americano da ligação em Londres vai ficar muito aborrecido, mas, sob tais circunstâncias, como poderia você obedecer?

— Se posso fazer uma sugestão, senhor, talvez fosse melhor pedir-lhe que não mencionasse que ainda não temos as pastas, senhor. Essa informação também poderia cair em mãos erradas. Deixemos isso de lado, enquanto pudermos.

— É, concordo. — O governador bebericou o seu xerez. — Há um bocado de sabedoria no laissez-faire, não é?

— Sim, senhor.

Sir Geoffrey lançou um olhar ao relógio de pulso.

— Vou ligar para ele daqui a alguns minutos, para pegá-lo ainda antes do almoço. Bem. Mas há um problema que não posso deixar de lado: o Ivânov. Hoje de manhã soube pelo nosso intermediário não-oficial que Pequim encara a presença do tal navio aqui com a maior preocupação.

O porta-voz não-oficial da República Popular da China em Hong Kong, e o mais alto funcionário comunista, era, ao que constava, atualmente, um dos vice-presidentes da junta diretora do Banco da China, o banco central da China, pelo qual passava todo o câmbio exterior e todos os bilhões de dólares americanos ganhos com o suprimento de bens de consumo e de quase toda a comida e a água de Hong Kong. A Grã-Bretanha sempre afirmara, intransigentemente, que Hong Kong era solo britânico, uma colônia da coroa. Em toda a história de Hong Kong, desde 1841, a Grã-Bretanha jamais permitira que qualquer representante oficial da China residisse na colônia. Nenhum.

— Ele me atiçou ao máximo, com relação ao Ivânov — continuou Sir Geoffrey —, e fez questão de registrar o extremo desprazer de Pequim ao saber que um navio espião soviético estava aqui. Chegou a sugerir que eu talvez achasse de bom alvitre expulsá-lo... "Afinal de contas", disse, "soubemos que um dos espiões do KGB soviético, fazendo-se passar por marinheiro, chegou a ser morto em nosso solo." Agradeci-lhe pelo seu interesse e disse que falaria com meus superiores... na devida hora. — Sir Geoffrey bebericou um pouco de xerez. — O curioso é que não pareceu irritado com a presença do porta-aviões nuclear aqui.

— Que estranho! — Crosse ficou igualmente surpreso.

— Será que isso indica outra alteração na política... uma mudança distinta e significativa de política externa, um desejo de paz com os Estados Unidos? Não posso crer nisso. Tudo indica um ódio patológico aos Estados Unidos. Se transpirasse a existência da Sevrin, que estão infiltrados aqui... Deus todo-poderoso, eles teriam convulsões, e com toda a razão! — falou o governador com um suspiro e tornando a encher as xícaras.

— Encontraremos os traidores, senhor, não se preocupe. Nós os encontraremos!

— Será? É o que me pergunto. — Sir Geoffrey sentou-se no banco embutido sob a janela e fitou os gramados bem-trata-dos, o jardim inglês, arbustos, canteiros de flores cercados pelo muro alto e branco, o belo pôr-do-sol. Sua mulher estava cortando flores, caminhando por entre os canteiros nos fundos do jardim, seguida por um jardineiro chinês de cara amarrada. Sir Geoffrey observou-a por um momento. Estavam casados há trinta anos, tinham três filhos, todos casados, e viviam satisfeitos e em paz, mutuamente. — Sempre traidores — falou, tristemente. — Os soviéticos são mestres no emprego deles. É tão fácil para os traidores causarem uma agitação, espalharem um pouco de veneno aqui e ali, tão fácil deixar a China perturbada, a pobre China, que já é xenófoba, de qualquer modo! Ah, como é fácil balançar o nosso coreto aqui! O pior de tudo, quem é o seu espião? O espião da polícia? Tem que ser um inspetor-chefe, no mínimo, para ter acesso a essa informação.

— Não tenho idéia. Se tivesse, ele já estaria neutralizado há muito tempo.

— O que vai fazer sobre o general Jen e os seus agentes secretos nacionalistas?

— Vou deixá-los em paz... há meses que estão na nossa mira. É muito melhor deixar os agentes inimigos conhecidos onde estão do que ter de descobrir seus substitutos.

— Concordo... eles certamente seriam todos substituídos. Os deles, os nossos. Triste, muito triste! Nós o fazemos, eles o fazem. Tão triste e tão estúpido... este mundo é um paraíso, poderia ser um paraíso.

Uma abelha entrou zumbindo pelos janelões, depois voltou voando para o jardim, quando Sir Geoffrey afastou as cortinas.

— O ministro me pediu que eu me certificasse de que nossos deputados visitantes (a delegação comercial que foi à China, e que volta amanhã) tivessem a mais completa segurança, embora totalmente discreta.

— Sim, senhor. Compreendo.

— Parece que um ou dois deles poderão ser futuros ministros do governo, se o Partido Trabalhista for eleito. Seria bom para a colônia dar-lhes uma excelente impressão.

— Acha que terão uma chance na próxima vez? Quero dizer, o Partido Trabalhista?

— Não dou respostas a esse tipo de perguntas, Roger. — A voz do governador era seca, desaprovadora. — Não me interessa a política partidária... represento Sua Majestade, a rainha... mas, pessoalmente, gostaria muito que alguns dos seus extremistas fossem embora e nos deixassem viver a nossa vida, pois está claro que grande parte da sua filosofia socialista de esquerda é estranha ao modo de vida inglês. — Sir Geoffrey falou mais duramente. — É bastante óbvio que alguns deles ajudam o inimigo, de bom grado... ou como inocentes úteis. Já que estamos falando no assunto, algum dos nossos convidados é um risco para a segurança?

— Depende do que quer dizer com isso, senhor. Dois apoiam os sindicalistas de extrema esquerda, Robin Grey e Lochlin Donald McLean. McLean se vangloria abertamente da sua filiação ao Partido Comunista Britânico. Figura bem no alto da nossa lista de riscos para a segurança, lista S. Todos os outros socialistas são moderados. Os membros do Partido Conservador são moderados, da classe média, todos ex-militares. Um deles é um tanto imperialista, Hugh Guthrie, o representante do Partido Liberal.

— E os da extrema esquerda? São ex-militares?

— McLean era mineiro, pelo menos o pai era. Passou a maior parte da sua vida comunista como representante dos empregados e sindicalistas nas minas de carvão da Escócia. Robin Grey pertenceu ao exército, foi capitão da infantaria.

Sir Geoffrey ergueu os olhos.

— Não se costuma considerar ex-capitães como sindicalistas radicais, não é?

— Não, senhor. — Crosse tomou um gole do xerez, apreciando-o, saboreando ainda mais a informação que possuía. — Nem como aparentados com um tai-pan.

— Como?

— A irmã de Robin Grey é Penelope Dunross.

— Santo Deus! — Sir Geoffrey fitou-o, atônito. — Tem certeza?

— Tenho sim, senhor.

— Mas por que... por que motivo Ian não mencionou tal fato?

— Não sei, senhor. Quem sabe sinta vergonha dele. O Sr. Grey é o oposto absoluto da sra. Dunross.

— Mas... meu Deus do céu, tem certeza?

— Sim, senhor. Na verdade, foi Brian Kwok que percebeu a ligação. Por puro acaso. Os deputados tinham que dar as informações pessoais de praxe à RPC para obterem seus vistos, data do nascimento, parentes mais próximos, etc. Brian estava fazendo uma verificação de rotina para se certificar de que todos os vistos estavam em ordem, para evitar qualquer problema na fronteira. Ele notou, por acaso, que o Sr. Grey colocara como parente mais próximo "irmã, Penelope Grey", dando como endereço o Castelo Avisyard, em Ayr. Brian lembrou-se de que aquele era o endereço da casa da família Dunross. — Crosse tirou do bolso a cigarreira de prata. — Importa-se se eu fumar, senhor?

— Não, por favor, à vontade.

— Obrigado. Isso faz cerca de um mês. Achei que era importante o bastante para pesquisar a informação. Levou relativamente pouco tempo para estabelecermos que a sra. Dunross era realmente sua irmã e parente mais próxima. Segundo sabemos agora, a sra. Dunross brigou com o irmão logo após a guerra. O capitão Grey foi prisioneiro de guerra em Changi, preso em Cingapura em 1942. Voltou para casa no final de 1945... a propósito, os pais de ambos foram mortos na Blitz de Londres, em 1943. A essa altura, ela já estava casada com Dunross... haviam se casado em 43, senhor, pouco depois de ele ter sido abatido. Ela trabalhava no Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea. Sabemos que os dois irmãos se encontraram quando Grey foi solto. Ao que nos consta, jamais se encontraram novamente. Claro que não é da nossa conta, mas a briga deve ter sido...

Crosse interrompeu-se ao ouvir uma batida discreta. Sir Geoffrey respondeu, com certa irritação:

— O que é?

A porta se abriu.

— Com licença, senhor — disse seu assessor, cortesmente. — Lady Allison pediu-me que o avisasse de que a água acaba de ser ligada.

— Ah, que maravilha! Obrigado. — A porta se fechou.

Crosse levantou-se imediatamente, mas o governador fez-lhe sinal para que voltasse a se sentar. — Não, por favor, Roger, termine. Alguns minutos não vão fazer diferença, embora deva confessar que mal posso esperar. Gostaria de tomar uma chuveirada antes de partir?

— Obrigado, senhor, mas temos as nossas caixas-d'água no QG da polícia.

— Ah, é, tinha esquecido. Continue... você falava da briga?

— A briga deve ter sido bem séria, porque parece que foi definitiva. Um amigo íntimo de Grey contou ao nosso pessoal, faz alguns dias, que, ao que lhe constava, Robin Grey não tinha parentes vivos. Devem realmente se odiar.

Sir Geoffrey fitou a sua xícara, sem vê-la. De repente estava se lembrando da própria infância desgraçada, e de como odiara o pai. Odiara-o tanto que durante trinta anos jamais lhe telefonara, ou lhe escrevera, e, quando ele estava morrendo, no ano anterior, não se dera ao trabalho de ir procurá-lo, de fazer as pazes com o homem que lhe dera a vida.

— As pessoas são terríveis umas com as outras — resmungou, tristemente. — Eu sei. É. As brigas de família são fáceis demais. E depois, quando é tarde demais, a gente as lamenta, é, lamenta de verdade. As pessoas são terríveis umas com as outras...

Crosse observava e esperava, deixando-o divagar, deixando-o revelar-se, tomando cuidado para não fazer o menor movimento para distraí-lo, querendo conhecer os segredos do outro, as coisas vergonhosas que porventura ocultasse. Como Alan Medford Grant, Crosse colecionava segredos. "Maldito seja aquele filho da mãe e suas pastas amaldiçoadas! Maldito seja Dunross e sua astúcia diabólica! Como, em nome de Deus, posso pegar aquelas pastas antes de Sinders?"

Sir Geoffrey fitava o vazio. A seguir, a água borbulhou gostosamente nos canos das paredes, e ele voltou ao presente. Viu que Crosse o observava.

— Humm, pensando em voz alta! Mau hábito para um governador, não é?

Crosse sorriu, mas não caiu na armadilha.

— Senhor?

— Bem. Como você falou, não é mesmo da nossa conta. — O governador terminou seu drinque com ar decidido, e Crosse compreendeu que fora dispensado. Levantou-se.

— Obrigado, senhor.

Quando ficou a sós, o governador soltou um suspiro. Pensou por um momento, depois apanhou o telefone especial e deu à telefonista o número particular do ministro, em Londres.

— Aqui fala Geoffrey Allison. Ele está, por favor?

— Alô, Geoffrey!

— Alô, senhor. Acabo de estar com Roger, que me assegurou que o esconderijo e Dunross serão estreitamente vigiados. O Sr. Sinders está a caminho?

— Estará aí na sexta-feira. Presumo que não houve repercussões do acidente infeliz com aquele marinheiro...

— Não, senhor. Tudo parece estar sob controle.

— O primeiro-ministro ficou muito preocupado.

— Sim, senhor. — E acrescentou: — Quanto à l-4a... quem sabe não deveríamos contar nada aos nossos amigos, ainda.

— Já tive notícias deles. Estavam tremendamente irritados. Nosso pessoal também estava. Está certo, Geoffrey. Felizmente, esse fim de semana é mais longo, portanto eu os informarei na segunda-feira, e prepararei então a reprimenda dele.

— Obrigado, senhor.

— Geoffrey, esse senador americano que está com vocês, no momento... Acho que devia ser orientado.

O governador franziu o cenho. "Orientado" era uma palavra-código entre eles, e queria dizer "vigiado muito cuidadosamente". O senador Wilf Tillman, que ambicionava ser presidente, estava de visita a Hong Kong, a caminho de Saigon, para uma missão muito divulgada de verificação de fatos.

— Vou cuidar do assunto logo que desligar. Alguma coisa mais, senhor? — perguntou, impaciente agora para tomar banho.

— Não, basta me dar um minutinho do seu tempo para me contar qual foi o programa do senador. — "Programa" era outra palavra-código, que queria dizer "fornecer à secretaria colonial informações detalhadas". — Quando tiver tempo.

— Estará na sua mesa na sexta-feira.

— Obrigado, Geoffrey. Conversaremos amanhã, na hora de costume.

O aparelho emudeceu.

O governador recolocou o fone no gancho, pensativo. A conversa deles sofrerá interferências eletrônicas, e as interferências haviam sido eliminadas, em ambos os lados. Mesmo assim, estavam protegidos. Sabiam que o inimigo tinha o equipamento de escuta secreta mais avançado e sofisticado do mundo. Para qualquer conversa ou reunião realmente sigilosa, ele se dirigia ao quarto de concreto tipo cela, no porão, permanentemente vigiado, e que era reexaminado meticulosamente por peritos em segurança semanalmente, contra possíveis aparelhos de escuta eletrônicos.

"Mas que merda", pensou Sir Geoffrey. "Uma merda duma amolação, toda essa história de capa-e-espada! Roger? Inconcebível. Mas também era inconcebível que Philby..."


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