13
22h25m
— Excelente jantar, Ian, melhor do, que o do ano passado — comentou expansivamente Sir Dunstan Barre, do lado oposto da mesa.
— Obrigado.
Dunross ergueu seu copo polidamente, depois tomou um gole do conhaque de primeira.
Barre engoliu de uma vez o vinho do Porto, depois encheu de novo o cálice, o rosto mais rosado do que de costume.
— Comi demais, como sempre, por Deus! Hem, Phillip? Phillip!
— Ah... é sim... muito melhor — murmurou Phillip Chen.
— Está bem, meu velho?
— Estou... é só que... ah, estou.
Dunross franziu a testa, depois correu os olhos pelas outras mesas, mal escutando o que eles diziam.
Estavam só eles três agora, sentados à mesa redonda que acomodara doze pessoas confortavelmente. Às outras mesas, espalhadas pelos terraços e gramados, os homens se demoravam tomando conhaque, vinho do Porto, fumando charutos, ou formavam grupinhos, em pé, já que todas as senhoras haviam entrado na casa. Viu Bartlett de pé junto às mesas do bufê, que uma hora antes gemiam ao peso de pernis de carneiro assado, saladas, rosbifes malpassados, imensos empadões de carne e rins, batatas assadas e legumes de vários tipos, doces, bolos e esculturas de sorvete. Um pequeno exército de criados estava retirando as sobras, esvaziando as mesas. Bartlett estava muito entretido conversando com o superintendente-chefe Roger Crosse e o americano, Ed Langan. "Daqui a pouco vou tratar dele", pensou, sombriamente... "mas primeiro vem Brian Kwok." Olhou ao seu redor. Brian Kwok não estava à sua mesa, aquela em que Adryon fora a anfitriã, nem sentado a outra mesa qualquer, portanto ele se recostou pacientemente, bebericou o seu conhaque e deixou o pensamento vagar.
Arquivos secretos, MI-6, Serviço Especial de Informações, Bartlett, Casey, Gornt, nada de Tsu-yan, e agora Alan Medford Grant mortinho da Silva. Seu telefonema de antes do jantar para Kiernan, o assistente de Alan Medford Grant em Londres, fora chocante.
— Foi hoje de manhã, Sr. Dunross — dissera Kiernan. — Chovia, estava muito escorregadio, e ele era um motoqueiro entusiástico, como o senhor sabe. Vinha para a cidade, como de costume. Ao que nos consta, não houve testemunhas. O sujeito que o encontrou, na estrada rural perto de Esher e da Auto-Estrada A3, disse que vinha guiando em meio à chuva quando, de repente, deparou com a moto virada de lado e um homem caído na beira da estrada. Disse que, ao que lhe parecera, Alan já estava morto quando chegou junto dele. Chamou a polícia, e ela começou as investigações, mas... bem, que posso dizer? É uma grande perda para todos nós.
— É. Ele deixou família?
— Não que eu saiba, senhor. Naturalmente, informei a MI-6 imediatamente.
— É?
— É, sim, senhor.
— Por quê?
Houve forte estática na linha.
— Ele deixara instruções comigo, senhor. Se alguma coisa lhe acontecesse, eu devia ligar para dois números imediatamente, e passar-lhe um telegrama, o que fiz. Nenhum dos números me dizia nada. O primeiro deles acabou sendo o número particular de um alto funcionário da MI-6... chegou aqui em meia hora, com alguns auxiliares, e eles revistaram a escrivaninha e os documentos pessoais de Alan. Levaram a maioria, quando se foram. Quando ele viu a cópia do último relatório, daquele que acabáramos de lhe mandar, ficou uma fera, e quando pediu cópias de todos os outros, e eu lhe disse, seguindo as instruções de Alan, que eu sempre destruía a cópia do escritório logo que tínhamos notícia de que o senhor recebera a sua, ele quase teve um derrame. Parece que Alan não tinha, realmente, permissão do governo de Sua Majestade para trabalhar para o senhor.
— Mas eu tenho, por escrito, a garantia de Grant de que obtivera autorização, prévia do governo.
— Sei, senhor. O senhor não fez nada de ilegal, mas o tal sujeito da MI-6 quase ficou maluco.
— Quem era ele? Como se chamava?
— Disseram-me, senhor, disseram-me, que não devia mencionar nome algum. Ele era muito pomposo, e resmungou algo sobre a Lei dos Segredos Oficiais.
— Você falou em dois números de telefone?
— Sim, senhor. O outro ficava na Suíça. Uma mulher atendeu, e quando lhe contei, ela disse: "Ah, que pena", e desligou. Era estrangeira, senhor. Uma coisa interessante, nas instruções finais de Alan, ele mandara que eu não mencionasse nenhum dos números um para o outro, mas, como o cavalheiro da MI-6 estava, digamos assim, nervoso, eu lhe contei. Ligou prontamente, mas a linha estava ocupada, e ficou ocupada muito tempo, e então a telefonista avisou que o número fora temporariamente desligado. Ele ficou um bocado furioso, senhor.
— Pode continuar com os relatórios de Alan?
— Não, senhor. Eu era apenas um auxiliar... punha em ordem as informações que ele arranjava. Apenas escrevia os relatórios para ele, atendia ao telefone quando ele não estava, pagava as contas do escritório. Ele passava uma boa parte do tempo no continente, mas nunca dizia onde tinha estado, nem me confidenciava nada. Ele era... bem, jogava com as cartas bem grudadas ao nariz. Não sei quem lhe dava coisa alguma... nem conheço o número do seu telefone em Whitehall. Como disse, ele era muito reservado...
Dunross suspirou e tomou o seu conhaque. "Uma pena", pensou. "Foi mesmo um acidente... ou ele foi assassinado? E quando a MI-6 vai pular no meu pescoço? A conta numerada na Suíça? Isso também não é ilegal, e não é da conta de ninguém, salvo minha e dele.
"O que fazer? Tem que haver um substituto, em algum lugar.
"Foi um acidente? Ou ele foi morto?"
— Como disse? — falou, sem ter percebido o que Barre dissera.
— Eu estava dizendo que foi gozado à beca quando Casey não quis ir e você a mandou embora. — O grandalhão riu. — Você tem peito, meu velho.
No final do jantar, pouco antes da chegada do porto, do conhaque e dos charutos, Penelope se levantara da mesa, onde Linc Bartlett estava entretidíssimo conversando com Havergill, e as senhoras a acompanharam, e depois Adryon, à sua mesa, e então, vindas de todos os lados, as senhoras se levantaram e a seguiram. Lady Joanna, sentada à direita de Dunross, dissera:
— Vamos, garotas, hora de empoar o nariz. Obedientemente, as outras mulheres se levantaram com ela, e os homens, educadamente, fingiram não estar aliviados com o êxodo delas.
— Vamos indo, querida — disse Joanna a Casey, que permanecera sentada.
— Não, obrigada, estou bem.
— Sei que está, mas... venha, mesmo assim. Então, Casey notou que todos a fitavam.
— O que é que há?
— Nada, querida — disse Lady Joanna. — É costume as senhoras deixarem os homens sozinhos por algum tempo, com o vinho do Porto e os charutos. Portanto, venha comigo.
Casey a fitou, surpresa.
— Quer dizer que somos mandadas embora enquanto os homens discutem negócios de Estado e o preço do chá na China?
— É questão de bons modos, querida. Em Roma, faça como os romanos...
Lady Joanna a observava, com um leve sorriso desdenhoso nos lábios, curtindo o silêncio embaraçado e o ar chocado da maioria dos homens. Todos os olhares se voltaram para a moça americana.
— Não pode estar falando a sério. Esse costume acabou antes da Guerra Civil — falou Casey.
— Estou certa que sim, nos Estados Unidos. — Joanna deu o seu sorriso retorcido. — Aqui é diferente, faz parte da Inglaterra. É uma questão de bons modos. Vamos, minha cara.
— Já vou... minha cara — retrucou Casey, com igual doçura. — Daqui a pouco.
Joanna soltou um suspiro, deu de ombros, olhou para Dunross com a sobrancelha levantada, deu o seu sorriso torto e se retirou com as outras senhoras. Fez-se um silêncio atônito à mesa.
— Tai-pan, não se incomoda que eu fique, não é? — perguntou Casey, rindo.
— Infelizmente, incomodo-me — disse ele, gentilmente. — É só um costume, nada importante. É apenas para que as senhoras possam se utilizar primeiro do banheiro e dos baldes de água.
O sorriso dela se desvaneceu, e começou a empinar o queixo.
— E se eu preferir não ir?
— É só um costume nosso, Ciranoush. Na América é costume chamar pelo primeiro nome uma pessoa a quem se acaba de conhecer, aqui não é. Mesmo assim... — Dunross devolvia o olhar calma, mas inflexivelmente. — Não é nenhum desprestígio.
— Acho que é.
— Lamento... mas lhe asseguro que não é.
Os outros esperavam, observando-o e observando-a, curtindo o confronto, mas ao mesmo tempo estupefatos com ela. Exceto Ed Langan, que estava constrangidíssimo por causa dela.
— Qual é, Casey — falou, tentando levar a coisa na brincadeira —, não se pode lutar contra a prefeitura.
— É o que venho tentando fazer a vida inteira — disse ela, vivamente... claro que furiosa. Depois, abruptamente, deu um sorriso glorioso. Tamborilou com os dedos momentaneamente na toalha da mesa, e se levantou. — Se os cavalheiros me dão licença... — disse, meigamente, e se foi, com um silêncio atônito seguindo seus passos.
— Não é que eu a tenha mandado embora — disse Dunross.
— Mas foi gozado à beca, mesmo assim — disse Barre. — O que a fez mudar de idéia? Hem, Phillip?
— O quê? — indagou Phillip Chen, distraído.
— Houve um momento em que pensei que ela ia dar um soco no pobre do Ian, você não pensou? Mas ela pensou em alguma coisa que a fez mudar de idéia. O quê?
Dunross sorriu.
— Aposto que não foi boa coisa. Aquela fulana é perigosa como um punhado de escorpiões.
— Mas tem uma bela peitaria — comentou Barre.
Eles riram. Phillip Chen não riu. A preocupação de Dunross com ele aumentou. Tentara animá-lo a noite toda, mas nada afastara aquele véu. Durante todo o jantar Phillip estivera apagado, monossilábico. Barre levantou-se, soltando um arroto.
— Acho que vou dar uma mijada enquanto ainda há espaço.
Saiu aos tropeções para o jardim.
— Não mije em cima das camélias — disse Ian, distraidamente, depois forçou-se a se concentrar. — Phillip, não fique preocupado — falou, agora que estavam sozinhos. — Logo vão encontrar John.
— É, estou certo que sim — disse Phillip Chen, desanimado, a mente não propriamente embotada pelo seqüestro, mas aparvalhada com o que descobrira na caixa de depósito bancário do filho, naquela tarde. Ele a abrira com a chave que tirara da caixa de sapatos.
— Ande, Phillip, pegue-a, não seja bobo — sibilara-lhe a mulher, Dianne. — Pegue-a... se não a pegarmos, o tai-pan a pegará!
— É, é, eu sei.
"Graças a todos os deuses que a peguei", pensou, ainda em choque, lembrando-se do que encontrara ao examinar o conteúdo da caixa. Envelopes de papel pardo de diversos tamanhos, a maior parte especificando os itens, um diário e um caderno de telefones. No envelope marcado "dívidas", papéis de apostas no valor de noventa e oito mil HK de dívidas com jogadores ilegais e clandestinos de Hong Kong. Uma promissória em favor de Avarento Sing, um agiota notório, no valor de trinta mil HK, com juros de três por cento ao mês. Uma promissória há muito vencida no Ho-Pak Bank, no valor de vinte mil dólares americanos, e uma carta de Richard Kwang, datada da semana anterior, dizendo que, a não ser que John Chen tomasse logo providências, seria forçado a conversar com o pai dele. Depois havia cartas que documentavam uma amizade crescente entre o filho e um jogador americano, Vincenzo Banastasio, que assegurava a John Chen que não havia pressa no pagamento das suas dívidas para com ele: "...não se apresse, John, seu crédito é o melhor; em qualquer época, este ano, estará ótimo..." Anexo às cartas, a fotocópia de uma nota promissória autenticada, perfeitamente legal, pela qual o filho, seus herdeiros ou procuradores, obrigavam-se a pagar a Banastasio, mediante requisição, quatrocentos e oitenta e cinco mil dólares americanos, mais juros.
"Burro, burro", vociferara intimamente, sabendo que o filho não tinha mais do que um quinto daquele valor, e que portanto ele próprio acabaria tendo que pagar a dívida.
Fora então que um envelope grosso em que estava escrito "Par-Con" chamara sua atenção.
Nele havia um contrato de emprego com a Par-Con assinado por K. C. Tcholok, há três meses, contratando os serviços de John Chen como consultor particular da Par-Con por "... cem mil de entrada (dos quais cinqüenta mil são por este considerados como já tendo sido pagos) e, tão logo um negócio satisfatório seja fechado e assinado entre a Par-Con e a Struan, a Rothwell-Gornt ou qualquer outra companhia escolhida pela Par-Con, mais um milhão de dólares pagos ao longo de um período de cinco anos, em prestações iguais; e dentro de trinta dias, a partir da assinatura do contrato acima mencionado, uma dívida contraída com o Sr. Vincenzo Banastasio, de Orchard Road, 85, Las Vegas, Nevada, de quatrocentos e oitenta e cinco mil dólares, será paga, mais a prestação de duzentos mil referente ao primeiro ano, juntamente com o saldo de cinqüenta mil..."
— Em troca do quê? — murmurara Phillip Chen, ofegante e impotente, dentro do cofre-forte do banco.
Mas o longo contrato nada mais indicava além de que John Chen seria um "consultor particular na Ásia". Não havia notas ou papéis anexos ao contrato.
Apressadamente, verificara de novo o envelope, para ver se deixara escapar algo, mas ele estava vazio. Uma verificação rápida dos outros envelopes dera em nada. Fora então que notara um fino envelope aéreo meio grudado a outro. Nele estava escrito "Par-Con II". Continha fotocópias de bilhetes escritos à mão pelo filho para Linc Bartlett.
O primeiro era datado de seis meses atrás, e confirmava que ele, John Chen, forneceria à Par-Con as informações mais confidenciais sobre o funcionamento secreto de todo o complexo Struan. "...naturalmente, isto tem que ser mantido em completo sigilo, mas, por exemplo, Sr. Bartlett, o senhor pode ver pelas folhas de balanço geral da Struan, anexas, desde 1954 até 1961 (quando ela se tornou empresa de capital aberto), que o que aconselho é perfeitamente exeqüível. Se examinar o mapa da estrutura corporativa da Struan, e a lista de alguns dos mais importantes acionistas da Struan, e seus bens secretos, inclusive os do meu pai, não terá problemas com nenhuma proposta de compra de controle que a Par-Con queira compor. Acrescente a essas fotocópias a outra coisa que lhe contei (juro por Deus que pode crer em mim) e garanto o seu êxito. Estou pondo minha vida em risco. Isso deve ser garantia suficiente, mas se me adiantar agora cinqüenta dos cem primeiros, deixarei que tome posse, tão logo chegue — comprometendo-se o senhor a devolvê-la logo que o seu negócio seja fechado — ou para ser usada contra a Struan. Garanto usá-la contra a Struan. No final das contas, Dunross terá que fazer qualquer coisa que o senhor queira. Por favor, responda para a caixa postal de costume, e destrua este, conforme combinamos."
— Posse do quê? — Phillip Chen murmurara, desesperado de ansiedade. Suas mãos tremiam enquanto lia a segunda carta, datada de três semanas atrás. "Caro Sr. Bartlett. Esta confirmará a sua data de chegada. Tudo está preparado. Espero com prazer poder revê-lo e conhecer o Sr. K. C. Tcholok. Obrigado pelos cinqüenta mil, que chegaram em segurança... todas as quantias futuras deverão ir para uma conta numerada em Zurique. Dar-lhe-ei os detalhes bancários quando chegar. Obrigado também por ter concordado com o nosso trato não escrito de que, se eu puder ajudá-lo da maneira que aleguei, receberei três por cento do movimento da nova Companhia Mercantil Par-Con (Ásia).
"Anexo mais algumas coisas de interesse: repare nas datas de vencimento das promissórias da Struan (rubricadas por meu pai) a favor das Indústrias de Navegação Toda pelos seus novos supercargueiros: dias 1.°, 11 e 15 de setembro. A Struan não tem dinheiro bastante para quitá-las.
"A seguir: em resposta à pergunta do Sr. Tcholok sobre a posição do meu pai em qualquer briga de compra de controle ou procurações. Ele pode ser neutralizado. As fotocópias anexas são uma amostra de muitas que possuo. Mostram um relacionamento muito chegado com Lee Pó Branco e seu primo, Wu Sang Fang, também conhecido como Wu Quatro Dedos, desde o começo da década de 50, e posse secreta junto com eles (até mesmo hoje) de uma companhia imobiliária, duas companhias de navegação e interesses comerciais em Bangkok. Embora na aparência, atualmente, ambos se façam passar por comerciantes respeitáveis, donos de empreendimentos imobiliários e armadores milionários, é do conhecimento geral que há anos são piratas e contrabandistas bem-sucedidos... e corre um forte boato nos círculos chineses de que são eles os Grandes Dragões do comércio de ópio. Se a ligação de meu pai com eles fosse tornada pública, ele perderia seu prestígio para sempre, os elos íntimos que tem com a Struan, e com todas as outras hongs que existem hoje, seriam desfeitos e, o que é mais importante, sua chance de tornar-se cavaleiro (a coisa que mais deseja no mundo) seria destruída para sempre. A simples ameaça de fazer isso seria o suficiente para neutralizá-lo... até mesmo torná-lo um aliado. Claro que me dou conta de que esses papéis e outros que possuo necessitam de maior documentação para valerem num tribunal, mas já a tenho em abundância, num local seguro..."
Phillip Chen se lembrava de como, tomado de pânico, procurara desesperadamente a tal documentação mencionada, sua mente berrando que era impossível o filho dispor de tantas informações secretas, impossível ele ter os balanços gerais da Struan antes de ela se ter tornado empresa de capital aberto, impossível saber sobre Wu Quatro Dedos e todas aquelas coisas secretas.
"Oh, deuses, isto é quase tudo o que eu sei... nem mesmo Dianne sabe da metade! O que mais John sabe... o que mais contou ao americano?"
Alucinado de ansiedade, revistara cada envelope, mas nada mais havia.
— Ele deve ter outra caixa em algum lugar... ou um cofre — resmungara em voz alta, mal conseguindo pensar.
Furioso, enfiara tudo aquilo em sua pasta, esperando que um exame mais minucioso respondesse às suas perguntas... depois fechara com força a caixa e a trancara. Num repente, reabrira-a. Tirara a bandeja fina de dentro do cofre individual e virara-a ao contrário. Presas com fita adesiva, na parte externa, havia duas chaves. Uma delas era a chave de uma caixa de depósito bancário com o número cuidadosamente obliterado. A outra o deixara paralisado. Reconhecera-a, imediatamente. Era a chave do seu próprio cofre, da casa no morro. Teria apostado a vida em que a única chave existente era a que usava sempre à volta do pescoço, que nunca saíra de junto dele... desde que seu pai lha dera, no leito de morte, há dezesseis anos.
— Oh ko — dissera em voz alta, mais uma vez consumido de fúria.
Dunross perguntou:
— Está bem? Quer tomar um conhaque?
— Não, não, obrigado — respondeu Phillip Chen, com voz trêmula, de volta ao presente. Com esforço, controlou-se e fitou o tai-pan, sabendo que lhe devia contar tudo, mas sem ter coragem. Pelo menos até saber a extensão dos segredos roubados. Mesmo então, não teria coragem. Além das muitas transações que as autoridades poderiam facilmente interpretar mal, e outras que poderiam ser altamente embaraçosas e dar início a todo tipo de ações civis, se não criminais... "Maldita lei inglesa!", pensou furioso. Era uma cretinice haver uma só lei para todos, cretinice não haver uma lei para os ricos e outra para os pobres. Por que então trabalhar, sacrificar-se, arriscar e tramar para ser rico... além disso tudo, ainda teria que admitir para Dunross que vinha documentando os segredos da Struan há anos, que seu pai já agira assim antes dele... folhas de balanço, investimento em ações, e outras coisas secretas e muito, muito particulares, pessoais e familiares, contrabandos e subornos... e sabia que de nada adiantaria dizer que agira assim para proteger a Casa, porque o tai-pan diria, e corretamente, que agira para proteger a Casa de Chen, e não a Casa Nobre, e o atacaria justificadamente, e voltaria toda a sua ira contra ele e sua família, e no holocausto de uma luta contra a Struan ele perderia na certa (o testamento de Dirk Struan se encarregara disso), e tudo o que levara quase um século e meio para ser construído desapareceria.
Graças a todos os deuses não estava tudo no cofre, pensou, fervorosamente. Graças a todos os deuses as outras coisas estavam bem enterradas.
Então, subitamente, algumas palavras da primeira carta do filho atingiram brutalmente sua consciência: "...Acrescente a estas fotocópias as outras coisas de que lhe falei..."
Ele empalideceu e pôs-se de pé, com esforço. — Se me dá licença, tai-pan... eu... vou me despedindo. Vou buscar Dianne e... eu... obrigado, boa noite. Saiu apressado em direção à casa. Dunross ficou olhando enquanto ele se afastava, chocado.
— Oh, Casey — dizia Penelope —, deixe-me apresentar-lhe Kathren Gavallan. Kathren é irmã de Ian.
— Oi! — cumprimentou Casey, sorrindo, simpatizando com ela à primeira vista. Estavam numa das antecâmaras do andar térreo, entre outras mulheres que conversavam, retocavam a maquilagem, ou faziam fila, esperando a vez para visitar o banheiro anexo. A sala era ampla, confortável e espelhada.
— Ambos têm os mesmos olhos... reconheceria a semelhança em qualquer parte — disse. — Ele é um homem e tanto, não é?
— Nós achamos que sim — replicou Kathren, com um sorriso vivo. Tinha trinta e oito anos, era atraente, possuía um sotaque escocês agradável, e o vestido de seda estampado que usava era longo e fresco. — Essa falta d'água é um abacaxi, não é?
— É. Deve ser muito difícil, tendo crianças.
— Não, chêrie, as crianças a adoram — manifestou-se Susanne de Ville. Estava com quarenta e tantos anos, era chique, com ligeiro sotaque francês. — Como se pode insistir em que tomem banho todas as noites?
— Os meus dois são iguaizinhos — sorriu Kathren. — Isso incomoda a nós, pais, mas não a eles. Mas é um abacaxi tentar fazer uma casa correr nos eixos.
Penelope disse:
— Deus, como detesto isso! Este verão foi um horror. Você está com sorte hoje, geralmente já estaríamos pingando!
— Retocava a maquilagem no espelho. — Mal posso esperar até o mês que vem. Kathren, já lhe contei que vamos para casa por duas semanas? Pelo menos, eu vou. Ian prometeu ir também, mas com ele nunca se pode ter certeza.
— Ele precisa de umas férias — disse Kathren, e Casey percebeu sombras nos seus olhos, e olheiras sob a maquilagem.
— Vão para Ayr?
— Vamos, e para Londres, por uma semana.
— Que sortuda! Quanto tempo vai ficar em Hong Kong, Casey?
— Não sei. Tudo depende da Par-Con.
— Sei. Andrew me contou que você teve uma reunião de dia inteiro, com eles.
— Não creio que lhes tenha agradado muito falar de negócios com uma mulher.
— Como você está sendo delicada — riu-se Susanne de Ville, levantando a saia para puxar a blusa para baixo. — Claro que meu Jacques é meio francês, portanto entende que as mulheres estejam no mundo dos negócios. Mas os ingleses...
Ergueu bem alto as sobrancelhas.
— O tai-pan não pareceu se importar — falou Casey —, mas, na verdade, ainda não discuti direito negócios com ele.
— Mas discutiu com Quillan Gornt — disse Kathren, e Casey, muito em guarda, mesmo na privacidade do banheiro das senhoras, percebeu a tensão latente na sua voz.
— Não — replicou —, não discuti... só o conheci hoje à noite... mas meu patrão, sim.
Pouco antes do jantar, encontrara um tempinho para contar a Bartlett a história do pai de Gornt e de Colin Dunross.
— Puxa vida! Não admira que Adryon tenha ficado tonta! — dissera Bartlett. — E logo no salão de bilhar! — Pensara por um momento, depois dera de ombros. — Mas só o que isso significa é mais pressão sobre Dunross.
— Pode ser. Mas a inimizade deles é a mais profunda que já vi, Linc. O tiro nos pode sair pela culatra.
— Não sei como... ainda. Gornt estava apenas abrindo um flanco, como compete a um bom general. Se não tivéssemos tido as informações antecipadas de John Chen, o que Gornt disse poderia ter sido vital para nós. Gornt não tem meios de saber que estamos à sua frente. Portanto, está acelerando o ritmo. Ainda nem puxamos as nossas grandes armas, e os dois já estão nos cortejando.
— Já decidiu com qual vai ficar?
— Não. Qual é o seu palpite?
— Não tenho nenhum. Ainda. Os dois são impressionantes. Linc, acha que John Chen foi seqüestrado porque vinha nos dando informações?
— Não sei. Por quê?
— Antes da chegada de Gornt, fui interceptada pelo superintendente Armstrong. Interrogou-me sobre o que John Chen disse ontem à noite, o que conversamos, o que foi dito, exatamente. Contei-lhe tudo de que me lembrava... exceto que nunca mencionei que deveria receber "aquilo". Já que ainda não sei o que "aquilo" é.
— Não é nada ilegal, Casey.
— Não gosto de ficar no escuro. Não agora. Está ficando... forte demais para mim, as armas, o seqüestro brutal e a polícia tão insistente,
— Não é nada ilegal. Deixemos a coisa nesse pé. Armstrong disse que havia uma ligação?
— Não mencionou nada. É um policial inglês, cavalheiro, forte e silencioso, e tão inteligente e bem-treinado quanto os que já vi no cinema. Estou certa de que ele sabia que eu estava ocultando alguma coisa. — Hesitara. — Linc, o que John Chen tem que é tão importante para nós?
Lembrou-se de como ele a fitara, os olhos profundos e azuis, zombeteiros e risonhos.
— Uma moeda — dissera, calmamente.
— O quê? — perguntara ela, atônita.
— É. Na verdade, meia moeda.
— Mas, Linc, o que uma moe...
— É só o que vou lhe contar por ora, Casey, mas, diga-me, será que Armstrong acha que há alguma ligação entre o seqüestro de Chen e as armas?
— Não sei. — Dera de ombros. — Acho que não, Linc. Nem posso arriscar um palpite. Aquele cara é vivo demais. — Nova hesitação por parte dela. — Linc, fechou negócio, qualquer negócio, com Gornt?
— Não. Nada definitivo. Gornt só quer destruir a Struan, e quer se unir a nós para fazer o serviço. Disse que discutiríamos o assunto na terça-feira. Durante o jantar.
— O que vai dizer ao tai-pan, depois do jantar?
— Depende das perguntas dele. Ele sabe que é boa estratégia sondar as defesas do inimigo.
Casey começava a se perguntar quem era o inimigo, sentindo-se estranha demais, mesmo ali, entre todas as outras mulheres. Sentira apenas hostilidade, exceto da parte dessas duas, Penelope e Kathren Gavallan... e de uma mulher que encontrara antes, na fila do banheiro.
— Alô — dissera a mulher, suavemente. — Ouvi dizer que você também é uma estranha, aqui.
— É, sou, sim — replicou Casey, assombrada com a beleza da outra.
— Sou Fleur Marlowe. Meu marido é Peter Marlowe. É escritor. Acho que você está lindérrima!
— Obrigada. Você também. Acabaram de chegar a Hong Kong?
— Não. Estamos aqui há três meses e dois dias, mas esta é a primeira festa realmente inglesa a que comparecemos — disse Fleur, seu sotaque britânico não tão carregado quanto o dos outros. — Passamos a maior parte do tempo com os chineses, ou sozinhos. Temos um apartamento no anexo do Victoria. Meu Deus — acrescentou, olhando para a porta do reservado, logo à frente —, gostaria que ela andasse depressa. Estou apertadíssima.
— Também estamos hospedados no Victoria.
— É, eu sei. Vocês dois são famosos. — E Fleur Marlowe riu.
— Mal-afamados! Não sabia que o hotel tinha apartamentos.
— Não são bem apartamentos. Só dois quartinhos de dormir e uma saleta. A cozinha parece um armário. Mas é o nosso lar. Temos um banheiro, água corrente, e as privadas dão descarga.
Fleur Marlowe tinha grandes olhos cinzentos que se inclinavam de modo agradável, e longos cabelos louros, e Casey julgou que teria mais ou menos a sua idade.
— Seu marido é jornalista?
— Escritor. De um único livro. O que faz mesmo é escrever e dirigir filmes em Hollywood. É isso o que paga o aluguel.
— Por que estão com os chineses?
— É que Peter está interessado neles. — Fleur Marlowe sorriu e deu um sussurro de conspiradora, olhando para o resto das mulheres à sua volta. — Elas são bastante assustadoras, não?... mais inglesas do que os ingleses. Cheias de tradição e coisa e tal.
Casey franziu o cenho.
— Mas você também é inglesa.
— Sim e não. Sou inglesa, mas de Vancouver, no Canadá. Moramos nos Estados Unidos, Peter, eu e as crianças, na velha Hollywood, Califórnia. Não sei direito o que sou, metade uma coisa, metade outra.
— Nós também moramos em Los Angeles, Linc e eu.
— Acho que ele é um pão. Você tem sorte.
— Que idade têm seus filhos?
— Quatro e oito anos... graças a Deus ainda não racionaram a nossa água.
— Que tal está achando Hong Kong?
— É fascinante, Casey. Peter está aqui fazendo pesquisas para um livro, portanto é maravilhoso para ele. Meu Deus, se a metade das lendas for verdade... os Struans, os Dunrosses e todos os outros, e o seu Quillan Gornt.
— Não é meu. Conheci-o esta noite.
— Criou um pequeno terremoto ao atravessar a sala ao lado dele. — Fleur riu. — Se vai ficar por aqui, fale com Peter. Ele lhe contará os mais diversos tipos de escândalos. — Fez um sinal de cabeça na direção de Dianne Chen, que empoava o nariz diante de um dos espelhos. — Aquela é a madrasta de John Chen, a mulher de Phillip Chen. É a segunda mulher... a primeira morreu. Ela é eurasiana, e quase todos a odeiam, mas é uma das pessoas mais bondosas que já conheci.
— Por que a odeiam?
— A maioria tem inveja. Afinal de contas, é a mulher do representante nativo da Casa Nobre; conhecemo-nos faz algum tempo, e ela foi formidável para mim. É... é difícil para uma mulher viver em Hong Kong, especialmente uma mulher de fora. Não sei bem por quê, mas ela me tratou como pessoa da família. Tem sido formidável.
— Ela é eurasiana? Parece chinesa.
— Às vezes, é difícil dizer-se. O nome de solteira dela é TChung, segundo Peter, e da família da mãe é Sung. Os T'Chungs descendem de uma das amantes de Dirk Struan, e a linhagem dos Sungs é igualmente ilegítima, do famoso pintor Aristotle Quance. Já ouviu falar nele?
— Ah, já.
— Muitas das... melhores famílias de Hong Kong são... bem, o velho Aristotle gerou quatro ramos... — Neste exato momento a porta do reservado se abriu, dando passagem a uma mulher, e Fleur exclamou: — Graças a Deus!
Enquanto esperava a sua vez, Casey prestava alguma atenção à conversa das outras. O papo era sempre o mesmo: roupas, o calor, a falta d'água, queixas sobre amahs e outros criados, como tudo estava caro, ou as crianças e as escolas. Aí, chegou a vez dela e, quando saiu, Fleur Marlowe desaparecera, e Penelope se acercou dela.
— Oh, acabo de saber que você não queria se retirar. Não ligue para Joanna — disse Penelope, serenamente. — É uma chata, e sempre foi.
— Foi minha culpa... ainda não me habituei aos seus costumes.
— É tudo uma bobagem, mas, no final das contas, é muito mais fácil fazer a vontade dos homens. Eu, pessoalmente, fico muito satisfeita em me retirar. Acho a maioria das conversas deles uma amolação.
— É, às vezes é. Mas é o princípio da coisa. Devíamos ser tratadas como iguais.
— Jamais seremos iguais, querida. Não aqui. Esta é a colônia da coroa de Hong Kong.
— É o que todos me dizem. Quanto tempo devemos ficar afastadas?
— Ah, cerca de meia hora. Não há um período exato. Há muito tempo que conhece Quillan Gornt?
— Hoje foi a primeira vez que o vi — disse Casey.
— Ele... não é bem-vindo nesta casa — falou Penelope.
— É, eu sei. Contaram-me sobre a festa de Natal.
— O que lhe contaram?
Ela relatou o que sabia.
Fez-se um silêncio cortante. Depois, Penelope falou:
— Não é bom para os estranhos se envolverem em brigas de família, é?
— Não — respondeu Casey. — Mas todas as famílias têm as suas briguinhas. Estamos aqui, Linc e eu, para começar um negócio... esperamos começar o negócio com uma das suas grandes companhias. Somos estranhos aqui, sabemos disso... mas é por este motivo que estamos procurando um sócio.
— Bem, minha querida, estou certa de que se decidirão. Sejam pacientes e cautelosos. Não concorda, Kathren? — perguntou à cunhada.
— Sim, Penelope, concordo. — Kathren fitou Casey com o mesmo olhar franco de Dunross. — Espero que façam a escolha correta, Casey. O pessoal aqui é muito vingativo.
— Por quê?
— Um dos motivos é que somos uma sociedade muito fechada, muito interligada, e todos se conhecem uns aos outros... e quase todos os seus segredos. O outro é porque os ódios por aqui florescem há gerações, e vêm sendo alimentados há gerações. Quando se odeia, odeia-se de todo o coração. Outro ainda é que esta é uma sociedade à moda dos piratas, corn pouquíssimos freios, portanto a gente pode se safar com todos os tipos de vingança. Ah, sim. Mais um: aqui os prêmios são altos... se você ganhar um monte de ouro, pode ficar com ele, legalmente, mesmo se o tiver conseguido ilegalmente. Hong Kong é um lugar de trânsito... ninguém vem para cá para ficar, nem mesmo os chineses, só para ganhar dinheiro, e ir embora. É o local mais extraordinário do mundo.
— Mas os Struans, os Dunrosses e os Gornts estão aqui há gerações — disse Casey.
— É, mas individualmente vieram para cá por um único motivo: dinheiro. Aqui, nosso deus é o dinheiro. E logo que se põe a mão nele, some, quer seja europeu, americano... e especialmente chinês.
— Está exagerando, Kathy querida — falou Penelope.
— É. Mas é a verdade. Outro motivo é que vivemos o tempo todo à beira da catástrofe: fogo, inundação, peste, avalanche, levantes. Metade da nossa população é comunista, metade nacionalista, e se odeiam de uma maneira que nenhum europeu jamais poderá compreender. E a China... a China pode nos engolir a qualquer momento. Portanto, a gente vive o dia de hoje, e para o diabo com tudo, agarre o que puder, porque amanhã, quem sabe? Não se interponha no caminho! As pessoas são mais brutais aqui porque tudo realmente é precário, e nada dura em Hong Kong.
— Exceto o Pico — disse Penelope. — E os chineses.
— Até mesmo os chineses querem enriquecer depressa para ir embora depressa... eles, mais do que a maioria. Espere só, Casey, e verá. Hong Kong a afetará com a sua magia... ou a sua maldade, dependendo do ponto de vista. Para os negócios, é o lugar mais excitante do mundo, e logo você sentirá que está no centro do mundo. É selvagem e excitante para os homens, meu Deus, é maravilhoso para um homem, mas para nós é horrível, e toda mulher, toda esposa, odeia Hong Kong apaixonadamente, embora finja o contrário.
— Kathren — começou Penelope —, está exagerando de novo.
— Não. Não estou. Estamos todas ameaçadas aqui, Penny, você sabe! Nós, mulheres, estamos numa batalha perdida...
— Kathren se deteve e forçou um sorriso cansado. — Desculpe, entusiasmei-me demais. Penn, acho que vou procurar Andrew, e se ele quiser ficar, eu vou indo, se você não se importa.
— Está se sentindo bem, Kathy?
— Estou, sim, só cansada. O meu caçula é uma parada, mas no ano que vem irá para o colégio interno.
— Que tal foi o seu checkup?
— Bom. — Kathy deu um sorriso cansado para Casey. — Quando estiver disposta, ligue para mim. O número está no catálogo. Não escolham Gornt. Seria fatal. Adeus, querida — acrescentou para Penelope, e se retirou.
— Ela é um amor — disse Penelope. — Mas fica baratinada à toa.
— Você se sente ameaçada?
— Estou muito satisfeita com as minhas filhas e meu marido.
— Ela perguntou se você se sentia ameaçada, Penelope.
— Susanne de Ville empoou habilmente o nariz e examinou o seu reflexo. — Sente-se?
— Não. Às vezes sinto-me oprimida. Mas... mas não estou mais ameaçada do que você.
— Ah, chérie, mas eu sou panúenne. Como posso estar ameaçada? já esteve em Paris, mademoiselle?
— Já — disse Casey. — É linda.
— É o mundo — declarou Susanne, com modéstia gaulesa. — Puxa, mas estou com cara de pelo menos trinta e seis anos.
— Bobagem, Susanne. — Penelope olhou para o relógio de pulso. — Acho que já podemos voltar. Com licença um minutinho...
Susanne fitou-a enquanto ela se afastava, depois voltou a se concentrar em Casey.
— Jacques e eu viemos para Hong Kong em 1946.
— Também fazem parte da família?
— O pai de Jacques casou-se com uma Dunross na Primeira Grande Guerra... uma tia do tai-pan. — Inclinou-se para junto do espelho e tirou um tiquinho do excesso de pó. — Na Struan é importante ser da família.
Casey notou os astutos olhos gauleses observando-a pelo espelho.
— Claro, concordo com você que é uma bobagem as mulheres se retirarem depois do jantar, pois, obviamente, quando vamos embora, o calor também vai, não?
Casey sorriu.
— Acho que sim. Por que Kathren falou "ameaçada"? Ameaçada pelo quê?
— Pela juventude, claro que pela juventude! Aqui existem dezenas de milhares de lindas jovens chinoises, chiques, sensatas, de cabelos negros e longos, derrières bonitos e atrevidos e pele dourada, que realmente entendem os homens e encaram o sexo pelo que representa: comida e, com freqüência, permuta. Foi o inglês puritano e gaúche que torceu a mente das suas damas, pobrezinhas! Graças a Deus nasci francesa! Pobre Kathy!
— Oh — disse Casey, compreendendo imediatamente. — Descobriu que Andrew tem um caso?
Susanne sorriu e não respondeu, apenas fitou o seu reflexo. Depois, disse:
— O meu Jacques... claro que tem casos, claro que todos os homens têm casos, e nós também, se somos sensatas. Mas nós, franceses, compreendemos que essas transgressões não devem interferir num bom casamento. Damos a elas a dose exata de importância, non? — Seus olhos castanho-escuros se alteraram um pouco. — Oui!
— Isso é duro, não é? Duro para uma mulher ter que conviver com isso.
— Tudo é duro para a mulher, chérie, porque os homens são uns crétins. — Susanne de Ville alisou uma prega, depois pôs um pouco de perfume atrás das orelhas e no meio dos seios. — Você falhará aqui, se tentar jogar usando regras masculinas, e não regras femininas. Tem uma chance rara aqui, mademoiselle, se é mulher o bastante. E se se lembrar de que os Gornts são todos venenosos. E cuidado com o seu Linc Bartlett, Ciranoush, já há mulheres aqui querendo possuí-lo, e humilhá-la.