33
17h50m
— Alô, Ian — disse Penelope. — Chegou cedo! Como foi o dia?
— Bom, bom — disse Dunross, distraidamente. Além de todos os outros desastres, pouco antes de sair do escritório recebera um relatório de Brian Kwok dizendo, entre outras coisas, que Alan Medford Grant fora provavelmente assassinado, e advertindo-o para tomar sérias precauções.
— Ah, foi um dia daqueles, é? — disse ela, prontamente. — Que tal uma bebida? É. Que tal um pouco de champanha?
— Boa idéia. — Então, notou o sorriso dela, retribuiu-o, e sentiu-se muito melhor. — Penn, você sabe ler pensamentos!
Jogou a pasta sobre um aparador e acompanhou-a até uma das salas de estar da Casa Grande. O champanha já estava no balde de gelo, aberto, com duas taças parcialmente cheias e outra esperando por ele, no gelo.
— Kathy está lá em cima. Está lendo uma história para Glenna dormir — disse Penelope, servindo-lhe a bebida. — Ela... ela acaba de me contar sobre... sobre a moléstia.
— Ah! — Aceitou a taça. — Obrigado. Como foi que Andrew reagiu? Ele não tocou no assunto hoje.
— Ela vai lhe contar hoje à noite. O champanha era para lhe dar alguma coragem. — Penelope ergueu os olhos para ele, angustiada. — Ela vai ficar boa, não vai, Ian?
— Acho que sim. Tive uma longa conversa com o dr. Tooley. Ele foi animador, deu-me os nomes dos três maiores especialistas da Inglaterra, e outros três dos Estados Unidos. Já telegrafei marcando hora com os três da Inglaterra, e o dr. Ferguson vai mandar pelo correio o histórico dela... estará lá quando vocês chegarem.
Ela sorveu o seu champanha. Uma leve brisa tornava o dia abafado mais ameno. As portas envidraçadas estavam abertas para o jardim. Eram quase seis horas.
— Acha que devemos ir imediatamente? Será que alguns dias farão diferença?
— Acho que não.
— Mas devemos ir?
— Se fosse você, Penn, teríamos tomado o primeiro avião.
— É. Se eu tivesse lhe contado.
— Teria me contado.
— É, suponho que sim. Fiz reservas para amanhã. Kathy também achou boa idéia. No vôo da BOAC.
Ele ficou surpreso.
— Claudia não me disse nada. Ela sorriu.
— Eu mesma as fiz. Sou bastante capaz. Fiz reservas para Glenna, Kathy e eu. Poderemos levar o histórico conosco. Achei melhor Kathy não levar nenhum dos filhos. Ficarão perfeitamente bem com as amahs.
— É, é muito melhor assim. O dr. Tooley foi inflexível sobre a questão do repouso. É o principal, disse ele, muito descanso. — Dunross sorriu para ela. — Obrigado, Penn.
Ela fitava as gotas de condensação no lado externo da garrafa e do balde de gelo.
— Que coisa horrível, não é?
— Pior, Penn. Não há cura. Ele acha... acha que a medicação deterá a doença. — Terminou de beber, e serviu novamente as duas taças. — Algum recado?
— Ah, desculpe! Sim, estão sobre o aparador. Houve um telefonema interurbano de Marselha, há pouco.
— Susanne?
— Não. Um tal Sr. Deland.
— É o nosso agente lá.
— Uma desgraça o que aconteceu com o jovem Borge.
— É.
Dunross correu os olhos pelos recados. Johnjohn, no banco, Holdbrook, Phillip Chen, e o inevitável "por favor, ligue para Claudia". Soltou um suspiro. Fazia apenas meia hora desde que deixara o escritório, e ia ligar para ela, de qualquer modo. "Os maus não têm descanso", pensou, e sorriu com os seus botões.
Gostara de ter passado a perna no Gornt, na Bolsa. O fato de não ter dinheiro no momento para pagar não o preocupava. "Tenho cinco dias de prazo", pensou. "Tudo está sob controle... com sorte. Ah, sim, com joss!"
Desde que seu corretor lhe telefonara em pânico, alguns minutos depois das dez, contando os boatos que varriam a Bolsa, e que as ações dele estavam oscilando, ele estivera guardando suas defesas contra o ataque repentino e inesperado. Junto com Phillip Chen, Holdbrook, Gavallan e De Ville, reunira todos os principais acionistas que puderam encontrar e contara-lhes que os boatos de que a Struan não poderia cumprir suas obrigações eram bobagem, e sugeriu que se recusassem a emprestar a Gornt grandes blocos de ações da Struan, mas que lhe cedessem algumas ações, aqui e ali. Contou a uns poucos escolhidos, muito confidencialmente, que o contrato com a Par-Con estava assinado, selado, e prestes a ser carimbado, e que aquela era uma oportunidade maravilhosa de esmagar para sempre a Rothwell-Gornt.
— Se o Gornt vender a descoberto, ele que o faça. Fingiremos ser vulneráveis, mas sustentaremos as ações. Então, na sexta, faremos o comunicado, nossas ações subirão vertiginosamente, e ele perderá a camisa, a gravata e as calças — dissera-lhes. — Teremos de volta a nossa companhia aérea, além da dele, e, com os navios dele e os nossos, juntos, dominaremos todo o comércio aéreo e terrestre que entra e sai da Ásia!
"Se pudéssemos realmente esmagar o Gornt", pensou fervorosamente, "ficaríamos a salvo por gerações. E poderemos, com joss, a Par-Con e mais joss! Mas vai ser um sufoco!"
Ele transpirara confiança o dia todo, sem se sentir nada confiante. Muitos dos seus grandes acionistas lhe tinham telefonado, nervosos, mas ele os acalmara. Tanto Tung Pão-Duro quanto Wu Quatro Dedos possuíam grandes blocos de ações, através de representantes tortuosos. Ele ligara para ambos, à tarde, para obter sua concordância em não emprestar ou vender seus principais títulos, durante a próxima semana. Ambos haviam concordado, mas a coisa não fora fácil com nenhum dos dois.
"Bem", pensou Dunross, "de um modo geral eu me livrei do ataque inicial. Amanhã é que se saberá a história real... ou na sexta-feira: Bartlett é um inimigo, um amigo ou um judas?"
Sentiu a raiva crescer, mas controlou-se. "Acalme-se", disse para si mesmo, "pense calmamente. É o que farei, mas é curioso que tudo o que Bartlett disse na noite da festa (todas aquelas coisas secretíssimas que apresentou tão pronta e subitamente para abalar minhas defesas) tenha hoje milagrosamente varrido o mercado como um tufão. Quem é o espião? Quem lhe deu as informações? Será o mesmo espião da Sevrin? Bem, deixe para lá, no momento tudo está sob controle. Acho eu."
Dunross foi até o telefone e pediu à telefonista uma ligação pessoal para o Sr. Deland, e que ela o chamasse quando ele estivesse na linha.
— Será que Susanne já chegou lá? — indagou Penelope.
— Acho que sim, se o avião estiver no horário. São cerca de onze horas, hora de Marselha, portanto não deve ser uma emergência. Uma tristeza o que houve com o Borge! Eu gostava dele.
— O que Avril vai fazer?
— Vai ficar tudo bem com ela. Avril vai voltar para casa para criar o filho, e logo encontrará um Príncipe Encantado, um príncipe novo, e o filho dela entrará para a Struan, e nesse meio tempo ela estará protegida e amparada.
— Acredita mesmo nisso, Ian... sobre o Príncipe Encantado?
— Sim — disse ele com firmeza. — Acredito que tudo vai dar certo. Vai dar tudo certo, Penn, para ela, para Kathy, para... para todo mundo.
— Você não pode carregar todo mundo, Ian.
— Eu sei. Mas ninguém, ninguém na família vai sentir falta de coisa alguma enquanto eu estiver vivo, e isso será para sempre.
A mulher olhou para ele, e lembrou-se da primeira vez que o vira, um jovem semelhante a um deus sentado no seu caça destroçado que deveria ter sido abatido, mas que, milagrosamente, não o fora. Ian, simplesmente sentado ali, depois saindo do avião, abafando o terror, ela vendo nos olhos dele pela primeira vez o que era a morte, mas ele a dominando, e voltando, e simplesmente aceitando a xícara de chá, dizendo: "Oh, mas que ótimo, obrigado. Você é nova aqui, não é?"
Seu lindo sotaque aristocrático era tão distante do ambiente dela!
Fazia tanto tempo, fazia mil anos, uma outra vida, pensou. Que dias maravilhosos, pavorosos, terríveis, belos, angustiantes. "Será que ele vai morrer hoje, ou voltar hoje? Será que vou morrer hoje, no bombardeio matutino ou no noturno? Onde estão papai e mamãe, e será que o telefone não está funcionando, como de costume, ou será que a casinha miserável em Streat-ham sumiu junto com outros milhares iguais a ela?"
E, certo dia, sumira, e então ela não tinha mais passado. Apenas Ian, seus braços, sua força e confiança, e ela apavorada de que ele se fosse, como os demais. Aquela fora a pior parte, disse consigo mesma. A espera, a expectativa, sabendo como os aviadores eram vulneráveis, e como todos o somos. "Meu Deus, como tivemos que crescer depressa!"
— Espero que seja para sempre, querido — falou, na sua voz fria, inexpressiva, querendo ocultar a imensidão do seu amor. — É, quero que você seja imortal!
Ele abriu um sorriso para ela, cheio de amor.
— Sou imortal, Penn, não se preocupe. Depois de morto, ainda estarei cuidando de você, Glenna, Duncan, Adryon e todo o resto.
Ela o fitou.
— Como faz Dirk Struan?
— Não — disse, agora com seriedade. — Ele é uma presença que jamais igualarei. Ele é perpétuo... eu sou temporário. — Os olhos dele a observavam. — Está um tanto séria, hoje, não está?
— Está um tanto sério, hoje, não está? Riram.
— Estava só pensando em como a vida é transitória, como é violenta, inesperada, cruel — disse ela. — Primeiro John Chen, e agora Borge, Kathy... — Um arrepio percorreu seu corpo, sempre o medo de perdê-lo. — Quem será o próximo?
— Qualquer um de nós. Nesse meio tempo, seja chinesa. Lembre-se de que, sob os céus, todos os corvos são pretos. A vida é boa. Os deuses cometem erros e vão dormir. Assim sendo, a gente faz o melhor que pode, e nunca confia num quai loh!
Ela riu, em paz novamente.
— Há momentos, Ian Struan Dunross, em que gosto muito de você. Acho...
O telefone tocou. Ela parou e pensou: "Maldito seja esse desgraçado desse telefone. Se fosse onipotente, proibiria todos os telefonemas depois das seis da tarde, mas aí o pobre do Ian ficaria maluco e a maldita Casa Nobre desmoronaria, e ela é a vida do pobre Ian. Eu estou em segundo lugar, e as crianças também, e é assim que tem que ser. Não é?"
— Oh, alô, Lando — dizia Dunross —, o que há de novo?
— Espero não estar incomodando, tai-pan.
— De modo algum — replicou, toda a sua energia concentrada. — Acabo de chegar. Em que posso ajudá-lo?
— Lamento, mas vou retirar os quinze milhões de apoio que lhe prometi para amanhã. Temporariamente. O mercado está me deixando nervoso.
— Não há com o que se preocupar — disse Dunross, o estômago se contorcendo. — É só o Gornt fazendo das dele. Só isso.
— Estou realmente muito preocupado. Não é só o Gornt. É o Ho-Pak e o modo pelo qual todo o mercado está reagindo — disse Mata. — Com a corrida aos bancos atingindo o Ching
Prosperity e até mesmo o Vic... todos os sinais são muito ruins. Portanto, quero esperar e ver.
— O dia é amanhã, Lando. Amanhã. Estava contando com você.
— Triplicou a nossa próxima remessa de ouro, como pedi?
— Sim, fiz isso pessoalmente. Tenho as confirmações por telex de Zurique no código de costume.
— Excelente, excelente!
— Vou precisar de sua carta de crédito amanhã.
— Naturalmente. Se mandar um mensageiro agora até minha casa, dar-lhe-ei o meu cheque com a quantia integral.
— Cheque pessoal? — Dunross conteve o seu espanto. — De que banco, Lando?
— Do Victoria.
— Pombas, mas é um bocado de dinheiro para retirar agora.
— Não o estou retirando, estou apenas pagando por um pouco de ouro. Prefiro ter um pouco dos meus fundos em ouro fora de Hong Kong durante a próxima semana, e este é o momento ideal para fazê-lo. Mande que avisem por telex amanhã logo cedo. Logo cedo. É. Não estou sacando fundos, Ian, apenas pagando pelo ouro. Se eu fosse você, também tentaria obter liquidez.
O estômago dele deu outra reviravolta.
— O que foi que você andou ouvindo? — perguntou, com voz controlada.
— Você me conhece. Sou mais cauteloso do que você, tai-pan. O custo do meu dinheiro é muito alto.
— Não mais do que o meu.
— É. Esperemos o dia de amanhã, depois veremos. Mas não conte com os nossos quinze milhões. Lamento.
— Você soube de alguma coisa, conheço-o muito bem. O que é? Chi pao pu chu huo. Literalmente, "O papel não pode embrulhar o fogo", isto é, não se pode manter um segredo para sempre.
Fez-se uma longa pausa, depois Mata falou em voz mais baixa:
— Confidencialmente, Ian, o velho Pão-Duro está vendendo com força total. Está se preparando para se desfazer de todos os seus títulos. O diabo velho pode estar morrendo, mas seu faro para a perda de uma moeda é tão apurado como sempre foi, e jamais soube que ele se tivesse enganado.
— Todos os seus títulos? — perguntou Dunross, vivamente. — Quando foi que falou com ele?
— Estivemos em contato o dia todo. Por quê?
— Falei com ele depois do almoço, e ele me prometeu que não venderia ou emprestaria nenhuma ação da Struan. Mudou de idéia?
— Não. Estou certo de que não. Não pode. Não tem nenhuma ação da Struan.
— Tem quatrocentas mil ações!
— Tinha, tai-pan, embora na verdade o número estivesse mais próximo de seiscentas mil. Sir Luís tinha muito poucas ações, pessoalmente, é um dos muitos representantes de Pão-Duro. Desfez-se de todas as seiscentas mil ações. Hoje.
Dunross abafou uma exclamação obscena.
— É mesmo?
— Ouça, meu jovem amigo, isto é estritamente confidencial, mas você deve estar preparado: Pão-Duro ordenou a Sir Luís que vendesse ou emprestasse todos os seus títulos da Casa Nobre no momento em que os boatos começaram, hoje de manhã. Cem mil foram distribuídos pelos corretores e vendidos prontamente, o restante... o meio milhão de ações que você comprou de Gornt eram do Pão-Duro. No momento em que ficou evidente que havia um grande ataque à casa, e que Gornt estava vendendo a descoberto, Pão-Duro ordenou a Sir Luís que emprestasse tudo, exceto mil ações simbólicas, que conservou. Para não desmoralizar você quando a Bolsa fechou, Pão-Duro estava muito satisfeito. Teve hoje quase dois milhões de lucro.
Dunross estava imóvel. Notou que sua voz estava natural, serena e controlada, e isso o deixou satisfeito, mas estava em choque. Se Pão-Duro vendera, os Chins venderiam, e mais uma dúzia de amigos lhe seguiriam o exemplo, e isso seria o caos.
— O velho sacana! — exclamou, sem raiva dele. A culpa era sua, pois não falara com Pão-Duro a tempo. — Lando, e quanto às suas trezentas mil ações?
Ouviu o português hesitar, e seu estômago se revolveu outra vez.
— Ainda as tenho. Comprei-as a 16 logo que vocês se tornaram empresa de capital aberto. Portanto, ainda não estou preocupado. Talvez Alastair Struan tivesse razão quando desaconselhou a medida... a Casa Nobre só é vulnerável por esse motivo.
— Nosso índice de crescimento é cinco vezes o de Gornt, e sem termos nos tornado empresa de capital aberto jamais teríamos podido agüentar os desastres que herdei. Temos o apoio do Victoria. Ainda temos nossas ações do banco e um voto majoritário na diretoria. Portanto, eles têm que nos apoiar.
Somos realmente muito fortes, e uma vez que esta situação temporária tenha sido resolvida, seremos o maior conglomerado da Ásia.
— Talvez. Mas talvez você tivesse agido mais sensatamente aceitando a nossa proposta, ao invés de ficar permanentemente aberto aos riscos de compras de controle e desastres de mercado.
— Não podia naquela época. Não posso agora. Nada mudou.
Dunross deu um sorriso amargo. Lando Mata, Tung Pão-Duro e Chin Jogador, coletivamente, lhe haviam oferecido vinte por cento das rendas do seu sindicato de ouro e jogo em troca de cinqüenta por cento da Struan, se ele a mantivesse como companhia totalmente particular.
— Vamos, tai-pan, seja sensato! Pão-Duro e eu lhe daremos cem milhões em espécie hoje, em troca de cinqüenta por cento da empresa. Dólares americanos. Sua posição como tai-pan será intocável, dirigirá o novo sindicato e administrará os nossos monopólios de ouro e jogo, secreta ou abertamente... com dez por cento de todos os lucros a título de honorários pessoais.
— Quem indica o próximo tai-pan?
— Você... dependendo de consulta.
— Pronto. Está vendo? É impossível. Um controle de cinqüenta por cento dá a vocês poder sobre a Struan, e isso não me é permitido dar. Isso negaria o legado de Dirk, invalidaria o meu juramento, e cederia o controle absoluto. Lamento, não é possível.
— Por causa de um juramento a um deus desconhecido e incognoscível em que você não acredita... em nome de um pirata assassino que está morto há mais de cem anos?
— Seja por que motivo for, a resposta é não, obrigado.
— Você bem que pode perder toda a companhia.
— Não. Os Struans e os Dunrosses juntos temos sessenta por cento do controle de votação, e eu sozinho voto todas as ações. O que tenho a perder são todas as coisas materiais que possuímos, e deixar de ser a Casa Nobre, e juro pelo Senhor Deus que isso também não vai acontecer.
Fez-se um longo silêncio. Depois Mata disse, a voz amistosa como sempre:
— Nossa oferta é válida por duas semanas. Se a sorte estiver contra você, e você falhar, a oferta para dirigir o novo sindicato permanece de pé. Venderei ou emprestarei minhas ações a 21.
— Abaixo de 20... não a 21.
— Vai baixar tanto assim?
— Não. É só um hábito que tenho. 20 é melhor que 21.
— É. Bem. Então, vejamos o que o amanhã trará. Desejo-lhe boa sorte. Boa noite, tai-pan.
Dunross desligou o telefone e tomou o resto do seu champanha. Estava no mato sem cachorro. "Aquele velho sacana do Pão-Duro", pensou de novo, admirando a esperteza dele. "Concordar com tanta relutância em não vender nem negociar nenhuma ação da Struan, sabendo que só lhe restavam mil, sabendo que a renda das quase seiscentas mil já estava segura... aquele velho safado é um grande negociador. É muita esperteza da parte do Lando e do Pão-Duro fazerem a nova oferta agora. Cem milhões! Santo Deus, isso faria o Gornt parar de peidar na igreja! Eu podia usar essa grana para esmagá-lo, e logo a seguir assumir o controle das Propriedades Asiáticas e aposentar o Dunstan prematuramente. A seguir, passaria a Casa para o Jacques ou o Andrew, em grande forma, e...
"E depois, o quê? O que iria fazer, então? Mudar-me para as charnecas e caçar tetrazes? Dar festancas em Londres? Ou ir para o Parlamento e dormir na bancada dos deputados novatos, enquanto os socialistas entregam o país aos comunistas? Santo Deus, iria morrer de tédio! Iria..."
— O que foi? — exclamou, espantado. — Ah, desculpe, Penn, o que foi que disse?
— Disse que parece que você teve más notícias.
— É, foi sim. — Então, Dunross abriu um sorriso e toda a sua ansiedade se desfez. — É joss! Sou o tai-pan — disse, satisfeito —, é de se esperar. — Pegou a garrafa. Estava vazia. — Acho que merecemos outra... Deixe, meu bem, eu pego. — Foi até a geladeira, embutida num imenso aparador chinês antigo, laqueado de escarlate.
— Como é que você agüenta, Ian? — perguntou ela. — Quero dizer, sempre parece acontecer algo de ruim, desde que você assumiu o cargo... e há sempre algum desastre, a cada telefonema. Você trabalha o tempo todo, nunca tira férias... desde que voltamos para Hong Kong. Primeiro seu pai, depois Alastair, e depois... será que nunca vai parar de chover a cântaros?
— Claro que não... o serviço é esse.
— E vale a pena?
Ele se concentrou na rolha, sabendo que a conversa não tinha razão de ser.
— Claro.
"Vale para você, Ian", pensou ela. "Mas não para mim." Após um momento, disse:
— Então quer dizer que posso ir?
— Sim, claro. Ficarei de olho em Adryon, e não se preocupe com Duncan. Divirta-se bastante e volte logo.
— Vai subir a montanha, no domingo?
— Vou. Depois vou para Taipé, e volto na terça-feira. Vou levar Bartlett comigo.
Ela ficou pensando em Taipé, e imaginando se haveria uma garota lá, uma garota especial, uma chinesa, com a metade da sua idade, com uma pele linda e macia, e com calor, não muito mais quente do que ela mesma, nem mais macia, nem mais esguia, mas com a metade da sua idade, com um sorriso sempre a postos, sem os terríveis anos de sobrevivência a curvá-la... os anos nojentos do crescimento, os anos bons e terríveis da guerra, os anos em que teve filhos, criou filhos, e a realidade exaustiva do casamento, mesmo com um bom homem.
"Fico pensando, pensando, pensando. Se eu fosse homem... há tantas beldades aqui, tão ansiosas por agradar, tão facilmente disponíveis! Se a gente acreditar em um décimo do que se conta..."
Ela o observou enquanto ele servia o vinho fino, as bolhas e a espuma, o rosto dele forte, vigoroso e muito agradável, e perguntou-se: "Será que alguma mulher possui qualquer homem por mais do que uns poucos anos?"
— O quê? — perguntou ele.
— Nada — disse, amando-o. Levantaram as taças e brindaram. — Cuidado na subida da montanha.
— Claro.
— Como você dá conta de ser tai-pan, Ian?
— Como você dá conta de cuidar da casa, criar as crianças, levantando-se às horas mais estranhas, ano após ano, mantendo a paz, e todas as outras coisas que teve que fazer? Eu não poderia. Jamais. Teria batido as botas há muito tempo. É parte treinamento, e parte o que a gente nasceu para fazer.
— O lugar de uma mulher é dentro de casa?
— Não sei quanto às outras, Penn, mas contanto que você esteja na minha casa, tudo vai bem no meu mundo.
Estourou a rolha com capricho.
— Obrigada, querido — disse ela, sorrindo. Depois, franziu o cenho. — Mas temo não ter muita opção, nem nunca ter tido. Claro que agora é diferente, e a próxima geração tem sorte, vai mudar as coisas, provocar uma virada e dar aos homens o troco que merecem, de uma vez por todas.
— É? — comentou ele, mais concentrado em Lando Mata, no dia seguinte, e em como obter os cem milhões sem ceder o controle.
— É, sim. As moças da nova geração não vão agüentar a chatura do "lugar de mulher é no tanque". Deus, como odeio o serviço doméstico, como toda mulher odeia o serviço doméstico! Nossas filhas vão mudar tudo isso! Pelo menos Adryon. Meu Deus, detestaria ser marido dela!
— Toda geração pensa que vai mudar o mundo — disse Dunross, enchendo as taças. — Excelente champanha. Lembra como nós pensávamos? Lembra como nos queixávamos, ainda nos queixamos, das atitudes dos nossos pais?
— É verdade. Mas nossas filhas têm a pílula, e isso muda completamente a coisa, e...
— Hem? — Dunross fitou-a, chocado. — Quer dizer que Adryon toma pílula? Santo Deus, há quanto tempo... quer dizer que ela...
— Acalme-se, Ian, e ouça. Aquela pilulazinha trancou para sempre as portas do medo para a mulher... para os homens também, de certo modo. Acho que pouquíssimas pessoas se dão conta da enorme revolução social que ela vai criar.
— Agora, todas as mulheres podem fazer amor sem medo de ficarem grávidas, podem usar seus corpos como os homens usam os deles, para a gratificação, para o prazer, e sem vergonha. — Olhou vivamente para ele. — Quanto a Adryon, toma pílulas desde os dezessete anos.
— O quê?
— Claro. Preferiria que ela tivesse um filho?
— Santo Deus, Penn, claro que não — gaguejou Dunross.
— Mas, Santo Deus, quem? Quer... quer dizer que ela está tendo um caso, teve casos ou...
— Mandei-a ao dr. Tooley. Achei melhor que fosse consultá-lo.
— Você o quê?
— É. Quando estava com dezessete anos, veio me perguntar o que fazer. Disse que a maioria das suas amigas tomava pílula. Como existem vários tipos, quis que ela tivesse orientação de um perito. O dr. Too... Por que está assim tão vermelho, Ian? Adryon está com dezenove anos, fará vinte no mês que vem. É tudo muito comum.
— Não é, por Deus que não é!
— Och, meu rapaz, mas é — falou ela, imitando o sotaque escocês da Vovó Dunross, a quem ele adorara —, e o que estou querendo enfatizar é que as moças de hoje sabem o que estão fazendo. E não ouse contar a Adryon que lhe contei, senão esquento suas calças!
Ele a fitou.
— Saúde! — Com ar satisfeito, ela ergueu a taça. — Viu o Guardian extra desta tarde?
— Não mude de assunto, Penn. Não acha que devo falar com ela?
— De jeito nenhum. Não. É... um assunto muito particular. É o corpo dela, e a vida dela. E não importa o que você diga, Ian, ela tem o direito de fazer da sua vida o que lhe aprouver, e nada do que você diga vai fazer nenhuma diferença. Será tudo muito embaraçoso para vocês dois. É uma questão de prestígio — acrescentou, satisfeita com a sua esperteza. — Claro que Adryon vai ouvir com carinho os seus pontos de vista, mas você realmente precisa ser adulto e moderno, tanto para o seu bem quanto para o dela.
Subitamente, uma onda incontrolável de calor subiu ao rosto dele.
— O que foi? — perguntou ela.
— Estava pensando em... estava só pensando.
— Em quem foi, é ou poderá ser o amante dela?
— É.
Penelope Dunross soltou um suspiro.
— Pelo bem da sua sanidade, Ian, não pense! Ela é muito sensata, tem mais de dezenove anos... bem, é bastante sensata. Por falar nisso, não a vi hoje o dia todo. A safadinha fugiu com o meu lenço novo antes que eu pudesse pegá-la. Lembra da blusa que lhe emprestei? Encontrei-a toda amassada, largada no chão do banheiro! Ficarei muito satisfeita quando ela ficar independente, morando no seu próprio apartamento.
— Ela é menina demais, pelo amor de Deus!
— Não estou de acordo, querido. Como eu dizia, não há nada que se possa fazer contra o progresso, e a pílula é um salto à frente maravilhoso, fantástico, inacreditável. Você precisa ser mais sensato. Por favor.
— É que... pombas, foi uma coisa muito repentina, só isso.
Ela deu uma risada gostosa.
— Se estivéssemos falando de Glenna, eu poderia compre... Ora, Ian, pelo amor de Deus, estou só brincando! Nunca me ocorreu que você não tivesse imaginado que Adryon era uma senhorita muito saudável, ajustada, embora com um gênio terrível, irritante, e muito frustrada, sendo que a maioria dessas frustrações deriva de tentar nos agradar, a nós, com as nossas idéias antiquadas.
— Tem razão. — Tentou parecer convincente, mas não conseguiu, e disse com azedume: — Tem razão, embora... tem razão.
— Meu rapaz, não acha que está na hora de visitar a nossa Árvore dos Gritos? — falou, com sotaque escocês, e um sorriso.
Era um costume antigo do clã, no país de origem deles, que próximo da moradia da mulher mais velha da família do chefe ficaria a Árvore dos Gritos. Quando Ian era moço, Vovó Dunross era a mais velha, e o seu chalé se situava numa clareira nas colinas atrás de Kilmarnock e Ayrshire, onde ficavam as terras dos Struans. A árvore era um grande carvalho. Era para essa árvore que a pessoa se dirigia quando estava "com o diabo no corpo", e então, sozinha, a pessoa gritava e xingava o quanto queria.
—... e assim, minha filha — a linda velhinha lhe dissera na primeira noite —...e assim, minha filha, sempre há paz no lar, e ninguém precisa xingar o marido, a mulher, o amante, o filho. É apenas uma árvore, e a árvore pode suportar todos os xingamentos que o próprio Diabo inventou.
Penelope estava se lembrando de como a velha Vovó Dunross a aceitara no clã e no seu coração, desde o primeiro momento. Fora pouco depois de eles terem se casado. Era a sua segunda visita, Ian de licença por motivos de saúde, ainda de muletas, as pernas muito queimadas, mas sarando, o resto do corpo intacto, depois da aterrissagem forçada, flamejante, e ele furioso por não mais poder voar, ela secretamente feliz, agradecendo a Deus pela trégua.
— Mas, minha menina — acrescentara Vovó Dunross com uma risadinha, naquela noite, com os ventos do inverno uivando nas charnecas, granizo do lado de fora, e eles quentinhos e aconchegados diante do fogo da lareira, a salvo dos bombardeios, bem alimentados, e sem outra preocupação que não fosse Ian ficar bom depressa —, certa vez, quando este Dunross tinha seis anos, e, puxa vida, que gênio tinha já nessa idade, e o pai dele, Colin, tinha viajado para um desses países pagãos estrangeiros, como sempre, este Dunross vinha passar as férias do colégio interno aqui em Ayr. É, e às vezes vinha me visitar, e eu lhe contava histórias do clã e do seu avô, e do seu bisavô. Mas, desta feita, nada conseguia afastar o demônio que tomara conta dele. Era uma noite igual a esta, e então eu o mandei lá para fora, o pirralhinho, é, eu o mandei para a Árvore dos Gritos... — A velhinha dera muitas risadinhas, sorvera o seu uísque e continuara: — É, e lá se foi o diabinho, todo empertigado, o vento levantando o seu saiote, e xingou a árvore. É, até os animais da floresta fugiram ante a sua ira, e depois ele voltou.
"— Deu-lhe uma boa bronca? — perguntei eu.
"— Dei — disse ele na sua vozinha. — É, vovó, dei-lhe uma boa bronca, a melhor de todas.
"— Ótimo — falei. — E agora está em paz!
"— Bem, não exatamente, vovó, mas estou cansado.
"E foi então, menina, naquele momento, que se ouviu um estrondo pavoroso, a casa inteira tremeu e pensei que era o fim do mundo, mas o pirralhinho correu para ver o que tinha acontecido e um raio fizera em pedaços a Árvore dos Gritos.
"— Puxa, vovó — disse na sua vozinha aguda, quando voltou, de olhos arregalados —, essa foi mesmo a melhor que já fiz. Posso fazer de novo?
"Ian caíra na risada.
"— Isso é história sua, não lembro de nada disso. Você está inventando, vovó!
"— Pois sim! Você estava com cinco ou seis anos, e no dia seguinte fomos escolher a nova árvore, a que você verá amanhã, menina, e a abençoamos em nome do clã, e eu disse ao jovem Ian que fosse um pouco mais cuidadoso, da próxima vez!"
Haviam rido juntos e depois, durante a noite, ela acordara e não encontrara Ian, nem suas muletas. Ficara atenta, esperando. Quando ele voltou, estava ensopado, mas cansado e em paz. Fingiu que dormia até que ele tivesse se metido na cama de novo. Aí, virou-se para ele, dando-lhe todo o calor de que era capaz.
— Lembre-se, minha menina — Vovó Dunross dissera-lhe em particular, no dia em que partiram —, se quiser manter o seu casamento, providencie para que este Dunross tenha sempre por perto uma Árvore dos Gritos. Não tenha medo. Escolha uma, sempre escolha uma, onde quer que estejam. Este Dunross precisa de uma Árvore dos Gritos por perto, embora não o admita, e só vai usá-la raramente. Ele é como Dirk. É forte demais...
E assim, aonde quer que fossem, tinham uma árvore. Penelope insistira. Certa vez, em Chungking, para onde Dunross fora mandado como oficial de ligação dos Aliados, depois que se curou, ela fizera de um bambu a Árvore dos Gritos deles. Ali em Hong Kong era um imenso jacarandá que dominava o jardim inteiro.
— Não acha que devia fazer uma visitinha a ela?
A árvore era sempre "ela" para ele, e "ele" para ela.
"Todo mundo devia ter uma Árvore dos Gritos", pensou Penelope. "Todo mundo."
— Obrigado — disse ele. — Agora estou bem.
— Como foi que Vovó Dunross teve tanta sabedoria e continuou tão maravilhosa depois de tanta tragédia na vida?
— Não sei. Vai ver que elas eram feitas de material mais forte, naquela época.
— Sinto saudade dela. — Vovó Dunross estava com oitenta e cinco anos quando morreu. Era Agnes Struan quando se casou com o primo Dirk Dunross, Dirk McCloud Dunross, cuja mãe, Winifred, única filha de Dirk Struan, dera-lhe o nome do pai, como homenagem. Dirk Dunross fora o quarto tai-pan, e morrera no mar, levando o Sunset Cloud para casa. Tinha apenas quarenta e dois anos, ao desaparecer, e ela, trinta e um. Jamais se casou de novo. Tiveram três filhos e uma filha. Dois dos filhos morreram na Primeira Guerra, o mais velho em Galípoli, com vinte e um anos, o outro em Ypres, Flandres, com dezenove. A filha Anne casara-se com Gaston de Ville, pai de Jacques. Anne morrera nos bombardeios de Londres, para onde haviam fugido todos os De Villes, exceto Jacques, que ficara na França e lutara contra os nazistas, com os maquis. Colin, o último dos seus filhos, pai de Ian, também tivera três filhos e uma filha, Kathren. Dois filhos também tinham morrido na Segunda Guerra Mundial. O primeiro marido de Kathren, líder da esquadrilha de Ian, fora morto na Batalha da Inglaterra. — Tantas mortes, mortes violentas — disse Penelope, com tristeza. — Ver todos eles nascerem, e todos morrerem... terrível! Pobre vovó! No entanto, quando morreu, pareceu partir tão serenamente, com aquele seu lindo sorriso.
— Talvez fosse joss. Mas os outros, também era o destino deles. Apenas fizeram o que tinham que fazer, Penn. Afinal de contas, nesse aspecto, a história da nossa família é bem comum. Somos britânicos. A guerra tem sido um meio de vida há séculos. Olhe só para a sua família. Um dos seus tios morreu no mar, na marinha, na Primeira Grande Guerra; outro na última, em El-Alamein; seus pais morreram na blitz... tudo muito comum. — A voz dele endureceu. — Não é fácil explicar para um estranho, é?
— Não. Todos tivemos que crescer tão depressa, não é, Ian? — Ele fez que sim com a cabeça, e depois de um momento, ela falou: — É melhor ir se vestir para o jantar, querido, vai se atrasar.
— Ora, qual é, Penn? Você leva uma hora a mais do que eu. Ficaremos só um pouco, sairemos logo depois do jantar. Quan... — O telefone tocou, e ele atendeu. — Sim? Oh, alô, Sr. Deland.
— Boa noite, tai-pan. Quero informar sobre a filha de Mme de Ville e seu genro, M. Escary.
— Por favor, prossiga.
— Sinto-me consternado por ter de dar notícias tão más. O acidente foi, como se diz, uma batida de raspão na parte de cima da Corniche, pertinho de Èze. O motorista do outro carro estava bêbado. Foi mais ou menos às duas da manhã, e quando a polícia chegou, M. Escary já estava morto, e sua mulher, inconsciente. O doutor diz que ela vai sarar, muito bem. Mas teme que os... os órgãos internos dela, seus órgãos reprodutores, possam ter sido afetados permanentemente. Pode precisar de uma operação. Ele...
— Ela está sabendo disso?
— Não, monsieur, ainda não, mas Mme de Ville sabe, o médico lhe contou. Fui recebê-la, como o senhor mandou, e cuidei de tudo. Pedi a um especialista nessas coisas, de Paris, que viesse dar o seu parecer, e ele chega ao Hospital de Nice hoje à tarde.
— Mais algum dano?
— Não externamente. Um pulso quebrado, alguns cortes, nada. Mas a pobre moça está arrasada. Foi bom... fiquei feliz por a mãe dela ter vindo, isso ajudou, ajudou. Está hospedada numa suíte no Metrópole, e fui recebê-la no aeroporto. Claro que estarei sempre em contato com ela.
— Quem dirigia?
— Mme Escary.
— E o outro motorista? Uma hesitação.
— O nome dele é Charles Sessonne. É padeiro em Èze, e ia voltando para casa, depois de uma noitada de cartas com amigos. A polícia já... Mme Escary jura que o carro dele estava na contramão. Ele não se lembra. Naturalmente, lamenta muito, e a polícia já o indiciou por dirigir bêbado, e...
— É a primeira vez?
— Non. Non, já houve uma vez em que foi detido e multado.
— O que acontecerá, segundo a lei francesa?
— Haverá um julgamento e depois... não sei, monsieur. Não houve outras testemunhas. Talvez uma multa, talvez a cadeia, não sei. Talvez ele se recorde de que estava na mão, quem sabe? Lamento muito.
Dunross pensou por um momento.
— Onde mora esse homem?
— Rue de Verte, 14, Èze.
Dunross lembrava-se bem da aldeia, não ficava longe de Monte Cario, bem no alto, e de lá se enxergava toda a Cote d'Azur, a Itália, para além de Monte Cario, e Nice, para além de Cap Ferrat.
— Obrigado, Sr. Deland. Mandei-lhe por telex dez mil dólares para as despesas de Mme de Ville e qualquer outra coisa. Faça o que for necessário. Ligue para mim, imediatamente, se houver algum problema... e por favor peça ao especialista para ligar para mim logo após ter examinado Mme Escary. Já falou com o Sr. Jacques de Ville?
— Não, tai-pan, o senhor não me deu ordens para isso. Quer que eu ligue?
— Não, eu ligo. Mais uma vez, obrigado.
Dunross desligou e contou tudo para Penelope, exceto sobre os ferimentos internos.
— Que horrível! Que coisa mais... sem sentido! Dunross estava olhando pela janela para o pôr-do-sol. Fora ele que sugerira que o jovem casal fosse para Nice e Monte Cario, onde ele e Penelope tinham se divertido tanto: comida maravilhosa, vinhos maravilhosos e um pouco de jogo. "Joss", pensou, depois acrescentou: "puta que o pariu!"
Ligou para a casa de Jacques de Ville, mas não o achou. Deixou um recado para que lhe telefonasse.
— Eu o verei logo mais, no jantar — disse, o champanha agora sem gosto. — Bem, é melhor nos vestirmos.
— Eu não vou, querido.
— Ora, mas...
— Tenho um monte de coisas para aprontar para amanhã. Arranje uma desculpa para mim... claro que você tem de ir. Estarei ocupadíssima. As coisas de escola de Glenna... e Duncan chega na segunda, e o material e roupas de escola dele têm que ser preparados. Você terá que levá-lo até o avião, e cuidado para ele não esquecer o passaporte... É fácil você arranjar uma desculpa para mim hoje, já que vou viajar.
Ele deu um débil sorriso.
— Claro, Penn, mas qual é o verdadeiro motivo?
— Vai ser uma festança. Robin estará lá.
— Eles só voltam amanhã!
— Não, estava na edição extra do Guardian. Chegaram esta tarde. A delegação inteira sem dúvida será convidada. — O banquete estava sendo oferecido por um multimilionário do mercado de imóveis, Sir Shi-teh T'Chung, em parte para comemorar o título de cavaleiro que recebera na última Lista de Honrarias, mas principalmente para dar início ao seu mais recente programa de caridade, a construção da nova ala do Elizabeth Hospital. — Não tenho mesmo vontade de ir, e contanto que você vá, tudo bem. Também estou querendo dormir cedo. Por favor.
— Está bem. Vou cuidar desses telefonemas, depois vou para lá. Mas falo com você antes de sair. — Dunross subiu as escadas e entrou no seu gabinete. Lim esperava. Usava uma túnica branca, calças pretas e sapatos macios. — Boa noite, Lim — disse Dunross em cantonense.
— Boa noite, tai-pan. — Discretamente, o velho chamou-o até a janela. Dunross podia ver dois homens, chineses, vadiando do outro lado da rua, do lado de fora do muro alto que cercava a Casa Grande, junto dos portões de ferro altos e abertos. — Há algum tempo que estão ali, tai-pan.
Dunross observou-os por um momento, inquieto. Seus próprios guardas haviam sido dispensados, e Brian Kwok, que também fora convidado para a festa de Sir Shi-teh, viria buscá-lo dali a pouco, no papel de substituto.
— Se não tiverem ido embora até o anoitecer, ligue para o gabinete do superintendente Crosse. — Anotou o número, depois acrescentou em cantonense, com a voz subitamente dura:
— Por falar nisso, Lim, se eu quiser que se mexa em algum carro de demônio estrangeiro, darei a ordem.
Viu que os velhos olhos o fitavam, impassíveis. Lim Chu estava com a família desde os sete anos, como o seu pai antes dele, e o pai dele, o primeiro da sua linhagem, que, antigamente, antes da existência de Hong Kong, fora o Empregado Número Um, e cuidara da mansão dos Struans em Macau.
— Não estou entendendo, tai-pan.
— Não se pode embrulhar fogo com papel. A polícia é esperta, e o velho Barba Negra é um grande amigo da polícia. Os peritos sabem examinar os freios e tirar toda espécie de informações.
— Não sei nada sobre a polícia. — O velho deu de ombros, depois abriu um sorriso. — Tai-pan, não subo em árvores para achar peixes. Nem o senhor. Preciso contar-lhe que, durante a noite, não pude dormir e vim para cá. Havia uma sombra no balcão. No momento em que abri a porta do gabinete, a sombra escorregou pelo cano de escoamento e sumiu no meio dos arbustos. — O velho apanhou um pedaço rasgado de pano.
— Isto aqui estava no cano.
A fazenda era comum, sem nada de especial.
Dunross examinou-a, perturbado. Lançou um olhar para o retrato de Dirk Struan, encimando a lareira. Estava na posição exata. Ele o afastou e viu que o fio de cabelo que havia equilibrado delicadamente numa dobradiça do cofre não fora tocado. Satisfeito, recolocou o quadro no lugar, depois foi verificar as trancas das portas envidraçadas. Os dois homens continuavam lá. Pela primeira vez, Dunross ficou muito contente por ter uma guarda do sei.