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17h50m
As tribunas agora estavam vazias, exceto pelos varredores, os reservados às escuras. A chuva cascateava do céu, um lençol sólido de água. Era quase a hora do crepúsculo. O tráfego estava totalmente congestionado em volta do hipódromo. Milhares de pessoas dirigiam-se com dificuldade para casa, encharcadas mas com o coração leve. No sábado seguinte haveria novas corridas, e novo quinto páreo, e "oh, oh, oh, novo desafio, e dessa vez o tai-pan montará Noble Star, sem dúvida, e talvez o Barba Negra monte Pilot Fish, e os dois demônios quai loh se matarão para nos divertir".
Um Rolls que saía da entrada dos sócios molhou alguns dos pedestres, e todos berraram um monte de obscenidades, mas nenhum dos chineses realmente se importou. "Um dia terei um desses, também", todos pensaram. "Só preciso de um pouco duma porra de sorte. Só um pouquinho de sorte no sábado que vem, e terei o bastante para comprar um pouco de terra, ou um apartamento para alugar, para permutar com um apartamento nas colinas, para hipotecar em troca de um acre na zona central. Eeee, como vou curtir andar no meu Rolls com uma chapa de sorte como aquela! Viu quem era? O chofer de táxi Tok, que há sete anos dirigia um boi-pi, um táxi ilegal, e encontrou dez mil HK no banco de trás, certo dia, e escondeu-os durante cinco anos para prescrever o prazo de devolução. Depois investiu-os na alta da Bolsa de três anos atrás, com um lucro imenso, depois pegou o lucro e comprou apartamentos. Eeee, a alta! Lembra-se do que o Velho Cego Tung escreveu na sua coluna, sobre a alta vindoura? Mas, e quanto ao colapso do mercado de capitais e todas as corridas aos bancos?
"Ayeeyah, tudo isso acabou! Não ouviu a notícia espantosa? O Grande Banco vai comprar o controle e assumir todas as dívidas do Banqueiro Kwang. Soube que a Casa Nobre vai comprar a General Stores? Duas notícias tão boas anunciadas no dia da corrida. Isso nunca aconteceu antes! É estranho!
Muito estranho! Não acha que... Fodam-se todos os deuses! Será uma trama suja daqueles demônios estrangeiros nojentos para manipular o mercado e roubar os nossos lucros de direito? Ai, ai, ai, concordo! É, deve ser uma trama suja! É coincidência demais! Ah, esses bárbaros terríveis e astutos! Graças aos deuses me dei conta, assim posso me preparar! Bem, o que devo fazer..."
Enquanto se dirigiam para casa, as cabeças fervilhavam com entusiasmo crescente. A maioria estava mais pobre do que quando viera ao prado, mas alguns estavam muito mais ricos. Wu Óculos, o detetive da delegacia de polícia de Aberdeen Leste, era um desses. Crosse permitira que ele fosse às corridas, embora tivesse que estar de volta até as dezoito e quinze, quando o cliente devia ser interrogado de novo. Wu Óculos tinha que estar presente para servir de intérprete do dialeto de Ning-tok. O jovem estremeceu, e seu Saco Secreto ficou gelado ao pensar em como o grande Brian Kwok pusera para fora rapidamente seus segredos mais íntimos.
"Ayeeyah", pensou, cheio de temor supersticioso. "Esses bárbaros rosados são realmente demônios que conseguem nos torcer, a nós, civilizados, e nos deixar loucos. Mas, se eu entrar para o sei, isso me protegerá e me dará alguns dos seus segredos, e com esses segredos e outros segredos dos demônios estrangeiros, eu me tornarei um ancestral!"
Abriu um amplo sorriso. Sua sorte mudara desde que pegara aquela velha amah. Naquela tarde, os deuses o haviam favorecido enormemente. Havia acertado uma das loterias, a dupla diária, e três placês, reinvestindo os ganhos a cada vez, e agora estava cinco mil setecentos e cinqüenta e três HK mais rico. Seu plano para o dinheiro já estava delineado. Financiaria o Quinto Tio na compra de uma máquina usada de moldar plástico para montar uma fábrica de flores de plástico, em troca de cinqüenta e um por cento, outros mil HK pagariam a construção de duas moradias na área de recolonização, para serem alugadas, e os últimos mil seriam guardados para o sábado seguinte!
Um Mercedes buzinou ensurdecedoramente, fazendo com que ele desse um salto. Wu Óculos reconheceu um dos homens no banco de trás: o tal Rosemont, o bárbaro da CIA que possuía fundos ilimitados para gastar. "Como são ingênuos os americanos!", pensou. No ano anterior, quando os parentes dele tinham cruzado a fronteira no êxodo, eles os mandara a todos ao consulado numa base de rodízio, cada mês um nome e uma história diferentes, para se unirem ao bando constante e sempre crescente de "cristãos de arroz", ou, para ser mais exato, "não-comunistas de arroz". Era fácil conseguir refeições gratuitas e ajuda do consulado americano. Bastava fingir que se estava assustado, e dizer nervosamente que se acabara de cruzar a fron-teria, que se era firmemente contra o presidente Mao e que na sua aldeia os comunistas haviam feito tal e tal coisa pavorosa. Os americanos ficavam contentes em ouvir falar dos movimentos das tropas da RPC, reais ou imaginários. Ah, com que rapidez eles anotavam tudo e pediam mais! Qualquer informação, qualquer fragmento estúpido de informação que se tirava de um jornal era para eles, se fosse sussurrada com os olhos girando nas órbitas, muito valiosa.
Há três meses, Wu Óculos tivera uma idéia genial. Contando com quatro membros do seu clã, um dos quais fora originariamente empregado de um jornal comunista de Cantão, Wu Óculos propusera a Rosemont (através de intermediários de confiança, para que ele e seus parentes não pudessem ser descobertos) fornecer um relatório sigiloso mensal, um panfleto de informações, denominado Lutador pela Liberdade, das condições do outro lado da Cortina de Bambu, dentro e ao redor de Cantão. Para provar a qualidade da espionagem, Wu Óculos oferecera as duas primeiras edições de graça. "Para pegar um tigre poderoso é bom negócio sacrificar um cordeiro roubado." Se elas fossem consideradas aceitáveis pela CIA, o preço de cada uma das próximas três seria de mil HK, e se essas fossem igualmente valiosas, então um novo contrato seria negociado por um ano.
Os dois primeiros tinham sido tão elogiados que foi fechado um negócio imediato para cinco relatórios a dois mil HK cada. Na semana entrante, receberiam o primeiro pagamento. Ah, como se haviam dado os parabéns! O conteúdo do relatório fora compilado de trinta jornais cantonenses que vinham no trem diário de Cantão, que também trazia porcos, aves e comida de todo tipo, e que podiam ser comprados sem esforço nas bancas de Wanchai. Só o que tinham a fazer era lê-los meticulosamente e copiar os artigos, depois de retirar a dialética comunista: artigos sobre colheitas, construção, economia, indicações de partidos, nascimentos, mortes, sentenças, extorsões e cor local... qualquer coisa que considerassem de interesse. Wu Óculos traduzia as histórias que os outros escolhiam.
Sentiu uma imensa onda de prazer. O Lutador pela Liberdade tinha um enorme potencial. Os custos eram irrisórios.
— Mas, às vezes, precisamos ter o cuidado de cometer alguns erros — dissera-lhes Wu Óculos —, e ocasionalmente precisamos falhar um mês: "Lamentamos que nosso agente em Cantão tenha sido assassinado por ter revelado segredos de Estado..."
"Ah, sim! E logo, quando eu for membro do sei e um agente de espionagem treinado, saberei melhor como apresentar a informação da imprensa para a CIA. Quem sabe nos expandiremos, e experimentaremos um relatório de Pequim, outro de Xangai. Podemos conseguir jornais de Pequim e Xangai da véspera, igualmente sem problemas e com pouco investimento. Graças aos deuses pela curiosidade americana!
Um táxi buzinou enquanto passava, espadanando água. Parou por um momento para permitir que ele passasse, depois abriu caminho aos empurrões, sem ligar para os xingamentos, barulho e buzinas ao longo da cerca alta que margeava o hipódromo. Wu Óculos deu uma olhada no relógio. Tinha tempo de sobra. O quartel-general não ficava longe.
A chuva ficou mais forte, mas ele não a sentia, o calor dos lucros no bolso tornando mais leves os seus passos. Endireitou os ombros. "Seja forte, seja sensato", ordenou a si mesmo. "Esta noite preciso estar alerta. Talvez peçam a minha opinião. Sei que o superintendente comunista Brian Kwok é um mentiroso aqui e ali, e está exagerando. Quanto às armas atômicas, o que há de tão importante nelas? Claro que o Reino Médio tem suas armas atômicas. Qualquer idiota sabe o que vem se passando há anos, em Sin-kiang, perto das praias do lago Bos-teng-hu. E, naturalmente, logo teremos os nossos foguetes e satélites. Claro! Não somos civilizados? Não inventamos a pólvora e os foguetes, mas os deixamos de lado há milênios, por serem bárbaros?"
Por todo o hipódromo, do outro lado da cerca, as faxineiras varriam os restos molhados deixados por milhares de pessoas, peneirando pacientemente o lixo, com cuidado, para ver se descobriam uma moeda ou um anel perdidos, uma caneta ou garrafas que valessem uma única moeda de cobre. Agachado perto de um monte de latas de lixo, ao abrigo da chuva, estava um homem.
— Vamos, meu velho, não pode dormir aí! — falou uma das faxineiras, não sem gentileza, sacudindo-o. — Está na hora de ir para casa!
Os olhos do velho piscaram por um instante. Ele começou a se levantar, mas parou, soltou um grande suspiro e desabou como uma boneca de pano.
— Ayeeyah — murmurou Yang Um Dente Só. Ela já vira a morte muitas vezes nos seus setenta anos de vida para reconhecê-la imediatamente. — Ei, Irmã Mais Moça! — chamou educadamente a amiga e segundo membro da equipe. — Venha cá! Este velho está morto.
A amiga dela tinha sessenta e quatro anos, era curvada e enrugada, mas igualmente forte, e também xangaiense. Saiu da chuva e veio espiar.
— Parece um mendigo.
— É. É melhor contarmos ao capataz. — Yang Um Dente Só ajoelhou-se e revistou com cuidado seus bolsos rasgados. Havia três HK em trocados, nada mais. — Não é muito — falou. — Não importa.
Dividiu as moedas irmãmente. Ao longo dos anos sempre haviam dividido o que encontravam.
— O que é aquilo na mão esquerda dele? — perguntou a outra mulher. Um Dente Só abriu a mão fechada como garra.
— Só uns bilhetes. — Olhou para eles, levou-os para bem junto dos olhos e folheou-os. — É a loteria dupla... — começou, depois casquinou. — Eeee, o pobre idiota acertou a primeira parte e perdeu a segunda... e escolheu Butterscotch Lass!
As duas mulheres riram histericamente ante a traquina-gem dos deuses.
— Foi isso o que deu o treco no velho... teria dado em mim! Ayeeyah, estar tão perto e tão longe, Irmã Mais Velha!
— Joss. — Yang Um Dente Só casquinou de novo, e jogou os bilhetes numa lata de lixo. — Os deuses são os deuses, e os homens são os homens, mas, eee, dá para se imaginar por que o velho morreu. Eu também teria morrido! — As duas velhas riram de novo, o azar machucando-as, e a mais velha esfregou o peito para suavizar a dor. — Ayeeyah, tenho que ir a um médico. Vá e conte ao capataz sobre ele, Irmã Mais Moça. Mas como estou cansada hoje! Um azar tão grande, ele estava tão perto de ser um milionário, mas agora? Joss! Vá contar ao capataz. Hoje estou cansada — falou de novo, apoiada no anci-nho, a voz trêmula.
A outra mulher se afastou, admirando-se dos deuses, como dão e tiram as coisas rapidamente... se é que existem mesmo, não pôde deixar de pensar. Ah, joss!
Cansadamente, Yang Um Dente Só continuou o trabalho, a cabeça doendo, mas no momento em que teve certeza de estar sozinha, e não ser observada, correu para a lata de lixo e retirou de Iá os bilhetes, desesperadamente, o coração batendo como nunca na vida. Alucinada, verificou se seus olhos não a haviam enganado, e se os números estavam corretos. Mas não havia erro. Cada um dos bilhetes era vencedor. Igualmente alucinada, ela os enfiou no bolso, depois certificou-se de que não havia deixado nenhum no lixo. Rapidamente, empilhou mais lixo por cima, ergueu a lata e esvaziou-a dentro de outra, e o tempo todo sua mente gritava: "Amanhã posso resgatar os bilhetes, tenho três dias para resgatá-los! Oh, que todos os deuses sejam abençoados, estou rica, rica, rica! Aqui deve haver cem ou duzentos bilhetes de cinco HK, e cada um paga duzentos e sessenta e cinco HK... se houver cem bilhetes, isso significa vinte e seis mil e quinhentos HK, se houver duzentos, cinqüenta e três mil HK..."
Sentindo-se tonta, agachou-se ao lado do cadáver, apoiando-se na parede, sem perceber. Sabia que não ousaria contar os bilhetes agora, não havia tempo. Cada segundo era vital. Tinha que se preparar.
— Tome cuidado, velha tola! — murmurou em voz alta. Depois, quase entrou em pânico de novo. "Pare de falar em voz alta! Cuidado, sua velha tola, ou a Irmã Mais Moça vai suspeitar... Ai, ai, ai, será que está contando ao capataz do que está suspeitando? Ah, o que vou fazer? A sorte é minha, fui eu que achei o velho... ayeeyah, o que devo fazer? Talvez me revistem. Se me virem deste jeito, vão sem dúvida desconfiar..."
Sua cabeça doía terrivelmente, e uma onda de náusea a percorreu. Havia alguns banheiros ali por perto. Pôs-se de pé com esforço e caminhou até eles. Atrás dela, outras faxineiras varriam e limpavam. No dia seguinte, todas voltariam, pois ainda havia muito o que fazer. O turno dela recomeçaria às nove da manhã. No banheiro vazio, pegou os bilhetes, os dedos trêmulos, enrolou-os num pedaço de pano, achou um tijolo solto na parede e colocou-os atrás do tijolo.
Logo que chegou Iá fora, em segurança, começou a respirar. Quando o capataz voltou com a outra velha, olhou para o homem, revistou os bolsos dele com muito cuidado e encontrou um pedaço de papel prateado que elas tinham deixado passar. Dentro dele havia uma pitada de Pó Branco.
— Vai render dois HK — disse ele, sabendo que valia seis HK. — Vamos rachar, setenta por cento para mim e trinta para vocês duas.
Para manter as aparências, Um Dente Só discutiu, e acabaram concordando em que ele tentaria obter três HK pelo pó, e racharia sessenta por cento para ele e quarenta para elas. Satisfeito, ele foi embora.
Quando ficaram sozinhas de novo, a mulher mais moça começou a peneirar o lixo.
— O que está fazendo? — quis saber Um Dente Só.
— Só queria examinar os bilhetes, Irmã Mais Velha. Seus olhos já não são tão bons.
— Fique à vontade — falou Um Dente Só, dando de ombros. — Já vasculhei tudo isso aqui. Agora vou para Iá.
Seu dedo nodoso apontou para uma nova fonte despercebida de lixo virgem sob uma fileira de assentos. A outra mulher hesitou, depois a seguiu, e Um Dente Só quase casquinou de alegria, sabendo que estava salva. "Amanhã, eu volto, reclamando de dor de barriga. Posso apanhar a minha fortuna e ir para casa. Agora, o que vou fazer com a minha fortuna?
"Primeiro, o sinal para dois vestidos de baile quai loh para a Terceira Neta, em troca de metade dos ganhos dela, no primeiro ano. Dará uma bela prostituta no Cabaré Boa Sorte. A seguir, o Segundo Filho deixará de ser cule no prédio em construção na Kotewall Road. Ele, o Quinto Sobrinho e o Segundo Neto vão se tornar construtores, e dentro de uma semana daremos o sinal para a compra de um lote de terra e começaremos a construir um prédio..."
— Está parecendo muito feliz, Irmã Mais Velha.
— E estou, Irmã Mais Moça. Meus ossos doem, sinto a sezão, como sempre, estou com dor de barriga, mas estou viva, e o velho está morto. É uma lição dos deuses. Que todos os deuses sejam testemunhas, logo que o vi, pela primeira vez, pensei que era o meu marido, que morreu na nossa fuga de Xangai, há quinze anos. Pensei que estava vendo um fantasma! Quase morri também, pois o velho parecia gêmeo dele!
— Ayeeyah, que terrível! Que horrível! Fantasmas! Todos os deuses nos protejam dos fantasmas!
"É, sim", pensou a velha, "os fantasmas são terríveis. Bem, onde estava eu? Ah, sim... mil irão para a loteria do sábado que vem. E com os ganhos comprarei... comprarei uma dentadura para mim! Eeee, que maravilha será!", ela teve vontade de exclamar, quase desmaiando de prazer reprimido. Toda a sua vida, toda a sua vida desde os catorze anos, quando a coronha de um rifle nfanchu havia esmagado os seus dentes, numa das constantes revoluções contra a dinastia Tsing estrangeira, ela fora apelidada de Um Dente Só. Sempre odiara o apelido. Mas, agora... "Que os deuses sejam testemunhas! Vou comprar uma dentadura com os meus ganhos do sábado que vem... e também vou comprar e acender duas velas no templo mais próximo em troca desta sorte maravilhosa."
— Estou tonta, Irmã Mais Moça — falou, realmente tonta de êxtase. — Quer me buscar um copo de água?
A outra mulher se afastou, resmungando. Um Dente Só sentou-se por um momento, e permitiu-se um imenso sorriso, passando a língua pelas gengivas. "Eeee, quando eu ganhar, se ganhar bastante, vou mandar pôr um dente de ouro, bem no centro, para me fazer lembrar. Yang Dente de Ouro, como soa bem!", pensou, esperta demais para murmurar em voz alta, embora estivesse completamente só. "É, Honorável Yang Dente de Ouro, do Império Yang de Construções..."