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8h29m
Claudia apanhou um bolo de notas, cartas e respostas da bandeja de "saída" de Dunross e começou a folheá-las. Chuva e nuvens baixas obscureciam a vista, mas a temperatura era baixa e muito confortável, depois da forte umidade da semana anterior. O relógio antigo, preso por argolas de prata, que ficava sobre a cornija da lareira, bateu oito e meia.
Um dos telefones tocou. Ela ficou olhando, mas sem fazer menção de atender. Continuou tocando e tocando, até cessar. Sandra Yi, a secretária de Dunross, entrou com nova leva de documentos e correspondência e voltou a encher a bandeja de "entrada".
— A minuta do contrato da Par-Con está em cima, Irmã Mais Velha. Eis aqui a lista dos compromissos dele para hoje, pelo menos aqueles de que tenho conhecimento. O superintendente Kwok ligou faz dez minutos. — Ela enrubesceu ante o olhar de Claudia, o cheong-sam justo e fendido até em cima, o colarinho alto, como estava na moda. — Ligou para o tai-pan, não para mim, Irmã Mais Velha. Pediu para o tai-pan fazer a gentileza de telefonar depois para ele.
— Mas espero que tenha batido um longo papo com o Honorável Jovem Garanhão, e soltado suspiros e gemidos maravilhosos — replicou Claudia em cantonense. Depois passou para o inglês, sem perceber, ainda folheando os papéis enquanto falava, arrumando-os em duas pilhas diferentes. — Afinal de contas ele deve ser traçado e anexado rapidamente à família, antes que alguma puxa-saco de outro clã o agarre.
— É, sim. Também acendi cinco velas em cinco templos diferentes.
— Espero que nas suas horas de folga, não no horário de trabalho da companhia.
— Oh, sem dúvida! — As duas riram. — Mas temos um encontro marcado... vamos jantar amanhã.
— Excelente! Seja recatada, vista-se discretamente, mas não use sutiã... como Orlanda.
— Oh, então foi verdade! Puxa, acha que devo? — perguntou Sandra Yi, chocada.
— Para o jovem Brian, deve. — Claudia deu uma risadinha abafada. — Ele tem faro, o rapaz!
— Minha cartomante disse que este ia ser um ano maravilhoso para mim. Que coisa terrível o incêndio, não foi?
— Foi. — Claudia examinou a lista de compromissos. Linbar dali a alguns minutos, Sir Luís Basílio às oito e quarenta e cinco. — Quando Sir Luís chegar...
— Sir Luís está esperando agora na minha sala. Sabe que chegou cedo... já lhe dei café, e os jornais da manhã. — A fisionomia de Sandra Yi ficou apreensiva. — O que vai acontecer às dez?
— A Bolsa de Valores vai abrir — falou Claudia vivamente, e entregou-lhe a pilha maior. — Cuide disso aqui, Sandra. Ah, e ele também cancelou duas reuniões de diretoria e o almoço, mas desses cuido eu.
Ambas ergueram os olhos quando Dunross entrou.
— Bom dia — cumprimentou ele. Seu rosto estava mais sério do que antes, as equimoses realçando sua austeridade.
Sandra Yi disse, meigamente:
— Todos estão muito felizes porque o senhor não se machucou, tai-pan.
— Obrigado.
Ela se retirou. Ele ficou observando o andar dela, depois notou o olhar de Claudia. Um pouco da sua austeridade o abandonou.
— Nada como uma gatinha bonita, não é? Claudia achou graça.
— Enquanto você não estava, seu telefone particular tocou duas vezes.
Referia-se ao telefone que não constava do catálogo, que só ele atendia, e cujo número só era dado aos familiares e a um punhado de pessoas especiais.
— Ah, obrigado. Cancele todos os compromissos até o meio-dia, exceto Linbar, o velho Sir Luís Basílio e o banco. Certifique-se de que o tratamento vip será dado a Penn e à srta. Kathy. Gavallan vai levá-la ao aeroporto. Primeiro, ligue-me com Tung Pão-Duro. Com Lando Mata também... pergunte se posso vê-lo, de preferência às dez e vinte, no Coffee Place. Leu meu bilhete sobre o Zep?
— Li, é terrível. Cuidarei de tudo. O ajudante-de-ordens do governador telefonou: você estará presente à reunião do meio-dia?
— Estarei — respondeu Dunross, pegando um telefone e discando enquanto Claudia saía, fechando a porta atrás de si.
— Penn? Queria falar comigo?
— Oh, Ian, sim, mas não liguei para você. É isso o que quer dizer?
— Pensei que fosse você na linha particular.
— Não, mas como estou contente que tenha ligado. Ouvi a notícia do incêndio logo cedo no rádio e... não tinha muita certeza se tinha sonhado ou não com sua volta para casa ontem à noite. Eu... fiquei muito preocupada, desculpe. Ah Tat disse que você tinha saído bem cedo, mas não confio naquela bruxa velha... às vezes não diz coisa com coisa. Desculpe. Foi muito ruim?
— Não. Não de verdade. — Relatou-lhe tudo sucintamente. Agora que sabia que tudo estava bem com ela, queria que desligasse. — Contarei os mínimos detalhes quando for buscá-la para levá-la ao aeroporto. Já verifiquei o vôo, e está no horário... — Seu intercomunicador tocou. — Espere um instantinho, Penn... Sim, Claudia?
— O superintendente Kwok na linha 2. Diz que é importante.
— Está bem. Desculpe, Penn, tenho que desligar. Apanho você com tempo de sobra para o seu vôo. Tchau, querida... Mais alguma coisa, Claudia?
— O avião de Bill Foster, de Sydney, está atrasado mais de uma hora. O sr. Havergill e Johnjohn o receberão às nove e meia. Liguei para confirmar. Parece que estão no banco desde as seis horas.
A inquietação de Dunross aumentou. Tentara falar com Havergill desde as quinze horas do dia anterior, mas o vice-presidente da junta diretora não pudera atender, e não achara que fosse adequado falar-lhe à noite, durante a festa.
"Isso não é bom. Já havia uma multidão do lado de fora do banco quando cheguei, às sete e meia.”
— O Vic não vai quebrar, vai? Ele notou a ansiedade na voz dela.
— Se quebrar, estamos todos ferrados. — Apertou a linha 2. — Oi, Brian, o que há de novo?
Brian Kwok contou-lhe sobre John Chen.
— Meu Deus, pobre John! Depois do dinheiro do resgate ter sido entregue ontem à noite, pensei que... mas que filhos da mãe! Já está morto há algum tempo?
— Já. Pelo menos há três dias.
— Mas que filhos da mãe! Já contou a Phillip e a Dianne?
— Não, ainda não. Quis lhe contar primeiro.
— Quer que eu ligue para eles? Phillip está em casa, agora. Depois de ter feito o pagamento, ontem à noite, disse a ele que não precisava vir à reunião das oito horas. Ligarei agora para ele.
— Não, Ian, isso compete a mim. Desculpe ser o portador de más notícias, mas achei que você devia saber sobre o John.
— Sim... sim, amigo velho, obrigado. Escute, tenho um compromisso na casa do governador Iá pelas sete, que acabará por volta das dez e meia. Quer tomar um drinque, ou comer alguma coisa?
— Boa idéia. Que tal o Quance Bar, no Mandarim?
— Às dez e quarenta e cinco?
— Ótimo. A propósito, deixei ordens para que sua tai-tai passasse direto pela Imigração. Lamento ter dado a má notícia. Tchau.
Dunross desligou o telefone, levantou-se e ficou olhando pela janela. O intercomunicador tocou, mas ele não escutou.
— Pobre infeliz! — resmungou. — Que desperdício! Ouviu-se uma ligeira batida, depois a porta se abriu um pouquinho, e Claudia disse:
— Com licença, tai-pan, Lando Mata na linha 2. Dunross sentou-se na borda da mesa.
— Alô, Lando, podemos nos encontrar às dez e vinte?
— Sim, claro. Soube do Zeppelin. Que terrível! Eu mal consegui salvar a pele! Maldito incêndio! Apesar de tudo, nós nos safamos, hem? Joss!
— Já entrou em contato com o Pão-Duro?
— Já. Vai chegar pela próxima barca.
— Ótimo. Lando, posso precisar de você para me apoiar hoje.
— Mas, Ian, já conversamos sobre isso ontem à noite. Pensei que tinha sido bem cla...
— É. Mas quero o seu apoio hoje — falou Dunross, a voz mais dura.
Houve uma longa pausa.
— Vou... vou falar com o Pão-Duro.
— Também vou falar com o Pão-Duro. Nesse meio tempo, gostaria de saber que conto com o seu apoio, agora.
— Já reconsiderou a nossa oferta?
— Tenho o seu apoio, Lando? Ou não?
Outra pausa. A voz de Mata revelava maior nervosismo.
— Eu lhe... eu lhe direi quando o vir, às dez e vinte. Lamento, Ian, mas tenho que falar primeiro com o Pão-Duro. Encontro você para tomarmos um café. Tchau.
O telefone foi desligado. Dunross recolocou o fone no gancho, com suavidade, e murmurou docemente:
— Dew neh loh moh, Lando, velho amigo. Pensou por um momento, depois discou.
— O sr. Bartlett, por favor.
— O telefone dele não responde. Quer deixar recado? — indagou a telefonista.
— Por favor, transfira a chamada para a srta. K. C. Tcholok.
— Como?
— Casey... srta. Casey!
O telefone tocou e Casey atendeu, com voz de sono.
— Alô?
— Ah, desculpe, ligo mais tarde...
— Ian? Não... não, tudo bem, eu já devia... estar de pé há horas... — Ouviu-a abafar um bocejo. — Meu Deus, como estou cansada! O incêndio não foi um sonho, foi?
— Não. Ciranoush, só queria me certificar de que vocês dois estavam bem. Como se sente?
— Não muito legal. Acho que devo ter distendido alguns músculos... não sei se foram as risadas ou os vômitos. Você está bem?
— Estou. Até agora. Não está com febre, nem nada? O dr. Tooley recomendou que prestássemos atenção a isso.
— Acho que não. Ainda não vi o Linc. Já falou com ele?
— Não... não respondem do quarto dele. Escute, quero convidar os dois para um drinque, às seis.
— Para mim, está ótimo. — Outro bocejo. — Estou contente de que você esteja bem.
— Ligo mais tarde para... Novamente o intercomunicador.
— O governador na linha 2, tai-pan. Disse-lhe que você iria à reunião matinal.
— Está certo. Ouça, Ciranoush, drinque às seis. Se não for possível, quem sabe uma ceia. Ligo mais tarde para confirmar.
— Certo, Ian. E Ian, obrigada pelo telefonema.
— De nada. Tchau. — Dunross apertou a linha 2. — Bom dia, senhor.
— Lamento incomodá-lo, Ian, mas preciso falar com você sobre aquele incêndio pavoroso — disse Sir Geoffrey. — É um milagre que não tenha morrido mais gente, o ministro está uma fera com a morte do pobre Sir Charles Pennyworth, e danado da vida porque os nossos regulamentos de segurança permitiram que tal coisa acontecesse. O gabinete foi informado, portanto podemos esperar repercussões de alto nível. Dunross falou-lhe da sua idéia sobre as cozinhas em Aberdeen, fingindo que era de Shi-teh T'Chung.
— Excelente! Shitee é esperto! Já é um começo. Enquanto isso, Robin Grey, Julian Broadhurst e os outros deputados já telefonaram solicitando um encontro para protestarem contra os nossos inadequados regulamentos contra incêndio. Meu aju-dante-de-ordens disse que Grey estava irritadíssimo. — Sir Geoffrey soltou um suspiro. — Com toda a razão, talvez. De qualquer modo, o cavalheiro vai agitar o mais que puder, pode crer. Parece que até já marcou uma entrevista coletiva com Broadhurst, para amanhã. Agora que o pobre Sir Charles morreu, Broadhurst ficou sendo o membro mais antigo, e sabe Deus o que acontecerá se aqueles dois começarem a meter o pau na China.
— Peça ao ministro para amordaçá-lo, senhor.
— Já pedi, e ele respondeu "Santo Deus, Geoffrey, amordaçar um deputado? Isso seria pior do que tentar atear fogo no Parlamento!" É tudo muito exasperante. Minha idéia foi que você poderia acalmar um pouco o sr. Grey. Vou sentá-lo ao seu lado, logo mais.
— Não acho que seja boa idéia, senhor. O sujeito é um lunático.
— Concordo plenamente, Ian, mas ficaria muito grato se você tentasse. É o único em quem posso confiar. Quillan bateria nele. Ele acabou de telefonar, recusando formalmente o convite, só por causa do Grey. Quem sabe você também não poderia convidar o sujeito para as corridas do sábado?
Dunross lembrou-se de Peter Marlowe.
— Por que não convida Grey e os outros para a sua tribuna? Eu cuidarei dele, durante parte do tempo.
"Graças a Deus Penn não estará aqui", pensou.
— Está certo. Mais uma coisa: Roger me pediu para encontrar você no banco, amanhã às seis horas.
Dunross deixou o silêncio pesar.
— Ian?
— Sim, senhor?
— Às seis. O Sinders já deverá estar lá, a essa altura.
— O senhor o conhece? Pessoalmente?
— Sim. Por quê?
Só queria me certificar.
Dunross escutou o silêncio do governador. Sua tensão aumentou.
— Ótimo. Às seis. Mais uma coisa: já soube do pobre John Chen?
— Sim, senhor, faz alguns minutos. Uma desgraça.
— Concordo. Pobre coitado! Essa confusão dos Lobisomens não podia ter chegado numa hora pior. Certamente se tornará uma cause célèbre para todos os que se opõem a Hong Kong. Um aborrecimento dos diabos, além da tragédia propriamente dita. Ora, ora, bem, ao menos vivemos numa época interessante, com problemas para todo lado.
— É, sim, senhor. O Victoria está encrencado? Dunross fez a pergunta com naturalidade, mas estava bem atento, e notou a ligeira hesitação antes de Sir Geoffrey responder, despreocupadamente:
— Santo Deus, não! Meu caro, mas que idéia espantosa! Bem, Ian, obrigado. O resto pode esperar até a nossa reunião do meio-dia.
— Sim, senhor.
Dunross desligou o telefone e enxugou a testa. "Aquela hesitação foi de muito mau agouro", pensou com os seus botões. "Se alguém realmente sabe a extensão dos problemas, esse alguém é Sir Geoffrey. "
Uma rajada de chuva fustigou as vidraças. Tanta coisa para fazer! Seus olhos se dirigiram para o relógio. Agora o Linbar, depois Sir Luís. Já decidira o que queria do presidente da Bolsa, o que precisava obter dele. Não havia tocado no assunto na reunião da assembléia interna, logo cedo. Os outros o haviam deixado irritado. Todos eles — Jacques, Gavallan, Linbar — estavam convencidos de que o Victoria apoiaria a Struan até o fim.
— E se não apoiar? — perguntara ele.
— Temos o negócio com a Par-Con. É inconcebível que o Victoria não ajude!
— E se não ajudar?
— Quem sabe, depois de ontem à noite, Gornt pare de vender.
— Não vai parar. O que faremos?
— A não ser que consigamos detê-lo, ou adiemos os pagamentos à Toda e ao Orlin, estaremos encrencadíssimos.
"Não podemos adiar os pagamentos", pensou mais uma vez. "Sem o banco, ou Mata, ou Pão-Duro... até mesmo o negócio com a Par-Con não deterá o Quillan. Ele sabe que tem todo o dia de hoje e toda a sexta-feira para vender, vender e vender, e eu não posso comprar nem... "
— O jovem Linbar, tai-pan.
— Mande-o entrar, por favor. — Lançou um olhar ao relógio. O homem mais moço entrou e fechou a porta. — Está quase dois minutos atrasado.
— É? Desculpe.
— Parece que não consigo convencê-lo da necessidade da pontualidade. É impossível dirigir sessenta e três companhias sem a pontualidade dos executivos. Se acontecer mais uma vez, você perde a sua gratificação anual.
Linbar enrubesceu.
— Desculpe.
— Quero que você ocupe o lugar de Bill Foster na nossa operação em Sydney.
Linbar Struan animou-se.
— Claro! Gostaria muito. Há bastante tempo que tenho vontade de ter uma operação só minha.
— Ótimo. Quero você no vôo da Qantas de amanhã e...
— Amanhã? Impossível! — exclamou Linbar, sua felicidade se evaporando. — Vou levar umas duas semanas para aprontar tu...
A voz de Dunross ficou tão suave, mas tão cortante, que Linbar Struan perdeu a cor.
— Sei disso, Linbar. Mas quero que vá para lá amanhã. Fique lá duas semanas e depois volte para me apresentar seu relatório. Compreendeu?
— Sim, compreendi. Mas... mas e quanto ao sábado? E quanto às corridas? Quero ver Noble Star correr.
Dunross simplesmente olhou para ele.
— Quero-o na Austrália. Amanhã. Foster não conseguiu se apossar das Propriedades Woolara. Sem a Woolara, não temos fretador para nossos navios. Sem fretador, nossos atuais acordos bancários são nulos e sem efeito. Você tem duas semanas para corrigir este fiasco e se apresentar de volta.
— E se não o fizer? — perguntou Linbar, furioso.
— Pela madrugada, não perca tempo! Sabe muito bem a resposta. Se falhar, não pertencerá mais à assembléia interna. E se não estiver naquele avião amanhã, está fora da Struan, e ficará fora enquanto eu for tai-pan.
Linbar começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia.
— Ótimo — disse Dunross. — Se tiver êxito com a Woolara, seu salário será dobrado.
Linbar apenas fitou-o.
— Mais alguma coisa, senhor? — Não. Bom dia, Linbar.
Linbar balançou a cabeça e saiu, com largas passadas.
Quando a porta se fechou, Dunross permitiu-se a sombra de um sorriso.
— Sacaninha atrevido — resmungou. Levantou-se e foi até a janela de novo, sentindo-se confinado, desejando estar no seu barco a motor, ou melhor ainda, no seu carro, fazendo as curvas depressa demais, forçando o carro, e a si mesmo, um pouco mais a cada volta, para desanuviar a cabeça. Distraidamente, endireitou um dos quadros e ficou olhando as gotas de chuva, imerso em pensamentos, entristecido por causa de John Chen.
Uma gotinha percorreu uma pista de obstáculos molhada, e desapareceu, para ser seguida por outra e mais outra. Ainda não se enxergava a vista, e a chuva caía torrencialmente.
Seu telefone particular deu sinal de vida.
— Sim, Penn? — atendeu Dunross. Uma voz estranha perguntou:
— Sr. Dunross?
— Sim, quem está falando? — indagou ele, espantado, sem conseguir identificar a voz do homem, ou seu sotaque.
— Meu nome é Kirk, Jamie Kirk, sr. Dunross. Sou... sou amigo do sr. Grant, Alan Medford Grant... — Dunross quase deixou cair o aparelho. — Alô? Sr. Dunross?
— Sim, continue, por favor. — Dunross já superara o seu choque. Alan era um dos poucos a quem dera o número particular, e ele sabia que só devia ser usado em caso de emergência, e nunca passado adiante, exceto por um motivo muito especial. — Em que posso servi-lo?
— Sou... de Londres; da Escócia, para falar a verdade. Alan mandou que eu lhe telefonasse tão logo chegasse a Hong Kong. Ele... me deu o número do seu telefone. Espero não estar incomodando.
— Não, absolutamente, sr. Kirk.
— Alan me deu um pacote para lhe ser entregue, e também queria que eu conversasse com o senhor. Minha... minha mulher e eu passaremos três dias em Hong Kong, portanto eu... gostaria de saber se podemos nos encontrar.
— Naturalmente. Onde está hospedado? — perguntou calmamente, embora seu coração estivesse disparado.
— No Nove Dragões, em Kowloon, quarto 455.
— Quando viu Alan pela última vez, sr. Kirk?
— Quando saímos de Londres, está fazendo agora duas semanas. É, exatamente duas semanas. Estivemos... estivemos em Cingapura e na Indonésia. Por quê?
— Seria conveniente para o senhor depois do almoço?
Lamento, mas estarei ocupadíssimo até três e vinte. Poderia recebê-lo, então, se for conveniente para o senhor.
— Para mim, três e vinte está ótimo.
— Mandarei um carro ir apanhá-lo e...
— Oh, não há necessidade de se... incomodar. Saberemos como chegar ao seu escritório.
— Não é incômodo algum. Um carro os apanhará às duas e meia.
Dunross desligou o telefone, imerso em pensamentos.
O relógio bateu oito e quarenta e cinco. Uma batidinha. Claudia abriu a porta.
— Sir Luís Basílio, tai-pan.
Johnjohn, do Victoria, estava berrando ao telefone:
— ... estou me lixando para o que vocês, cretinos, em Londres pensem, estou lhe dizendo que estamos com um começo de corrida aqui, e a coisa está fedendo mesmo. Eu... o quê? Fale mais alto, homem! A ligação está péssima... O quê?... Pouco se me dá que seja uma e meia da madrugada... onde diabo você estava metido?... há quatro horas que venho tentando falar com você!... O quê?... Aniversário de quem? Deus todo-poderoso... — Suas sobrancelhas avermelhadas subiram bem alto, e ele tentou se controlar. — Ouça, vá para a City e a Casa da Moeda o mais cedo possível e diga a eles... Alô?... É, diga-lhes que esta porra de ilha pode ficar completamente sem dinheiro e... Alô?... Alô?... Ora, puta que o pariu! — Começou a apertar repetidamente o interruptor. — Alô? — Largou com violência o fone no gancho, soltou alguns palavrões, e depois apertou o botão do intercomunicador. — Srta. Mills, a ligação foi cortada, por favor, refaça a ligação o mais depressa que puder.
— Certamente — respondeu a voz serena, muito inglesa. — O sr. Dunross está aqui.
Johnjohn olhou para o relógio e empalideceu. Eram nove e trinta e três.
— Ah, meu Deus! Não faça a ligação agora, é... não faça, eu... — Apressadamente, largou o fone, correu até a por-ta, forçou uma fisionomia serena e abriu a porta com naturalidade estudada. — Meu caro Ian, desculpe tê-lo feito esperar. Como vão as coisas?
— Muito bem, e com você?
— Tudo maravilhoso!
Maravilhoso? Que interessante! Deve haver uns seiscentos ou setecentos clientes impacientes formando fila do lado de fora, e ainda falta meia hora para o banco abrir. Também há alguns diante do Blacs.
— Mais do que alguns... — Johnjohn interrompeu-se a tempo. — Não há motivo para preocupação, Ian. Quer tomar um café ou vamos direto para a sala de Paul?
— Para a sala do Paul.
— Ótimo. — Johnjohn foi na frente, descendo o corredor forrado de espesso carpete. — Não, não há nenhum problema, só alguns chineses supersticiosos... sabe como são, boatos e tudo o mais. Uma coisa horrível, o incêndio. Ouvi dizer que Casey tirou a roupa e mergulhou como um salva-vidas. Esteve no hipódromo, hoje? Esta chuva está formidável, hem?
A inquietação de Dunross aumentou.
— É. Ouvi dizer que há filas diante de quase todos os bancos da colônia. Exceto do Banco da China.
Johnjohn soltou uma risada oca.
— Nossos amigos comunistas não veriam com bons olhos uma corrida ao seu banco. Enviariam tropas!
— Então a corrida existe?
— Ao Ho-Pak, sim. Ao nosso banco? Não. De qualquer maneira, não estamos nem de longe tão fora dos nossos limites quanto Richard Kwang. Parece que ele realmente fez alguns empréstimos bem perigosos. Infelizmente, o Ching Prosperity também não está numa boa. Bem, mas o Ching Sorridente bem que merece uma esfrega depois de tantos anos lidando com empreendimentos tão dúbios.
— Drogas?
— Não sei dizer, Ian. Não oficialmente. Mas os boatos são fortes.
— Mas você afirma que a corrida não vai alcançar vocês?
— Não mesmo. Se alcançar... bem, tenho certeza de que tudo ficará bem.
Johnjohn continuou a descer o largo corredor de lambris. Tudo no ambiente era faustoso, sólido e seguro. Fez um gesto de cabeça para a secretária inglesa idosa, passou por ela e abriu a porta em que se lia paul Havergill, vice-presidente da junta diretora. A sala era ampla, com lambris de carvalho, a escrivaninha imensa e livre de papéis. As janelas davam para a praça.
— Ian, meu caro! — Havergill se levantou e estendeu a mão. — Lamento muito não ter podido atendê-lo ontem, e a festa de ontem à noite não era exatamente o local para se tratar de negócios, não é? Como está se sentindo?
— Bem. Acho. Até agora. E você?
— Estou um pouco desarranjado, mas Constance está bem, graças a Deus. Logo que chegamos a casa, os dois tomamos uma boa dose do velho e bom Remédio do Dr. Colicos.
Era um elixir inventado durante a Guerra da Criméia pelo dr. Colicos para curar distúrbios estomacais quando dezenas de milhares de soldados britânicos morriam de tifo, cólera e disenteria. A fórmula ainda era um segredo.
— Um remédio fantástico! O dr. Tooley também nos deu um pouco.
— Uma desgraça o que houve com os outros, não? A mulher de Toxe, hem?
Johnjohn disse, solenemente:
— Ouvi dizer que encontraram o corpo dela sob uma das estacas, hoje de manhã. Se eu não tivesse recebido um bilhete cor-de-rosa, Mary e eu também teríamos estado lá.
Um bilhete cor-de-rosa significava que você tinha a permissão da sua mulher para sair sem ela à noite, para jogar cartas com amigos, para ir ao Clube, para mostrar a cidade a visitantes, ou lá o que fosse... mas com a permissão benevolente dela.
— É? — Havergill sorriu. — Quem era a moça de sorte?
— Eu estava jogando bridge com McBride no Clube. Havergill riu.
— Bem, a discrição é uma coisa importantíssima, e temos que pensar na reputação do banco.
Dunross sentiu a tensão na sala entre os dois homens. Sorriu educadamente, esperando.
— Em que posso servi-lo, Ian? — indagou Havergill.
— Quero cem milhões extras de crédito por trinta dias. Fez-se um silêncio mortal. Os dois homens o fitavam.
Dunross pensou ver a sombra de um sorriso surgir por trás dos olhos de Havergill.
— Impossível! — ouviu-o dizer.
— O Gornt está preparando um ataque contra nós, é óbvio para qualquer um. Vocês dois sabem que estamos firmes, seguros e em boa forma. Preciso do seu apoio aberto e maciço, então ele não ousará prosseguir, e eu não precisarei realmente do dinheiro. Mas preciso do compromisso de vocês. Agora.
Novo silêncio. Johnjohn esperava e observava. Havergill acendeu um cigarro.
— Como está a situação com a Par-Con, Ian? Dunross contou-lhes.
Assinamos na terça-feira — concluiu. Podemos confiar no americano?
— Fizemos um trato.
Outro silêncio. Constrangido, Johnjohn rompeu-o.
— É um negócio muito bom, Ian.
— É. Com o apoio aberto de vocês, Gornt e o Blacs retirarão o seu ataque.
— Mas cem milhões? — exclamou Havergill. — Está além de qualquer possibilidade.
— Já disse que não precisarei da quantia toda.
— Isso são suposições, meu caro. Poderíamos nos envolver num grande jogo de forças contra a nossa vontade. Ouvi boatos de que Quillan tem financiamento externo, apoio alemão. Não podemos correr o risco de entrar em luta com um consórcio de bancos alemães. Você já ultrapassou o limite do seu crédito. E ainda há as quinhentas mil ações que você comprou hoje, que terão que ser pagas até segunda-feira. Desculpe, mas a resposta é não.
— Submeta o meu pedido à apreciação da diretoria. Dunross sabia que tinha votos suficientes para derrubar a oposição de Havergill. Novo silêncio.
— Muito bem. É o que farei... na próxima reunião de diretoria.
— Não. Só será realizada daqui a três semanas. Por favor, convoque uma reunião de emergência.
— Desculpe, mas não.
— Por quê?
— Não tenho que lhe dar satisfações dos meus motivos, Ian — retrucou Havergill, vivamente. — A Struan não possui nem controla esta instituição, embora tenha grande participação no nosso banco, como temos nela, que é nossa cliente valiosa. Terei prazer em submeter seu pedido à apreciação da junta diretora, na próxima reunião. Convocar reuniões de emergência cabe a mim. Exclusivamente.
— Concordo. Assim como conceder crédito. Você não precisa de uma reunião. Poderia fazer isso agora.
— Terei prazer em submeter seu pedido à apreciação da junta diretora, na próxima reunião. Mais alguma coisa?
Dunross controlou o impulso de arrancar da cara do inimigo a satisfação mal disfarçada.
— Preciso do crédito para apoiar as minhas ações. Agora.
— Claro, e Bruce e eu compreendemos que o sinal da Par-Con lhe permitirá completar suas transações com o estaleiro, e fazer um pagamento parcial ao Orlin. — Havergill soltou uma baforada do cigarro. — A propósito, estou sabendo que o Orlin não renovará... você terá que fazer o pagamento integral dentro de trinta dias, como consta do contrato.
Dunross enrubesceu.
— Como soube disso?
— Pelo presidente da junta, é claro. Liguei para ele ontem à noite para perguntar se...
— Você fez o quê?
— Naturalmente, meu caro — dizia Havergill, agora saboreando abertamente o choque de Dunross e Johnjohn —, temos todo o direito de perguntar. Afinal de contas, somos os banqueiros da Struan, e precisamos saber. Na qualidade de acionistas, também corremos riscos se você fracassar, não é?
— E você ajudará isso a acontecer?
Havergill apagou o cigarro com imenso prazer.
— Não é do nosso interesse que qualquer grande firma fracasse na colônia, muito menos a Casa Nobre. Claro que não! Não precisa se preocupar. Na hora certa interviremos e compraremos suas ações. Jamais permitiremos que a Casa Nobre fracasse.
— Quando é a hora certa?
— Quando as ações estiverem a um preço que considerarmos correto.
— E qual é ele?
— Terei que estudar o assunto, Ian.
Dunross sabia que estava derrotado, mas não deixou isso transparecer.
— Você vai permitir que as ações baixem até ficarem a preço de banana, e depois comprará o controle acionário.
— A Struan agora é uma companhia de capital aberto, não importa como as várias companhias se encadeiem — falou Havergill. — Talvez tivesse sido de bom alvitre seguir os conselhos de Alastair, e os meus... nós ressaltamos os riscos que você correria como empresa de capital aberto. E você deveria ter nos consultado antes de comprar aquela quantidade maciça de ações. É evidente que Quillan acha que você está no papo, e você realmente passou um tanto dos limites. Bem, não tema, Ian, jamais permitiremos que a Casa Nobre fracasse.
Dunross achou graça. Levantou-se.
— A colônia será um lugar muito melhor quando você estiver fora daqui.
— É — disse Havergill, bruscamente. — Meu exercício vai até 23 de novembro. Você pode estar fora da colônia antes de mim!
— Não acha que... — começou Johnjohn, abismado com a fúria de Havergill. Mas interrompeu-se quando este se virou para ele, raivosamente.
Seu exercício começa a 24 de novembro. Desde que a assembléia geral anual confirme a sua indicação. Até então, eu dirijo o Victoria.
Dunross riu de novo.
— Não tenha tanta certeza disso. Retirou-se.
Raivosamente, Johnjohn rompeu o silêncio.
— Você poderia facilmente ter convocado uma reunião de emergência. Poderia facilmente te...
— O assunto está encerrado! Entendeu? Encerrado! — Furiosamente, Havergill acendeu outro cigarro. — Temos nossos próprios problemas, que precisam ser resolvidos primeiro. Mas se esse filho da mãe conseguir sair do aperto desta vez, ficarei muito surpreso. Ele está numa posição perigosa, muito perigosa. Nada sabemos sobre esse maldito americano e sua namorada. Sabemos que Ian é teimoso, arrogante e incapaz. É o homem errado para esse cargo.
— Não é ver...
— Somos uma instituição com fins lucrativos, não beneficente, e os Dunrosses e os Struans já se meteram demais nos nossos negócios, há tempo demais! Se pudermos ficar com o controle acionário, nós nos tornaremos a Casa Nobre da Ásia... sem dúvida! Pegamos de volta o bloco das nossas ações que eles possuem. Despedimos todos os diretores e colocamos novos imediatamente, dobramos o nosso dinheiro, e eu deixaria para o banco um legado eterno. É para isso que estamos aqui... para ganhar dinheiro para o nosso banco e para os nossos acionistas! Sempre considerei o seu amigo Dunross um risco muito grande, e agora ele está indo para o brejo! E se puder ajudar a enforcá-lo, eu o farei!
O médico estava contando as pulsações de Fleur Marlowe pelo seu relógio antigo de bolso, de ouro. Cento e três. Rápido demais, pensou, com tristeza. O pulso dela era delicado. Ele colocou de novo sobre as cobertas seus dedos sensíveis, percebendo a febre. Peter Marlowe saiu do pequeno banheiro do apartamento deles.
— Nada bom, não é? — falou Tooley, com o seu jeitão áspero.
O sorriso de Peter Marlowe era cansado.
— Um tanto enfadonho, para falar a verdade. Só cólicas e muito pouca coisa saindo, só um pouco de líquido. — Seus olhos pousaram na mulher, largada na pequena cama de casal. — Como vai, boneca?
— Bem — disse ela. — Bem, obrigada, Peter.
O médico apanhou a maleta e guardou o estetoscópio.
— Saiu... saiu algum sangue, sr. Marlowe?
Peter Marlowe balançou a cabeça e sentou-se, cansado. Nem ele nem a mulher haviam dormido muito. As cólicas haviam começado por volta das quatro da madrugada, e continuavam desde então, com maior intensidade.
— Não, pelo menos ainda não — disse. — Parece-me um ataque comum de disenteria... cólicas, muita conversa fiada, e pouca coisa de concreto.
— Comum? Já teve disenteria? Quando? Que tipo de disenteria?
— Acho que foi entérica. Eu... eu fui prisioneiro de guerra em Changi, em 45... na verdade entre 42 e 45. Algum tempo em Java, mas principalmente em Changi.
— Ah, sei. Lamento muito. — O dr. Tooley lembrava-se de todas as histórias de horror saídas da Ásia depois da guerra, sobre o tratamento dado às tropas americanas e britânicas pelo exército japonês. — Sempre me senti traído, de uma maneira curiosa — disse o médico, com tristeza. — Os japoneses sempre foram nossos aliados... são uma nação insular, nós também. Bons combatentes. Fui médico dos Chindits. Acompanhei Wingate duas vezes. — Wingate era um excêntrico general britânico que concebera um plano de batalha completamente heterodoxo para enviar colunas altamente móveis de soldados britânicos saqueadores, de codinome Chindits, da Índia para as selvas da Birmânia, bem atrás das linhas japonesas, lançando-lhes suprimentos por avião. — Tive sorte... toda a Operação Chindit era meio arriscada — falou. Enquanto falava, observava Fleur, sopesando as pistas, observando-a com sua experiência, tentando identificar a moléstia agora, tentando isolar o inimigo entre uma infinidade de possibilidades, antes que ele danificasse o feto. — Os malditos aviões viviam errando o lugar onde deviam largar os suprimentos.
— Conheci dois dos seus companheiros em Changi. — O homem mais moço forçava a memória. — Em 43 ou 44, não me lembro exatamente de quando. Ou dos nomes. Foram mandados para Changi depois de capturados.
— Deve ter sido em 43. — O rosto do médico estava solene. — Uma coluna inteira foi pega numa emboscada, logo no começo. Aquelas selvas são inacreditáveis, se você nunca esteve numa. Nós nem sabíamos a quantas andávamos, na maior parte das vezes. Temo que muitos dos rapazes não tenham sobrevivido para chegar a Changi. — O dr. Tooley era um velho simpático, narigudo, cabelos ralos e mãos carinhosas, e sorriu para Fleur. — Então, mocinha — falou, com sua voz áspera e bondosa. — Está com uma pontinha de fe...
— Oh... desculpe, doutor — disse ela rapidamente, interrompendo-o, subitamente muito branca. — Eu... acho...
Saiu da cama e dirigiu-se rápida e desajeitadamente para o banheiro. A porta se fechou atrás dela. Havia uma gota de sangue nas costas da sua camisola.
— Ela está bem? — perguntou Marlowe, a fisionomia rígida.
— Está com trinta e oito e meio de febre, a pulsação está alta. Pode ser apenas uma gastroenterite... — disse o médico, olhando para ele.
— Pode ser hepatite?
— Não, não tão depressa. O período de incubação vai de seis semanas a dois meses. Infelizmente, essa espada está pendendo sobre a cabeça de todos. Lamento. — Uma rajada de chuva e vento fustigou as vidraças. Ele olhou naquela direção e franziu o cenho, lembrando-se de que não havia mencionado o perigo de hepatite a Dunross e aos americanos. "Talvez seja melhor esperar para ver no que dá, e ser paciente. Joss", pensou. — Dois meses, para ficar completamente seguro. Os dois tomaram todas as vacinas, portanto não deve haver perigo de tifo.
— E o bebê?
— Se as cólicas piorarem, ela poderá sofrer um aborto espontâneo, sr. Marlowe — disse o médico, suavemente. — Lamento, mas é melhor saber. Seja como for, não será fácil para ela. Só Deus sabe os vírus e bactérias que existem em Aberdeen. O lugar é um esgoto público, faz já um século. É chocante, mas nada podemos fazer a respeito. — Remexeu no bolso, procurando o bloco de receitas. — Não se pode modificar os chineses, ou os hábitos de séculos. Sinto muito.
— Joss — disse Peter Marlowe, sentindo-se péssimo. — Todo mundo vai ficar doente? Devia haver uns quarenta ou cinqüenta de nós nos debatendo na água... era impossível não engolir um pouco daquela sujeira.
O médico hesitou.
— Dos cinqüenta, talvez cinco fiquem muito doentes. Cinco ficarão incólumes, e o resto vai ficar no meio. Os yan de Hong Kong, o pessoal local, deverão ser menos afetados do que os visitantes. Mas, como você disse, tem muito a ver com Joss. — Achou o bloco. — Vou lhe receitar um antibiótico intestinal moderno, mas continuem com o velho e bom Remédio do Dr. Colicos... vai dar um jeito nas suas barriguinhas, Vigie-a com muito cuidado. Tem um termômetro?
— Sim, claro! Com... — Um espasmo percorreu Peter
Marlowe, sacudiu-o e se foi. — Viajando com crianças, a gente tem que ter um estojo de emergência.
Os dois homens tentavam não olhar para a porta do banheiro. Podiam ouvi-la parcialmente, enquanto sua dor aumentava e diminuía.
— Quantos anos têm seus filhos? — perguntou o dr.
Tooley, distraidamente, tentando não demonstrar na voz a preocupação que sentia. Ao chegar, notara o caos alegre do minúsculo segundo dormitório que dava para a sala pequena e singela. No quartinho mal cabia o beliche duplo, e havia brinquedos espalhados por toda parte. — Minhas filhas já são crescidas. Tenho três moças.
— Como? Ah, as nossas têm quatro e oito anos... duas meninas.
— Têm uma amah?
— Temos, sim. Com toda essa chuva, hoje de manhã, ela levou as crianças à escola. Vão até o porto e pegam um bo-pi.
— O bo-pi era um táxi sem licença, totalmente ilegal, mas quase todo mundo se utilizava dele, de vez em quando. — A escola fica numa transversal da Garden Road. Na maior parte dos dias, elas insistem em ir por conta própria. Sentem-se perfeitamente seguras.
— Mas, sim, claro que sim.
Estavam agora de ouvidos atentos ao tormento dela. Cada esforço abafado refletia-se nos dois homens.
— Bem, não se preocupe — disse o médico, hesitante.
— Mandarei entregar aqui os remédios... há uma farmácia no hotel. Mandarei pôr na sua conta. Voltarei logo mais às seis horas, o mais próximo das seis que puder. Se houver algum problema... — Estendeu gentilmente uma folha do receituário.
Aqui está meu telefone. Não hesite em me chamar, ouviu?
— Obrigado. Bem, e quanto à sua conta?
— Não se preocupe com isso, sr. Marlowe. O que importa primeiro é que fiquem bem. — O dr. Tooley concentrava-se na porta. Estava com receio de ir embora. — Pertenceu ao exercito?
— Não. À força aérea.
— Ah! Meu irmão foi piloto. Espatifou-se em... Interrompeu-se. Fleur Marlowe chamava, hesitante, do outro lado da porta:
— Doutor... será que... por favor... Tooley foi até junto da porta. — Sim, sra. Marlowe? Está bem? — Será que... que... por favor...
Ele abriu a porta e fechou-a atrás de si. O fedor azedo no banheiro minúsculo era intenso, mas ele não ligou.
— Eu... — começou ela, interrompendo-se ao sentir novo espasmo.
— Vamos, não se preocupe — disse, acalmando-a, e colocou uma das mãos nas costas dela e outra no seu estômago, ajudando-a a sustentar seus torturados músculos abdominais. As mãos a massagearam suavemente, e com perícia. — Pronto, pronto! Pode relaxar, não vou deixá-la cair. — Sentiu os músculos retesados sob os dedos, e transmitiu sua força e calor para ela. — Você tem mais ou menos a idade de minha filha, a mais moça. Tenho três, e a mais velha tem dois filhos... Pronto, pode relaxar, pense que a dor vai passar. Logo vai se sentir bem, sem dor...
Dali a pouco as cólicas passaram.
— Eu... Deus, des... desculpe. — A moça tateou em busca de papel higiênico, mas logo foi tomada por outra cólica, e mais outra. Era desconfortável para ele, ali no banhei-rinho, mas cuidou dela e manteve as mãos fortes sustentando-a da melhor maneira possível. Sentiu uma pontada nas costas. Ela disse: — Estou... estou bem, agora. Obrigada.
Ele sabia que não era verdade. Estava ensopada de suor. Ele passou um pano molhado no rosto dela, depois secou-o. A seguir, ajudou-a a se levantar, sustentando-lhe o peso, acalmando-a o tempo todo. Limpou-a. O papel deixava ver vestígios de sangue, e havia vestígios de muco com sangue também na água suja do vaso, mas ela ainda não estava tendo hemorragia, e ele soltou um suspiro de alívio.
— Vai ficar boa — disse ele. — Pronto, espere um minuto. Não tenha medo! — Fez com que ela se segurasse na pia. Rapidamente, dobrou uma toalha seca ao comprido e amarrou-a na barriga dela, bem apertada, dobrando as pontas para dentro para ficar bem firme. — Isso é o melhor que existe para dor de barriga, o melhor mesmo. Sustenta a barriga e aquece-a. Meu pai também era médico, no exército indiano, e jurava que não havia coisa melhor. — Olhou para ela, atentamente. — É uma moça muito corajosa. Vai ficar boa. Pronta?
— Sim. Des... desculpe o que...
Ele abriu a porta. Peter Marlowe correu a ajudar. Puseram-na na cama.
Ela ficou largada ali, exausta, uma mecha de cabelo molhado na testa. O dr. Tooley afastou-a e fitou-a, pensativo.
— Acho, mocinha, que vamos interná-la numa casa de saúde, por um ou dois dias.
— Ah, mas... mas...
— Não há com que se preocupar. Mas é melhor darmos ao futuro bebê todas as chances, não é? E com duas crianças pequenas aqui para cuidar... Dois dias de descanso serão o bastante. — A voz áspera dele os tocou, acalmando-os. — Tomarei as providências e voltarei daqui a um quarto de hora. — Olhou para Peter Marlowe por sob as sobrancelhas espessas. — A casa de saúde fica em Kowloon. Isso evitará qualquer viagem longa para a ilha. Muitos de nós a usamos, e é boa, limpa, e equipada para qualquer emergência. Não quer arrumar uma maleta para ela? — Anotou o endereço e o telefone. — Pronto, mocinha, volto daqui a pouquinho. Vai ser melhor. Assim não terá que se preocupar com as crianças. Sei como isso angustia, quando se está doente. — Sorriu para ambos. — Não se preocupe com coisa alguma, ouviu, sr. Marlowe? Vou falar com o seu criado e pedir-lhe que ajude a manter tudo em ordem por aqui. E não se preocupem com dinheiro. — As rugas fundas ao redor dos seus olhos ficaram ainda mais fundas. — Somos muito filantrópicos, aqui em Hong Kong, com nossos jovens convidados.
Retirou-se. Peter Marlowe sentou-se na cama. Desconsolado.
— Espero que as crianças tenham chegado direitinho ao colégio — disse ela.
— Claro que sim. Ah Sop é ótima.
— Como vai se arranjar?
— Muito bem. Vou bancar a dona-de-casa por um dia ou dois.
Ela se moveu, cansada, apoiando-se numa das mãos e observando a chuva, e, para além dela, o hotel cinzento do outro lado da rua estreita, que ela detestava porque tirava a vista do céu.
— Eu... espero que não vá... custar muito — falou, a voz tênue.
— Não se preocupe com isso, Fleur. Não haverá problemas. A Associação dos Escritores pagará.
— Pagará mesmo? Aposto que não, Peter, não a tempo. Droga! O nosso... nosso orçamento já está tão apertado!
— Sempre posso fazer um empréstimo contando com o dinheiro do dane-se do ano que vem. Não...
— Oh, não! Não vamos fazer isso, Peter. Não podemos. Já resolvemos. Caso... contrário, você vai ficar enredado de... novo.
— Alguma coisa vai aparecer — disse ele, confiante. — mês que vem há uma sexta-feira 13, e isso sempre nos trouxe sorte. — Seu romance tinha sido publicado num dia 13, e entrara para a lista de best sellers num dia 13. Há três anos, quando eles estavam na pior, fora num dia 13 que ele assinara um bom contrato como roteirista. Seu primeiro trabalho como diretor fora confirmado num dia 13. E em abril do ano anterior, na sexta-feira 13, um dos estúdios de Hollywood comprara os direitos cinematográficos do seu romance por cento e cinqüenta e sete mil dólares. O agente ficara com dez por cento, e então Peter Marlowe dividira o restante pelos próximos cinco anos. Cinco anos de dinheiro do dane-se para a família: vinte e cinco mil a cada mês de janeiro. O suficiente, com controle, para despesas médicas e escolares, hipoteca, carro e outros pagamentos... cinco anos gloriosos de libertação de todos os problemas de costume. E liberdade de recusar um serviço de diretor-roteirista para vir passar um ano em Hong Kong, sem ganhar nada, mas livre para pesquisar o segundo livro. "Oh, Deus", pensou Peter Marlowe, subitamente aterrorizado. "Que diabo estou procurando afinal? Que diabo estou fazendo aqui?" — Meu Deus — falou, infeliz —, se eu não tivesse insistido para irmos àquela festa, isso não teria acontecido.
— Joss. — Ela deu um débil sorriso. — Joss, Peter. Lembre-se do que você está... sempre me dizendo. Destino, sorte, azar, é só joss, Peter. Ah, Meu Deus, como me sinto mal!