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10h01m

Orlanda Ramos abriu a porta do seu apartamento e pôs o guarda-chuva ensopado num porta-guarda-chuvas.

— Entre, Linc — disse, radiante. — Minha casa é sua casa — falou em português, traduzindo depois.

— Tem certeza? — perguntou Linc, sorrindo. Ela riu e falou, brincalhona:

— Ah! Isso vamos ver. É só um velho costume português, de oferecer a casa da gente.

Ela estava tirando a capa de chuva brilhante, na última moda. No corredor, ele fazia o mesmo com um impermeável ensopado e muito usado.

— Pronto, deixe que eu penduro — disse a moça. — Ah, e não ligue para o molhado, a amah enxugará. Entre.

Ele notou que a sala era jeitosa e impecável, muito feminina, de bom gosto e acolhedora. Ela fechou a porta atrás dele e pendurou seu casaco num gancho. Ele foi até as portas envidraçadas que davam para uma varandinha. O apartamento ficava no oitavo andar do Rose Court, na Kotewall Road.

— A chuva é sempre assim tão forte? — perguntou ele.

— Num tufão de verdade é muito pior. Talvez de trezentos a quatrocentos e cinqüenta milímetros num dia. Há também os deslizamentos de lama, e as áreas de recolonização são destruídas pelas águas.

Ele olhava para baixo, através da neblina. A maior parte da vista era bloqueada pelos prédios altos, construídos ao longo das estradas sinuosas cavadas na encosta das montanhas. Aqui e ali ele podia ver trechos da zona central e da orla marítima, lá embaixo.

— É como estar num avião, Orlanda. Numa noite gostosa deve ser fantástico.

— É. É, sim. Eu adoro isso aqui. Dá para se ver Kowloon inteira. Antes de construírem o Sinclair Towers, aquele prédio bem em frente, tínhamos a vista mais linda de Hong Kong.

Sabia que a Struan é dona do Sinclair Towers? Acho que Ian Dunross mandou construí-lo para irritar a Quillan. Quillan tem o apartamento de cobertura aqui no prédio... pelo menos, tinha.

— E atrapalhou a vista dele?

— Arruinou-a.

— Foi um ataque dispendioso.

— Não. Os dois prédios são altamente rendosos. Quillan me contou que tudo em Hong Kong é amortizado ao longo de três anos. Tudo. O negócio é possuir imóveis. Você podia ficar... — Ela riu. — Podia aumentar sua fortuna se quisesse.

— Se eu ficar, onde devo morar?

— Aqui em Mid Leveis. Subindo mais o Pico, é tudo muito úmido, as paredes suam, tudo fica mofado.

Ela tirou o lenço de cabeça, sacudiu a cabeleira, depois sentou-se no braço de uma cadeira, olhando para as costas dele, esperando pacientemente.

— Há quanto tempo você mora aqui? — indagou ele.

— Há cinco, quase seis anos. Desde que o prédio foi construído.

Ele se virou, apoiando-se na janela.

— É formidável — disse ele. — E você também é.

— Obrigada, gentil senhor. Quer um pouco de café?

— Por favor. — Linc Bartlett correu os dedos pelos cabelos, olhando para um quadro a óleo. — É um Quance?

— É. É, sim. Foi Quillan quem me deu. Espresso?

— Sim. Preto, por favor. Gostaria de entender mais de pintura... — Já ia acrescentar "Casey entende", mas se deteve e ficou vendo a moça abrir uma das portas. A cozinha era grande, moderna e muito bem equipada. — Puxa, está parecendo coisa de Casa e Jardim!

— Foi tudo idéia do Quillan. Ele adora comida e adora cozinhar. Tudo aqui foi ele que projetou... o resto do apartamento foi decorado por mim, embora tenha aprendido com ele a diferenciar o bom do cafona.

— Lamenta ter acabado tudo com ele?

— Sim e não. É o destino, carma. Ele... era joss. Tinha chegado a hora. — A serenidade dela emocionou-o. — Nunca poderia ter durado. Nunca. Não aqui. — Notou que uma tristeza a invadiu, momentaneamente, mas ela a afastou e se ocupou com a impecável máquina de café. Todas as prateleiras brilhavam. — Quillan era maníaco por ordem e limpeza, e graças a Deus eu peguei o hábito. Minha amah, Ah Fat, me deixa maluca.

— Ela mora aqui?

— Ah, sim, naturalmente, mas saiu para fazer compras... o quarto dela fica no fim do corredor. Pode dar uma olhada por aí, se quiser. Não vou demorar quase nada.

Cheio de curiosidade, ele aceitou a sugestão. Uma boa sala de jantar com uma mesa redonda de oito lugares. O quarto dela era branco e rosa, leve e delicado, com cortinas macias cor-de-rosa que caíam do teto ao redor da cama enorme. Havia flores, num arranjo delicado. Um banheiro moderno, ladrilhado e perfeito, com toalhas combinando. Um segundo dormitório, com livros, telefone, hi-fi e uma cama menor, tudo muito arrumado e de bom gosto.

"Ela é mais organizada do que Casey", pensou, lembrando-se da desarrumação gostosa e informal da sua casinha no vale de Los Angeles, tijolinhos vermelhos, pilhas de livros por toda parte, churrasqueira, telefones, copiadoras e máquinas de escrever elétricas. Aborrecido por ter pensado e por estar automaticamente comparando-as, voltou à cozinha com passos silenciosos, ignorando o quarto da amah. Orlanda concentrava-se na máquina de fazer café, sem perceber que ele agora a observava. Gostava de observá-la.

Pela manhã ligara para ela bem cedo, muito preocupado, acordando-a, querendo lembrar-lhe de procurar um médico, por via das dúvidas. Na confusão da véspera, quando ele e Casey tinham finalmente chegado em terra, ela já tinha ido para casa.

— Ah, obrigada, Linc, quanta gentileza em me telefonar! Não, estou bem — disse, atropelando as palavras, contente. — Pelo menos, agora estou. Você está bem? E Casey está bem? Ah, nem sei como agradecer, eu estava apavorada... Você salvou minha vida, você e Casey...

Tagarelaram alegremente ao telefone, e ela prometeu ir ao médico, de qualquer forma, e depois ele a convidou para tomarem café juntos. Ela aceitou imediatamente, e ele se mandou para o lado de Hong Kong, curtindo a chuvarada, a temperatura agradável. Tomaram o desjejum no topo do Mandarim, ovos Benedict, torradas e café, sentindo-se ótimos, Orlanda animadíssima e muito agradecida a ele e a Casey.

— Pensei que era uma mulher morta. Sabia que ia me afogar, Linc, mas estava assustada demais para gritar. Se você não tivesse agido tão rapidamente, eu jamais... Mal mergulhei a querida Casey estava lá, e eu estava viva de novo, e segura, antes de me dar conta do que acontecera...

Foi o melhor desjejum que já tivera. Ela o paparicou, em pequenas coisas, passando-lhe a torrada, servindo o café, sem que ele precisasse pedir, apanhando o guardanapo dele quando caiu, entretendo, e sendo entretida, confiante e feminina, fazendo com que ele se sentisse masculino e forte. E uma vez estendeu a mão e apoiou-a no braço dele, dedos longos, unhas bem-tratadas. A sensação daquele toque permanecia na sua pele. Depois, ele a levara para casa, e dera um jeito para que ela o convidasse a subir, e agora ali estava ele, observando-a concentrar-se na cozinha, saia de seda e botas de chuva de estilo russo, uma blusa solta ajustada na cintura minúscula, deixando seus olhos percorrerem-na.

"Meu Deus", pensou, "é melhor eu tomar cuidado. "

— Oh, não o tinha visto, Linc. Você tem o andar leve para um homem da sua altura!

— Desculpe.

— Não se desculpe, Linc! — O vapor chiou até um crescendo. Gotinhas negras começavam a encher as xícaras. — Um pouquinho de limão?

— Obrigado. E você?

— Não. Prefiro cappuccino.

Ela esquentou o leite, o barulho gostoso e o cheiro do café fantástico, depois levou a bandeja até a copa. Colheres de prata e porcelana fina, ambos cônscios do clima reinante no aposento, mas fingindo não haver nenhum.

Bartlett sorveu o seu café.

— Está uma delícia, Orlanda! O melhor que já tomei. Mas é diferente.

— É a pitada de chocolate.

— Gosta de cozinhar?

— Gosto, sim, muito. Quillan disse que eu era boa aluna. Adoro cuidar da casa e organizar festas, e Quillan sempre... — Havia uma pequena ruga no seu rosto, agora. Olhou diretamente para ele. — Parece que estou sempre falando nele. Desculpe, mas ainda é... ainda é automático. Ele foi o primeiro homem na minha vida... o único... portanto é uma parte indelével de mim.

— Não precisa explicar, Orlanda, eu compreen...

— Eu sei, mas quero explicar. Não tenho amigos de verdade, nunca falei dele com ninguém, nunca tive vontade, mas agora... bem, gosto de estar com você e... — Um sorriso imenso e repentino iluminou-a. — Mas é claro! Tinha me esquecido! Agora você é responsável por mim!

Ela riu e bateu palmas com as mãozinhas delicadas.

— O que quer dizer?

— Segundo os costumes chineses, você interferiu no joss, ou o destino. Foi, sim. Interferiu nos desígnios dos deuses. Você salvou minha vida, porque sem você eu teria morrido na certa, ou provavelmente teria morrido, mas cabia aos deuses decidir. Mas porque você interferiu e assumiu as responsabilidades deles, agora tem que cuidar de mim para sempre! É um costume chinês sensato e bom! — Os olhos dela dançavam, e ele nunca tinha visto brancos dos olhos tão brancos, pupilas castanho-escuras tão límpidas, ou um rosto tão agradável. — Para sempre!

— Negócio feito! — riu ele junto com a moça, a força da alegria dela a cercá-lo.

— Ah, que bom! — falou, depois ficou um pouco mais séria, e tocou-lhe o braço. — Estava só brincando, Linc. Você é tão galante... e não estou acostumada com tanta galanteria. Eu o libero formalmente... a minha metade chinesa o libera.

— Talvez eu não queira ser liberado. Imediatamente, notou que os olhos dela estavam maiores.

Sentia uma opressão no peito, o coração batendo mais rápido. O perfume dela o tantalizava. Abruptamente, a força entre eles se manifestou. Estendeu a mão e tocou o cabelo dela, sedoso e fino, sensual. Primeiro toque. Acariciando-a. Um pequeno arrepio, e logo estavam se beijando. Sentiu os lábios macios dela, acolhedores, só um pouco úmidos, sem batom, o gosto tão limpo e bom!

A paixão aumentou. A mão dele moveu-se para o seio dela, e o calor atravessou a seda. Ela estremeceu de novo e tentou debilmente recuar, mas ele a segurava com firmeza, o coração disparado, acarinhando-a. Depois as mãos dela dirigiram-se para o peito dele, e ali ficaram por algum tempo, tocando-o. Depois o empurraram de leve, e ela interrompeu o beijo, mas continuou junto dele, recobrando o fôlego, o coração disparado, tão intoxicada quanto ele.

— Linc... você...

— Você é tão gostosinha! — disse ele, suavemente, abraçando-a. Inclinou-se para beijá-la de novo, mas ela evitou o beijo.

— Espere, Linc, primeiro...

— Primeiro beijar, depois esperar!

Ela riu. A tensão foi rompida. Ele se xingou por ter cometido aquele erro, o seu desejo forte, atiçado pelo dela. Agora, o momento havia passado, e estavam esgrimindo de novo. A raiva o invadiu, mas, antes que ela tomasse conta dele, a moça se esticou e beijou-o com toda a perfeição. A raiva desapareceu imediatamente. Só o calor permaneceu.

— Você é forte demais para mim, Linc — disse, a voz roufenha, os braços ao redor do pescoço dele, mas cautelosamente. — Forte demais, atraente demais e simpático demais, e verdadeiramente, verdadeiramente devo-lhe a vida.

A mão dela acariciou-lhe o pescoço, e ele sentiu a carícia aquecer-lhe o sexo, enquanto ela erguia os olhos para ele, suas defesas estabelecidas, fortes, mas invioláveis. "Talvez", pensou ele.

— Primeiro conversar — disse ela, afastando-se —, depois, quem sabe, nos beijamos de novo.

— Ótimo — disse ele, dirigindo-se de imediato para perto dela, os dois agora de bom humor, mas ela tocou-lhe os lábios com o dedo, impedindo-o.

— Sr. Bartlett! Será que todos os americanos são como o senhor?

— Não — respondeu ele, prontamente, mas ela não engoliu a isca.

— É, eu sei. — A voz dela estava séria. — Eu sei. Era sobre isso que queria lhe falar. Café?

— Sim — disse, esperando, perguntando-se como agir, avaliando-a, desejando-a, sem conhecer direito essa selva, fascinado por ela e pela moça.

Ela serviu o café com cuidado. Tinha o mesmo gosto bom da primeira xícara. Ele estava controlado, embora a dor continuasse.

— Vamos para a sala — disse ela. — Eu levo a sua xícara. Ele se pôs de pé, a mão à volta da cintura dela. Ela não fez objeção, e ele sentiu que o contato dele lhe agradava, também. Sentou-se numa das poltronas fundas e chamou-a:

— Sente-se aqui — disse, batendo no braço da poltrona. — Por favor.

— Depois. Primeiro quero conversar. — Sorriu um tanto timidamente e sentou-se no sofá em frente, de veludo azul-escuro, combinando com o tapete chinês no chão de parquete lustroso. — Linc, só o conheço há dias, e não sou... não sou uma garota de programa. — Orlanda enrubesceu ao pronunciar essas palavras, e continuou, rapidamente, abafando o que ele pretendia dizer: — Desculpe, mas não sou. Quillan foi o primeiro e único, e não estou querendo um caso. Não quero uma trepada amistosa ou alucinada, e uma despedida tímida ou dolorosa. Aprendi a viver sem amor, não posso passar por tudo aquilo de novo. Amei Quillan, agora não amo. Tinha dezessete anos quando... começamos, e agora tenho vinte e cinco. Estamos separados há quase três anos. Tudo já acabou há três anos, e não mais o amo. Não amo ninguém, e sinto muito, sinto muito, mas não sou uma garota de programa.

— Nunca pensei que fosse — disse ele, sabendo no íntimo que era mentira, e amaldiçoou o seu azar. — Que diabo, o que pensa que sou?

— Acho que é um bom homem — retrucou ela, de pronto, com sinceridade —, mas na Ásia uma moça, qualquer moça, descobre muito depressa que os homens querem ir para a cama, e que é só o que querem. Desculpe, Linc, mas ir para a cama por ir não faz o meu gênero. Pode ser que venha a fazer, mas não faz agora. É, sou eurasiana, mas não sou... sabe o que estou querendo dizer?

— Claro — falou, e acrescentou, antes que pudesse se conter —, está querendo dizer que é intocável, proibida.

O sorriso dela desapareceu, e ela o fitou. O coração dele confrangeu-se ao notar sua tristeza.

— É — disse, levantando-se devagar, quase em lágrimas. — É, acho que sou.

— Meu Deus, Orlanda! — Ele foi para junto dela, abraçou-a. — Não quis ser grosseiro, não quis falar no mau sentido.

— Linc, não estou tentando provocar ou gozar com a sua cara ou bancar a difí...

— Compreendo. Que diabo, não sou criança e não estou forçando ou... nem uma coisa nem outra.

— Ah, mas que bom! Por um momento... — Ela ergueu os olhos para ele, e sua inocência derreteu-o. — Não está com raiva de mim, Linc? Quero dizer... não lhe pedi para subir, foi você que insistiu.

— Eu sei — disse ele, abraçando-a e pensando: "É verdade, e também é verdade que quero você agora, e que não sei o que você é, quem é, mas quero você. Mas o que quero de você? O que realmente quero? Quero magia? Ou só uma trepada? Você é a magia que venho buscando eternamente, ou mais uma fulana qualquer? Como se compara com a Casey? Será que devo medir a lealdade contra a seda da sua pele?" Lembrou-se do que Casey dissera, certa vez: "O amor consiste em muitas coisas, Linc. Apenas uma parte do amor é o sexo. Apenas uma. Pense em todas as outras partes. Julgue uma mulher pelo seu amor, sem dúvida, mas compreenda o que uma mulher é". Mas o calor dela o invadia, seu rosto contra o peito dele, e mais uma vez sentiu-se excitado. Beijou o pescoço dela, não querendo conter sua paixão.

— O que é você, Orlanda?

— Sou... só posso lhe dizer o que não sou — falou, na sua vozinha. — Não sou uma provocadora. Não quero que pense que estou tentando excitá-lo. Gosto de você, gosto muito, mas não sou... garota para uma noite.

— Eu sei. Meu Deus, quem meteu isso na sua cabeça?

— Viu que os olhos dela estavam úmidos. — Não precisa chorar. Mesmo. Está bem?

— Está bem. — Ela se afastou, abriu a bolsa, pegou um lencinho de papel e usou-o. — Ayeeyah, estou agindo como uma adolescente ou como uma vestal. Desculpe, mas foi tudo muito repentino. Eu não estava preparada para... senti que ia ceder. — Inspirou fundo. — As mais abjetas desculpas.

— Recusadas — disse ele, rindo.

— Graças a Deus! — Ela o fitou. — Na verdade, Linc, geralmente sei lidar com os fortes, os mansos, os astutos, até mesmo os muito astutos, sem muita dificuldade. Acho que já recebi todo tipo de cantada que é possível uma garota receber, e sempre achei que já tinha um plano de jogo automático para driblá-las quase antes que começassem. Mas com você...

— Hesitou, depois acrescentou: — Desculpe, mas com quase todo homem que conheço, bem, é sempre a mesma coisa.

— Isso é errado?

— Não, mas é exasperante entrar numa sala ou num restaurante e sentir aqueles olhares obscenos. Gostaria de saber como vocês, homens, se sentiriam. Você é moço e bonitão. O que faria se as mulheres agissem assim com você, em todo lugar a que fosse? Digamos que, quando atravessou o saguão do Victoria, hoje de manhã, tivesse visto que todas as mulheres de todas as idades, as vovós de dentadura postiça, as bruxas de peruca, as gordas, as feias, as grosseiras, todas elas lhe lançavam abertamente olhares lascivos, despindo-o mentalmente, procurando chegar perto de você, tentando passar a mão no seu traseiro, olhando abertamente para a sua virilha ou o seu peito, a maioria com mau hálito, a maioria suando e fedendo, e você sabendo que elas o imaginam na cama delas, entusiástica e alegremente fazendo as coisas mais íntimas com elas.

— Não gostaria nem um pouco. Casey disse a mesma coisa com palavras diferentes quando veio trabalhar comigo. Sei o que quer dizer, Orlanda. Pelo menos, posso imaginar. Mas é assim que o mundo é.

— É, e às vezes é horrível. Oh, não gostaria de ser homem, Linc, estou muito feliz sendo mulher. Mas, realmente, às vezes é um horror. Saber que a consideram apenas um recipiente que pode ser comprado, e que depois de tudo deve agradecer muito ao velho safado e corpulento de mau hálito, aceitar sua nota de vinte dólares e ir embora, esgueirando-se como um ladrão dentro da noite.

— Como foi que esse assunto começou? — disse ele, franzindo o cenho.

Ela riu.

— Você me beijou.

Ele abriu um sorriso, contente por estarem juntos.

— Isso mesmo. Vai daí que talvez eu tenha merecido o sermão que levei. Sou culpado das acusações. Bem, e quanto àquele beijo que me prometeu... — Mas não se mexeu. Estava tateando, sondando. "Tudo mudou agora", pensou. "Claro que queria ir para a cama com ela. Claro. Ainda quero, mais do que antes. Mas agora estamos mudados. Agora estamos num jogo diferente. Não sei se quero participar. As regras mudaram. Antes, era simples. Agora, quem sabe não é mais simples?" — Você é bonita. Já lhe disse isso? — falou, desviando-se do assunto que ela queria esclarecer.

— Eu ia falar sobre esse beijo. Sabe, Linc, a verdade é que não estava preparada para o modo como, falando francamente, como fui levada de roldão, acho que foi isso.

Ele deixou a frase no ar.

— Isso é bom ou ruim?

— Ambos. — Os olhos dela apertaram-se quando ela sorriu. — É, levada de roldão pelo meu próprio desejo. Você é demais, sr. Bartlett, e isso também é muito ruim, ou muito bom. Eu, eu gostei do seu beijo.

— Eu também. — Novamente, sorriu para ela. — E pode me chamar de Linc.

Depois de uma pausa, ela disse:

— Nunca me senti tão carente e envolvida, e por isso estou muito assustada.

— Não precisa ficar assustada — falou. Mas perguntava-se o que fazer. Seus instintos diziam-lhe que partisse. Seus instintos diziam-lhe que ficasse. O bom senso dizia-lhe que ficasse calado e esperasse. Podia ouvir seu coração bater e a chuva fustigar as vidraças. "É melhor eu ir", pensou. — Orlanda, acho que está...

— Tem tempo para conversar? Só um pouquinho? — perguntou, sentindo a indecisão dele.

— Claro. Claro que sim.

Ela afastou os cabelos do rosto.

— Queria lhe falar a meu respeito. Quillan era o patrão do meu pai em Xangai, e parece que o conheci toda a minha vida. Ajudou a pagar meus estudos, especialmente nos Estados Unidos, e sempre foi muito bondoso para mim e para minha família... tenho quatro irmãs e um irmão, e sou a mais velha, e estão todos em Portugal, agora. Quando voltei a Xangai, vinda de San Francisco, após me formar, estava com dezessete, quase dezoito anos, e... Bem, ele é um homem atraente, ao menos para mim, embora muito cruel, às vezes. Muito.

— Como?

— Acredita em vingança pessoal, que a vingança é um direito do homem, se ele for homem. E Quillan é homem à beça. Sempre foi bom para mim, ainda é. — Olhou-o atentamente. — Quillan ainda me dá mesada, ainda paga este apartamento.

— Não precisa me contar nada.

— Eu sei. Mas quero contar... se você quiser ouvir. Depois, pode decidir.

Ele a olhou atentamente.

— Está bem.

— Sabe, parte do problema é o fato de eu ser eurasiana. A maioria dos europeus nos despreza, aberta ou secretamente, especialmente os britânicos daqui... Linc, acabe de me ouvir. A maioria dos europeus despreza os eurasianos. Todos os chineses os desprezam. Assim, estamos sempre na defensiva, quase sempre desconfiados, quase sempre suspeitos de sermos ilegítimos, e sem dúvida uma trepada fácil. Deus, como odeio essa expressão! Como é nojenta, vulgar e barata! E reveladora da mentalidade do homem americano, que sempre a usa... embora tenha sido nos Estados Unidos, estranhamente, que adquiri respeito próprio e superei o meu complexo de culpa eurasiano. Quillan me ensinou muita coisa, e me formou, de muitas maneiras. Devo muito a ele. Mas não o amo. Era o que eu queria dizer. Quer mais um pouco de café?

— Quero, sim, obrigado.

— Vou fazer café fresco.

Ela se levantou, o andar inconscientemente sensual, e novamente ele amaldiçoou o seu azar.

— Por que rompeu com ele? Gravemente, ela lhe contou sobre Macau.

— Eu me deixei persuadir a ir para a cama com o tal sujeito, e dormi com ele, embora nada tenha acontecido, nada... o pobre coitado estava bêbado e impotente. No dia seguinte, fingi que ele tinha sido ótimo. — A voz dela era calma e natural, mas podia-se sentir a sua angústia. — Nada aconteceu, mas alguém contou a Quillan. Ele ficou furioso, e com razão. Eu não tenho justificativa. Foi... Quillan estava fora. Sei que isso não é desculpa, mas eu tinha aprendido a gostar de sexo e... — Uma sombra toldou-lhe o semblante. Deu de ombros. — Joss. Carma. — Na mesma voz apagada ela lhe contou a vingança de Quillan. — É o modo de ele ser, Linc. Mas tinha razão de estar furioso comigo. Eu estava errada. — O vapor chiou, e o café começou a gotejar. As mãos dela pegavam xícaras limpas, biscoitos feitos em casa e guardanapos limpos e engomados enquanto falava, mas os pensamentos deles estavam concentrados no triângulo amoroso.

— Eu ainda me encontro com ele, de vez em quando. Só para conversar. Agora somos apenas amigos, ele é bom para mim, e faço o que quero, saio com quem quero. — Desligou o aparelho e ergueu os olhos para ele. — Nós... tivemos uma filha, há quatro anos. Eu queria o bebê, ele não. Disse que eu poderia ter a criança, mas na Inglaterra. Ela agora está em Portugal, com meus pais... meu pai é aposentado, e ela mora com eles — concluiu ela, uma lágrima rolando-lhe pela face.

— Foi idéia dele manter a criança lá?

— Foi. Mas ele está certo. Uma vez por ano vou até lá. Meus pais... minha mãe queria a criança, pediu para criá-la. Quillan também é generoso com eles. — Às lágrimas agora corriam pelo seu rosto, mas o choro era silencioso. — Agora você já sabe de tudo, Linc. Nunca contei a mais ninguém, só a você, e agora você sabe que não sou, não fui uma amante fiel, e não sou, não sou boa mãe e, e...

Ele foi para junto dela, abraçou-a bem apertado e sentiu que ela se derretia de encontro a ele, tentando sufocar os soluços, agarrando-se a ele, assimilando o seu calor e a sua força. Ele a acalmava, abraçando-a, o corpo contra o dele, inteirinho, quente, macio, tudo se encaixando.

Quando ela conseguiu se controlar, ergueu-se na ponta dos pés, beijou-o levemente, mas com grande carinho, e olhou para ele.

Ele retribuiu o beijo.

Olharam-se nos olhos, profundamente, depois beijaram-se de novo. A paixão aumentou, e parecia uma eternidade, mas não era, e ambos ouviram a chave na fechadura na mesma hora. Separaram-se, tentando recobrar o fôlego, escutando as batidas de seus corações, e ouvindo a voz áspera da amah, vinda do corredor:

— Weyyyyy?

Debilmente, Orlanda endireitou o penteado, deu ligeiramente de ombros, como a pedir desculpas.

— Estou na cozinha — disse em xangaiense. — Por favor, vá para o seu quarto até que eu a chame.

— Ah, quer dizer que o demônio estrangeiro ainda está aqui? E as minhas compras? Fiz algumas compras!

— Deixe junto à porta!

— Ah, está bem, Jovem Patroa — respondeu a amah, e se afastou, resmungando. A porta bateu com força às suas costas.

— Elas sempre batem as portas? — perguntou Linc, o coração ainda disparado.

— É, é, parece que sim. — Ela voltou a pôr a mão no ombro dele, as unhas acariciando o seu pescoço. — Desculpe.

— Não há do que se desculpar. Vamos jantar? Ela hesitou.

— Se você levar a Casey.

— Não. Só você.

— Linc, acho melhor não. Agora não estamos em perigo. É melhor dizermos adeus agora.

— Jantar. Às oito. Virei buscá-la. Você escolhe o restaurante. Comida de Xangai.

Ela fez que não com a cabeça.

— Não. Já está mexendo demais comigo. Desculpe.

— Virei buscá-la às oito. — Bartlett beijou-a de leve, depois foi até a porta. Ela apanhou o impermeável dele e lhe entregou. — Obrigado — falou Linc, meigamente. — Não há perigo, Orlanda. Tudo vai ficar numa boa. Até às oito. Está bem?

— É melhor não.

— Quem sabe? — Ele sorriu para ela, estranhamente. — Isso seria joss... carma. Temos que nos lembrar dos deuses, não? — Ela não respondeu. — Estarei aqui às oito.

Ela fechou a porta atrás dele, caminhou devagar até a poltrona e se sentou, imersa em pensamentos, imaginando se o teria afugentado, apavorada de o ter feito. Imaginando se ele realmente voltaria às oito, e, se voltasse, como poderia mantê-lo afastado, como manobrá-lo até que estivesse louco de desejo, louco o bastante para casar-se com ela.

Seu estômago deu voltas. "Tenho que agir depressa", pensou. "Casey o mantém cativo, enredou-o, e minha única saída é comida gostosa, lar e carinho, carinho, carinho, carinho, e tudo o que Casey não é. Mas nada de cama. Foi assim que Casey o prendeu. Tenho que fazer o mesmo.

"Então, ele será meu.”

Orlanda sentia-se fraca. Tudo saíra perfeito, concluiu. Depois, novamente se lembrou do que Quillan dissera: "É a lei imemorial que todo homem é forçado pelas circunstâncias a se casar, preso na armadilha da sua luxúria, do seu sentimento de posse, da avareza, do dinheiro, do medo, da preguiça, ou seja lá o que for, mas forçado. E nenhum homem jamais se casa de bom grado com a sua amante".

"É. Quillan está certo, mais uma vez", pensou. "Mas está errado a meu respeito. Não vou me contentar com a metade do prêmio. Vou tentar conquistá-lo todo. Vou ter não apenas o Jaguar, e este apartamento, e tudo o que ele contém, mas uma casa na Califórnia e, principalmente, fortuna americana, longe da Ásia, onde não serei mais uma eurasiana, mas uma mulher como qualquer outra, bela, despreocupada e carinhosa.

"Ah, serei para ele a melhor mulher que um homem poderia ter. Atenderei a todos os seus desejos, farei o que ele quiser. Senti sua força, e serei boa para ele, maravilhosa para ele.”

— Ele já foi? — Ah Fat entrou na sala sem fazer barulho, arrumando as coisas automaticamente, enquanto falava no dialeto de Xangai. — Bom, muito bom. Quer que faça um chá? Deve estar cansada. Um pouco de chá, heya?

— Não. Sim, sim, faça um chá, Ah Fat.

— Faça um chá! Trabalho, trabalho, trabalho! — A velha foi arrastando os pés até a cozinha. Usava calças pretas tipo bombacha, uma bata branca e uma trança comprida que lhe descia pelas costas. Cuidava de Orlanda desde o seu nascimento. — Dei uma boa olhada nele, lá embaixo, quando chegaram. Ele é bem apresentável para uma pessoa incivilizada — disse, com ar especulador.

— É? Não a vi. Onde você estava?

— Junto das escadas. — Ah Fat casquinou. — Eeeee, tomei o cuidado de me esconder direitinho, mas queria olhar para ele. Hum! Você manda a sua pobre escrava para a rua na chuva, com seus pobres ossos velhos, quando pouco importa se estou aqui ou não? Quem vai levar os seus doces e chá ou bebidas na cama quando você acabar seus afazeres, heya?

— Ora, cale a boca, cale a boca!

— Não mande a sua pobre e velha mãe calar a boca! Ela sabe como cuidar de você! Ah, sim, Pequena Imperatriz, mas era bem evidente que em ambos o yang e o yin estavam prontos para combater. Vocês dois pareciam tão contentes quanto gatos num barril de peixes! Mas não havia necessidade de eu sair!

— Os demônios estrangeiros são diferentes, Ah Fat. Queria ficar sozinha com ele. Os demônios estrangeiros são tímidos. Agora, vá fazer o chá e fique quieta, senão mando você à rua de novo!

— Ele vai ser o novo Patrão? — perguntou Ah Fat, esperançosa. — Está mais do que na hora de ter um Patrão. Não é bom para uma pessoa não ter um Talo Ardente às portas do Portão de Jade. O seu Portão vai enferrujar e ficar seco como pó, com o pouco uso que tem! Ah, esqueci de lhe dar duas notícias. Parece que os Lobisomens são estrangeiros de Macau; atacarão de novo antes da lua nova. É o que se fala. Todos juram que é a verdade. E a outra notícia é que o Velho Tok

Tosse-Tosse, da barraca de peixe, disse que este demônio estrangeiro da Montanha Dourada tem mais ouro que o Tung Eunuco! — Tung era um eunuco lendário da corte imperial da Cidade Proibida de Pequim, cuja ambição de ouro era tão imensa que nem toda a China podia satisfazê-la; era tão odiado que o imperador seguinte empilhou sobre ele toda a sua fortuna ilícita, até que o peso do ouro o esmagou, e ele morreu. — Você já não é mais tão jovem, Mãezinha! Devemos levar isso a sério. Ele vai ser o tal?

— Espero que sim — disse Orlanda, devagar.

"Ah, sim", pensou fervorosamente, tonta de ansiedade, sabendo que Linc Bartlett era a oportunidade mais importante de toda a sua vida. Abruptamente, ficou apavorada outra vez de ter exagerado o seu jogo, e que ele não fosse voltar. Desatou a chorar.

Oito andares abaixo, Bartlett atravessou o pequeno saguão e saiu para se reunir à meia dúzia de pessoas que esperavam impacientes por um táxi. A chuva torrencial caía agora constantemente, e descia do ressalto de concreto para se misturar à torrente que descia, como um pequeno rio, pela Kotewall Road, alagando as sarjetas, os bueiros há muito entupidos, carregando consigo pedras, lama e vegetação que despencavam das encostas e ladeiras altas. Carros e caminhões que subiam ou desciam cuidadosamente a rua íngreme espadanavam nos redemoinhos e torvelinhos, os limpadores de pára-brisa funcionando à toda, os vidros embaçados.

Do outro lado da rua, a montanha se erguia, muito íngreme, e Bartlett viu a infinidade de fios de água que cascateavam pelas altas barragens de concreto que escoravam a terra. Ervas daninhas nasciam entre as rachaduras. Parte de um torrão ensopado se destacou e veio caindo para se juntar a mais entulho, pedras e lama. Um dos lados da barragem era uma garagem murada, e, subindo a encosta, havia uma mansão chinesa meio escondida, toda enfeitada, com um telhado de ladrilhos verdes e dragões nas empenas. Ao lado dela havia o andaime de uma construção e escavações para um prédio de muitos andares. Ao lado, outro prédio de apartamentos, cujo topo desaparecia entre a neblina.

"Tantas construções!", falou Bartlett com seus botões. "Talvez devamos nos meter nesse ramo, aqui. Gente demais catando terra de menos significa lucro, muito lucro. E amortizado ao longo de três anos... Meu Deus!"

Um táxi se aproximou, indiferente às poças d'água. Alguns passageiros saltaram e outros entraram, resmungando. Um casal chinês saiu da porta do prédio e foi passando por ele e pelos outros, até a frente da fila... uma matrona tagarela e barulhenta, com um imenso guarda-chuva, um impermeável caro por cima do cheong-sam, o marido manso e humilde ao lado. "Foda-se, boneca", pensou Bartlett, "não vai tirar a minha vez. " Ajeitou-se numa posição melhor. Seu relógio marcava dez e trinta e cinco.

"E agora?", perguntou-se. "Não deixe que Orlanda o perturbe!

"A Struan, ou Gornt?

"Hoje é dia de escaramuça, amanhã — sexta-feira —, amanhã é dia de arrasar, o fim de semana é para reagrupar as forças, segunda é o dia do ataque final, e lá pelas três horas devemos conhecer o vencedor.

"Quem estou querendo que vença? Dunross ou Gornt?

"Gornt é um cara de sorte... foi um cara de sorte", pensou, confuso. "Meu Deus, Orlanda é uma parada! Será que a teria largado, se fosse ele? Claro. Claro que sim. Bem, talvez não... nada aconteceu. Mas teria me casado com ela no minuto em que isso fosse possível, e não mandado a nossa filha para Portugal... Gornt é um filho da puta safado. Ou danado de esperto. Qual dos dois?

"Ela botou as cartas na mesa direitinho... como a Casey, mas de modo diferente, embora o resultado seja o mesmo. Agora tudo está complicado, ou simples. Qual dos dois?

"Será que quero me casar com ela? Não.

"Quero deixá-la na mão? Não.

"Quero ir para a cama com ela? Claro. Então, planeje uma campanha, manobre até levá-la para a cama, sem compromisso. Não faça o jogo da vida pelas regras femininas. Vale tudo na guerra e no amor. E o que é o amor, afinal de contas? É como disse a Casey: o sexo é apenas uma parte dele.

"Casey. E quanto a ela? Não vai ser preciso esperar muito pela Casey, agora. E então vai ser a cama, o casamento, um adeus, ou o quê? Deus me livre de me casar de novo. Uma vez só já foi terrível. É estranho, há muito tempo que não penso nela. "

Quando Bartlett voltara do Pacífico, em 45, conhecera-a em San Diego, e casara-se em uma semana, cheio de amor e ambição. Jogara-se de corpo e alma no ramo de construções, no sul da Califórnia, começando o seu próprio negócio. A época era adequada na Califórnia, todo tipo de construção florescendo. O primeiro filho nascera dali a dez meses, o segundo um ano mais tarde, e o terceiro dez meses depois. E ele trabalhando o tempo todo, inclusive sábados e domingos, curtindo o trabalho. Era moço e forte, e estava tendo um êxito imenso. Mas estavam se afastando cada vez mais. Depois as brigas e as lamentações, e o "Você não tem mais tempo para passar conosco, e fodam-se os negócios, não me importam os negócios, e quero ir para a França e Roma, e por que você não vem cedo para casa?, você tem uma namorada, sei que tem uma namorada... "

Mas não havia namorada, só trabalho. E então, certo dia, a carta do advogado. Pelo correio.

"Merda", pensou Bartlett com raiva, sentindo ainda a mesma dor. "Mas, sou apenas um entre milhões, e já aconteceu antes e vai acontecer outra vez. Mesmo assim, uma carta dela, um telefonema dela, ainda machuca. Machuca e custa dinheiro. Custa um bocado de dinheiro, e os advogados ficam com a maior parte, uma boa parte, e habilmente atiçam o fogo entre nós para lucrarem ainda mais. Claro. Somos o ganha-pão deles, todos somos! Do berço à maldita sepultura, os advogados fomentam encrencas e se alimentam do nosso sangue. Merda. Os advogados é que são a verdadeira praga dos Estados Unidos. Só encontrei quatro bons em toda a minha vida! E o resto? São parasitas de todos nós. Ninguém está a salvo!

"É. Aquele filho da mãe do Stone! Ganhou uma fortuna à minha custa, transformou-a numa megera, virou-a, e às crianças, contra mim para todo o sempre e quase me destruiu, e ao meu negócio. Espero que o filho da mãe apodreça por toda a eternidade!"

Com esforço, Bartlett desviou o pensamento da ferida aberta e olhou para a chuva. Lembrou-se de que era apenas dinheiro, e que estava livre, livre, e isso o fez sentir-se ótimo.

"Deus! Estou livre, e existem Casey e Orlanda. "

Orlanda.

"Meu Deus!", pensou, a dor do desejo ainda presente, "eu estava doidão ainda há pouco. E Orlanda também. Puta merda, já é ruim o bastante com a Casey, mas agora são duas. "

Há dois meses não dormia com uma garota. A última vez fora em Londres, um encontro casual, um jantar casual, depois a cama. Ela estava hospedada no mesmo hotel, era divorciada, e não tinha havido problema. "O que foi que Orlanda disse? Uma trepada amistosa e um adeus encabulado? É, isso aí. Mas aquela moça não era encabulada. "

Ficou na fila, satisfeito, sentindo-se imensamente vivo, olhando a chuvarada, achando fantástico o cheiro da chuva na terra, a rua atulhada de pedras e lama, a torrente fazendo redemoinhos numa fenda grande do calçamento, e dançando no ar como cascatas de um riacho.

"A chuva vai trazer muita encrenca", pensou. "E Orlanda é muita encrenca, meu chapa. Claro. Mesmo assim, tem que haver um meio de levá-la para a cama. O que há nela que o deixa assim pirado? Parte é o rosto dela, parte é o corpo, parte é o olhar, parte é... Deus, admita, ela é toda mulher, e toda encrenca. É melhor esquecer Orlanda. Juízo, juízo, meu chapa. Como disse Casey, a fulana é dinamite!"


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