28
10h50m
Por entre um céu ligeiramente nublado, os raios de sol caíam sobre Aberdeen. O ar estava pesado, a temperatura era de trinta e três graus, com noventa por cento de umidade. A maré estava baixa. O cheiro de algas marinhas, peixes podres e baixios de lama aumentava o peso opressivo do dia.
Havia quinhentas ou mais pessoas carrancudas e impacientes, empurrando-se umas às outras, tentando furar o bloqueio das barreiras à frente, erigida pela polícia diante da agência do Ho-Pak. As barreiras permitiam o acesso de uma só pessoa de cada vez. Homens e mulheres de todas as idades, alguns com crianças de colo, atropelavam-se constantemente, ninguém esperando a sua vez, todos tentando mover-se para a frente, para o começo da fila.
— Olhe só para esses cretinos — dizia o inspetor-chefe Donald C. C. Smyth. — Se ficassem na fila, e não se amontoassem tanto, todos passariam mais depressa, poderíamos deixar um policial aqui para manter a ordem, e o resto de nós poderia ir almoçar, ao invés de mandar chamar o pelotão anti-motim. Faça-o!
— Sim, senhor — falou o sargento comissionado Mok, educadamente.
"Ayeeyah", pensava enquanto se dirigia para o carro-patrulha, "o pobre idiota ainda não entende que nós, chineses, não somos demônios estrangeiros burros — ou demônios do mar do Leste — para ficarmos em fila pacientemente, durante horas. Ah, não, nós, pessoas civilizadas, compreendemos a vida, e é cada um por si." Ligou o radiotransmissor da polícia.
— Sargento comissionado Mok! O inspetor-chefe quer um pelotão antimotim aqui, e rapidinho. Estacionem logo atrás do mercado de peixe, mas fiquem em contato.
— Sim, senhor.
Mok suspirou e acendeu um cigarro. Mais barreiras haviam sido levantadas do outro lado da rua, diante das agências de Aberdeen do Blacs e do Victoria, e mais outras diante do Ching Prosperity, dobrando a esquina. Seu uniforme caqui estava amassado, e havia grandes anéis de suor nas suas axilas. Estava muito preocupado. Aquela multidão era muito perigosa, e ele não queria uma repetição da véspera. Se o banco fechasse as portas antes das três, tinha certeza de que o povo destroçaria o local. Sabia que, se ainda tivesse dinheiro lá dentro, seria o primeiro a arrombar a porta para pegar o seu dinheiro. Ayeeyah, pensou, muito grato pela autoridade do Cobra, que fizera chegar às mãos deles todo o seu dinheiro, até o último tostão, pela manhã.
— Danem-se todos os bancos! — Mok resmungou, sem se dirigir a ninguém em especial. — Todos os deuses, que o Ho-Pak pague a todos os seus clientes hoje! Que falhe amanhã! Amanhã é meu dia de folga, portanto que falhe amanhã!
Apagou o cigarro.
— Sargento!
— Sim?
— Olhe ali! — exclamou, ansioso, o jovem detetive à paisana que se aproximava do sargento comissionado Mok apressadamente. Usava óculos e tinha vinte e poucos anos. — Junto do Victoria. A velha. A velha amah.
— Onde? Ah, sim, estou vendo.
Mok observou-a durante algum tempo, mas nada notou de anormal. Então, viu-a atravessar célere a multidão e sussurrar para um jovem valentão, vestindo jeans, que estava encostado a um gradil. Ela apontou para um velho que acabara de sair do banco. Imediatamente, o valentão saiu em seu encalço, e a velha amah foi abrindo caminho, espremendo-se e xingando, de volta ao começo da barreira, de onde podia ver quem entrava e quem saía.
— É a terceira vez, senhor — falou o jovem detetive. — A velha amah indica alguém que saiu do banco para o valentão, e lá vai ele. Dentro de alguns minutos, está de volta. É a terceira vez. Estou certo de que o vi passar algo para as mãos dela, uma das vezes. Acho que era dinheiro.
— Bom! Muito bom, Wu Óculos. Tem que ser um golpe das tríades. A bruxa velha provavelmente é mãe dele. Siga o jovem filho da mãe, e eu vou interceptá-lo pelo outro lado. Não o deixe vê-lo!
O sargento comissionado Mok dobrou a esquina, descendo um beco tumultuado, cheio de barracas, camelôs e lojas abertas, movendo-se cuidadosamente por entre a multidão. Virou noutro beco bem a tempo de ter uma rápida visão do velho entregando algum dinheiro. Esperou até que Wu tivesse bloqueado a outra extremidade do beco, depois adiantou-se, caminhando pesadamente.
— O que está se passando aqui?
— Como? O quê? Nada, nada mesmo — falou o velho nervosamente, o suor escorrendo-lhe pelo rosto. — O que é? Não fiz nada!
— Por que deu dinheiro para esse rapaz, heya? Eu o vi lhe dar dinheiro! — O jovem desordeiro devolveu o olhar de Mok com insolência, sem medo, sabendo que era Kin Bexiguento, um dos Lobisomens, que trazia Hong Kong inteira apavorada. — Ele o está abordando? Tentanto extorquir-lhe dinheiro? Parece um tríade!
— Oh! Eu... eu... eu lhe devia quinhentos dólares. Acabei de sacar do banco, e paguei. — O velho estava evidentemente apavorado, mas continuou: — Ele é meu primo.
Começou a juntar gente. Alguém escarrou e cuspiu.
— Por que está suando tanto?
— Todos os deuses fodam todos os porcos! Está quente! Todo mundo está suando. Todo mundo!
— Porra, é verdade — exclamou alguém.
Mok voltou a atenção para o jovem, que esperava com ar truculento.
— Como se chama?
— Sexto Filho Wong!
— Mentiroso! Esvazie os bolsos!
— Mas não fiz nada! Conheço a lei. Não pode revistar as pessoas sem um manda...
Mok estendeu o punho de aço e torceu o braço do jovem, e ele guinchou. A multidão achou graça. Ficaram calados quando Wu Óculos apareceu, surgido do nada, para revistá-lo. Mok segurava firme Kin Bexiguento. Outra onda de inquietação percorreu os espectadores, ao verem os maços de notas e as moedas.
— Onde arranjou tudo isso? — rosnou Mok.
— É meu. Sou... sou agiota, e estou recolhendo as por...
— Onde fica a sua loja?
— Na... no Terceiro Beco, transversal à Aberdeen Road.
— Vamos lá, vamos dar uma olhada.
Mok soltou o rapaz, que, destemidamente, ainda olhava para ele com raiva.
— Primeiro dê-me o meu dinheiro! — Virou-se para o povo, pedindo apoio. — Vocês o viram tirá-lo de mim! Sou um agiota honesto! Eles são criados dos demônios estrangeiros, e vocês todos os conhecem! A lei dos demônios estrangeiros proíbe que se revistem cidadãos honestos!
— Devolva-lhe a porra do dinheiro! — berrou alguém.
— Se é um agiota...
O pessoal começou a discutir entre si, e então Kin Bexiguento viu uma pequena abertura no meio do povo, e se jogou nela. A multidão se abriu para deixá-lo passar, e ele correu beco acima, sumindo no trânsito. Mas quando Wu Óculos saiu no seu encalço, ela voltou a se fechar e empurrou-o, ficando um pouco mais ameaçadora. Mok mandou que ele voltasse. Na confusão momentânea, o velho desaparecera. Cansado, Mok falou:
— Deixe o bosta sem mãe ir embora! Era só um tríade... outro bosta de tríade que se aproveita das pessoas que respeitam a lei.
— O que vai fazer com a porra do dinheiro dele? — gritou alguém, do fundo da multidão.
— Vou dá-lo a um asilo de velhas — gritou Mok com rudeza igual. — Vá defecar na orelha da sua avó!
Alguém riu, a multidão começou a se dispersar, e cada um foi cuidar da sua vida. Num instante, Mok e Wu Óculos estavam parecendo pedras num rio, com os transeuntes redemoinhando ao seu redor. Logo que voltaram à rua principal, Mok enxugou a testa.
— Dew neh loh moh!
— É. Por que são assim, sargento? — perguntou o jovem detetive. — Estamos apenas tentando ajudá-los. Por que o velho simplesmente não admitiu que o filho da mãe do tríade estava lhe extorquindo dinheiro?
— Não se aprende sobre turbas nos livros da escola — disse Mok, bondosamente, sabendo que o jovem estava ansioso por ter êxito. Wu Óculos era novo, um dos recém-formados pela universidade que entrara para a polícia. Não pertencia à unidade de Mok. — Seja paciente. Nenhum deles quis ter nada a ver conosco porque somos da polícia, e todos eles ainda acreditam que jamais os ajudaremos, apenas a nós mesmos. Tem sido a mesma coisa na China desde o primeiro policial.
— Mas estamos em Hong Kong — falou o jovem, com orgulho. — Somos diferentes. Somos policiais britânicos.
— É.
Mok sentiu uma friagem repentina. Não queria desiludir o rapaz. "Eu também era leal, leal à rainha e à bandeira quai loh. Aprendi outra coisa. Quando precisei de ajuda, proteção e segurança, não obtive nada. Nem uma só vez. Os britânicos eram ricos e poderosos, mas perderam a guerra para aqueles Demônios do Mar do Leste. A guerra os desmoralizou, os humilhou e pôs os grandes tai-pans na Prisão Stanley, como ladrões comuns... até mesmo os tai-pans da Casa Nobre e do Grande Banco, até mesmo Sua Excelência, o governador... trancafiou-os como criminosos comuns, em Stanley, com todas as suas mulheres e filhos, e tratou-os como se fossem pedaços de cocô!
"E após a guerra, embora houvessem humilhado os Demônios do Leste, nunca recuperaram o seu poder, ou o seu prestígio.
"Agora, em Hong Kong e em toda a Ásia, não é mais a mesma coisa, e nunca será como antes. Agora, a cada ano que passa, os britânicos ficam mais pobres e menos poderosos. E como poderão proteger a mim e a minha família dos malfeitores, se não forem ricos e poderosos? Pagam-me uma ninharia, e tratam-me como comida de cachorro! Agora, minha única proteção é o dinheiro, dinheiro em ouro para podermos fugir, se for o caso... ou dinheiro em terras e casas, se não for necessário fugir. Como posso educar meus filhos na Inglaterra ou nos Estados Unidos sem dinheiro? Será que o governo, agradecido, pagará? Nem uma merda duma moeda, e no entanto querem que arrisque a minha vida para manter as ruas livres dos merdas dos tríades, dos batedores de carteiras e montes de bosta leprosos e amotinados!"
Mok estremeceu. "A única segurança para a minha família está nas minhas mãos, como sempre. Oh, como são sábios os ensinamentos dos nossos ancestrais! O comissário de polícia foi leal comigo, quando precisei de dinheiro, mesmo para a passagem de terceira classe, para o meu filho ir estudar nos Estados Unidos? Não, mas o Cobra foi. Emprestou-me dez mil dólares, com juros de apenas dez por cento, e então meu filho viajou como um mandarim, de avião, pela Pan American, com dinheiro para pagar três anos de anuidade escolar, e agora é arquiteto formado com Cartão Verde, e no mês que vem terá um passaporte americano, e depois poderá voltar para cá, e ninguém poderá tocar nele. Poderá ajudar a proteger a minha geração e protegerá a sua própria, e a do seu filho, e a dos seus netos!
"É, o Cobra me deu dinheiro, pago há muito tempo com juros integrais, tirados do dinheiro que me ajudou a ganhar. Serei leal ao Cobra... até que mude de rumo. Um dia mudará, todos os quai loh mudam, todos os cobras mudam, mas agora sou um Grande Dragão, e nem os deuses nem os demônios, nem o Cobra em pessoa pode ferir minha família ou minhas contas bancárias na Suíça e no Canadá."
— Vamos indo, é melhor voltarmos, jovem Wu Óculos — disse, bondosamente. E quando chegou junto às barreiras, contou ao inspetor-chefe Smyth o que acontecera.
— Ponha o dinheiro na nossa caixinha, sargento — falou Smyth. — Encomende um grande banquete para os nossos rapazes, hoje.
— Sim, senhor.
— Foi o oficial detetive Wu? O tal que quer entrar para o sei?
— Sim, senhor. Óculos é muito dedicado. Smyth mandou chamar Wu e elogiou-o.
— Bem, e onde está a velha amah?
Wu a indicou. Viram-na olhar para a esquina que o valentão dobrara, esperando, impaciente. Depois de um minuto, ela saiu de dentro do aglomerado de gente e se afastou, resmungando obscenidades.
— Wu — ordenou Smyth —, siga-a. Não deixe que o veja. Ela o levará ao sacaninha que fugiu. Tome cuidado, e quando ela chegar lá, ligue para o sargento.
— Sim, senhor.
— Não corra nenhum risco... talvez possamos pegar o bando todo. Tem que haver um bando.
— Sim, senhor.
— Pode ir. — Eles o observaram sair atrás da velha. — Esse rapaz vai ser bom. Mas não para nós, hem, sargento?
— Não, senhor.
— Acho que vou recomendá-lo para o sei. Talvez... Subitamente fez-se um silêncio ominoso, depois ouviram-se gritos e um rugido irado. Os dois policiais dobraram correndo a esquina. Na sua ausência, a turba afastara parte das barricadas, dominando os quatro policiais, e agora estava invadindo o banco. O gerente Sung e seu assistente tentavam em vão fechar as portas, contra a turba vociferante. As barricadas começaram a ceder.
— Chame o pelotão antimotim!
Mok saiu correndo para o carro-patrulha. Destemidamente, Smyth correu para a frente da fila, com o seu megafone. O tumulto abafou sua ordem para pararem de brigar. Mais reforços vieram correndo do outro lado da rua. Rápida e eficientemente, acorreram em auxílio de Smyth, mas a turba ganhava forças. Sung e seus caixas bateram a porta, mas ela foi aberta de novo pela violência do povo. Então, surgiu um tijolo do meio da multidão, que quebrou uma das vidraças. Houve um rugido de aprovação. As pessoas da frente estavam tentando sair do caminho, e as de trás estavam tentando chegar à porta. Mais tijolos foram arremessados contra o prédio, depois pedaços de madeira tirados de um edifício em construção próximo. Outra pedra varou a vidraça, que se estilhaçou totalmente. Rugindo, a turba avançou. Uma moça caiu e foi pisoteada.
— Vamos — berrou Smyth —, ajudem-me aqui! Agarrou uma das barreiras e, junto com quatro outros policiais, usou-a como escudo, empurrando-a contra a frente da turba, forçando-a a recuar. Fazendo-se ouvir acima do vozerio, berrou para que eles usassem os ombros, e lutaram contra a multidão enlouquecida. Outros policiais seguiram-lhe o exemplo. Mais tijolos foram arremessados para dentro do banco, e então começou a gritaria:
— Matem os malditos ladrões do banco! Matem-nos! Roubaram o nosso dinheiro...
— Matem os sacanas...
— Quero o meu dinheiro...
— Matem os demônios estrangeiros...
Smyth viu que mudou o humor daqueles que estavam perto dele, e seu coração parou de bater quando eles repetiram o grito, se esqueceram do banco e estenderam as mãos na sua direção. Já tinha visto aquele olhar antes, e sabia que era um homem morto. A outra vez fora nos distúrbios de rua em 56, quando duzentos mil chineses subitamente promoveram desordens violentas e sem sentido em Kowloon. Teria sido morto por eles, se não tivesse nas mãos uma arma potente. Matara quatro homens, e abrira uma trilha para a segurança. Agora, não tinha armas e estava lutando pela vida. Arrancaram-lhe o chapéu. Alguém o agarrou pelo cinto e meteu-lhe um soco na virilha. Levou outro soco no rosto, garras buscavam-lhe os olhos. Destemidamente, Mok e outros meteram-se no meio da confusão para salvá-lo. Alguém atingiu Mok com um tijolo, outro com um pedaço de madeira, que abriu um corte feio no seu rosto. Smyth foi tragado, os braços e as mãos tentando desesperadamente proteger a cabeça. E então o camburão do pelotão antimotim, com as sirenes tocando, dobrou rapidamente a esquina. A equipe de dez homens caiu brutalmente sobre a multidão, e arrancou Smyth de lá. O sangue escorria de sua boca. Seu braço esquerdo pendia, inutilizado.
— Está bem, senhor?
— Estou, pelo amor de Deus, levantem de novo as malditas barreiras! Afastem aqueles filhos da mãe do banco... mangueiras!
Mas as mangueiras não foram necessárias. Ao primeiro ataque violento do pelotão antimotim, a frente da turba murchara, e agora o resto se afastava para uma distância segura e ficava ali parado, de cara fechada, alguns deles ainda gritando obscenidades. Smyth agarrou o megafone. Em cantonense, falou:
— Se alguém chegar a vinte metros daqui, será preso e deportado. — Tentou recobrar o fôlego. — Se alguém deseja visitar o Ho-Pak, entre na fila a cem metros de distância.
A turba carrancuda hesitou, depois, enquanto Mok e o pelotão antimotim se adiantaram velozmente, recuou às pressas e começou a se afastar, pisando uns nos outros.
— Acho que o maldito do meu ombro está deslocado — falou Smyth, e praguejou obscenamente.
— O que vamos fazer com esses filhos da mãe, senhor? — perguntou Mok, sentindo muita dor, respirando pesadamente, a face ferida e sangrando, o uniforme rasgado.
Smyth segurou o braço para suavizar a dor crescente, e olhou para o outro lado da rua, para a multidão carrancuda e embasbacada.
— Mantenha o pelotão antimotim aqui. Mande vir outro de Aberdeen Oeste, informe a central. Onde está o diabo do meu chapéu? Se botar as mãos no filh...
— Senhor! — chamou um dos seus homens. Estava ajoelhado junto à moça que fora pisoteada. Era uma garota de bar, ou de cabaré: tinha aquele ar triste, doce, ah, tão duro, jovem e velho ao mesmo tempo! O sangue escorria da sua boca, e ela respirava estertorosamente.
— Deus, chamem uma ambulância!
Enquanto Smyth olhava, impotente, a moça sufocou no próprio sangue, e morreu.
Christian Toxe, editor do Guardian, rabiscava algumas anotações, o telefone colado ao ouvido.
— Como era o nome dela, Dan? — perguntou, abafando o vozerio da redação.
— Não tenho certeza. Uma caderneta de poupança dizia Su Tzee-Ian — disse Dan Yap, o repórter do outro lado da linha, em Aberdeen. — Havia quatro mil trezentos e sessenta dólares nela... a outra estava no nome... Espere aí, a ambulância acaba de sair. Está ouvindo direito, Chris? O tráfego aqui está intenso.
— Estou. Continue. A segunda caderneta de poupança?
— A segunda caderneta estava no nome de Tak H'eung fah. Exatamente três mil, nessa.
Tak H'eung fah parecia evocar alguma lembrança.
— Algum desses nomes lhe diz alguma coisa? — perguntou Toxe. Era um homem alto e amarrotado, no seu minúsculo escritório desmazelado.
— Não. Exceto que um deles quer dizer Glicínia Su, e o outro Flor Fragrante Tak. Era bonita, Chris. Talvez fosse eurasiana...
Toxe sentiu uma repentina estocada de gelo no estômago, ao lembrar das suas três filhas, de seis, sete e oito anos, e da sua linda mulher chinesa. Tentou empurrar aquela cruz perpétua para o recesso da sua mente, a preocupação secreta quanto ao acerto de misturar o Leste e o Oeste. "O que o futuro lhes reserva, às minhas queridas, neste mundo podre, nojento, preconceituoso?"
Com esforço, voltou a concentrar-se.
— É um bocado de dinheiro para uma dançarina de cabaré, não acha?
— Acho. Eu diria que tinha um protetor. Uma coisa interessante: na sua bolsa havia um envelope amassado, datado de umas duas semanas atrás, contendo uma carta de amor melosa. Estava endereçado a... espere aí... a Tak H'eung fah, apartamento 14, Quinto Beco, Tsung-pan Street, em Aberdeen. Era sentimental, jurava amor eterno. Mas escrito por pessoa instruída.
— Em inglês? — perguntou Toxe, surpreso, anotando rapidamente.
— Não. Em caracteres. Havia algo na escrita... podia ser um quai loh.
— Arranjou uma cópia?
— A polícia não deix...
— Arranje uma fotocópia. Implore, peça emprestado ou roube uma fotocópia, a tempo de sair na edição da tarde. Gratificação de uma semana de salário, se conseguir.
— Em dinheiro, hoje à tarde?
— Está bem.
— Já a tem.
— Tem assinatura?
— "Seu único amor." "Amor" está escrito em inglês.
— Sr. Toxe! A senhora editora na linha 2! — avisou a secretária inglesa pela porta aberta. Sua mesa ficava logo do lado de fora da divisão de vidro.
— Ah, Deus, eu... ligo para ela depois. Diga-lhe que estou com uma história e tanto estourando. — Depois, falando de novo ao telefone: — Dan, fique com esta história... grude-se na polícia, vá com eles para o apartamento da moça morta, se é que é o apartamento dela. Descubra quem é o proprietário, quem é a família dela, onde mora. Depois ligue de novo para mim! — Toxe desligou e chamou o seu chefe de redação. — Ei, Mac!
O homem esguio, grisalho e azedo levantou-se da sua escrivaninha e foi entrando.
— Sim?
— Acho que devemos fazer uma edição extra. Manchete... — rabiscou num pedaço de papel. — "Turba mata Flor Fragrante!"
— Que tal "Turba assassina Flor Fragrante"?
— Ou "Primeira morte em Aberdeen"?
— "Turba assassina" é melhor.
— Tudo bem, é isso aí. Martin! — chamou Toxe. Martin Haply levantou os olhos do seu trabalho e veio juntar-se a eles. Toxe correu os dedos pelos cabelos, enquanto lhes contava o que Dan Yap relatara. — Martin, escreva mais o seguinte: "A bela jovem foi esmagada pelos pés da turba... mas quem foram seus verdadeiros matadores? Será um governo incompetente, que se recusa a regular o nosso sistema bancário ultrapassado? Os matadores serão aqueles que começaram os boatos? A corrida ao Ho-Pak será tão simples quanto parece?" E continue por aí.
— Já saquei.
Martin Haply abriu um sorriso e voltou à sua mesa, na sala principal. Engoliu uma xícara de café frio, num recipiente de plástico, e começou a datilografar, a mesa cheia de pilhas de livros de consulta, jornais chineses e boletins da Bolsa de Valores. Os teletipos soavam ao fundo. Alguns estagiários e contínuos silenciosos entregavam ou apanhavam textos.
— Ei, Martin! Qual a última da Bolsa?
Martin Haply discou um número sem olhar para o aparelho, depois respondeu ao editor:
— Ho-Pak desceu para 24,60. Baixou quatro pontos, de ontem para hoje. Struan baixou um ponto, embora tenham sido compradas muitas ações. Hong Kong Lan Tao subiu três pontos... a história acaba de ser confirmada. Dunstan Barre sacou o dinheiro deles ontem.
— Foi? Então você estava certo de novo. Merda!
— O Victoria baixou meio ponto... todos os bancos estão nervosos, e não há compradores. Corre um boato de que uma fila está se formando do lado de fora da sede do Blacs e do Victoria, na zona central.
Os dois homens soltaram exclamações abafadas.
— Mande alguém ir verificar no Vic!
Mac saiu apressado. "Meu Deus", pensou Toxe, com o estômago embrulhado. "Meu Deus, se começar uma corrida ao Vic, o diabo da ilha inteira vai desabar, e o diabo das minhas economias junto com ela."
Recostou-se na sua velha cadeira e pôs os pés em cima da mesa, adorando o seu trabalho, as pressões e a urgência.
— Quer que ligue para ela? — perguntou a secretária. Era redonda e imperturbável.
— Quem? Ora, merda, Peg, tinha esquecido... É... ligue para o Dragão.
O Dragão era a mulher do editor, Mong Pa-tok, chefe atual da imensa família Mong, dona do jornal, de três outros jornais chineses e cinco revistas, cujos antecedentes remontavam aos primeiros dias. Dizia-se que os Mongs descendiam do primeiro editor-proprietário do jornal, Morley Skinner. Contava-se que Dirk Struan dera a Skinner o controle do jornal em troca da sua ajuda contra Tyler Brock e seu filho Gorth, abafando a história da morte de Gorth em Macau. Dizia-se que Dirk Struan provocara o duelo. Os dois homens lutaram com ferros de combate. Uma vez, há muitos anos, Toxe ouvira a velha Sarah Chen, meio bêbada, relatar que, quando os Brocks vieram buscar o corpo de Gorth, não o reconheceram. A velha acrescentara que seu pai, Sir Gordon Chen, tivera que mobilizar quase todo o Bairro Chinês para impedir que os Brocks ateassem fogo aos armazéns da Struan. Tyler Brock incendiara Tai-ping Shan, em seu lugar. Apenas o grande tufão que veio naquela noite impediu que toda a cidade fosse destruída pelo fogo... o mesmo holocausto que destruíra a Casa Grande de Dirk Struan, e ele e sua mulher secreta, May-may.
— Está na linha 2.
— Hem? Ah, está bem, Peg. Toxe soltou um suspiro.
— Ah, Sr. Toxe, estava esperando o seu telefonema, heya?
— No que posso servi-la, ou ao Sr. Mong?
— Seus artigos sobre o Ho-Pak Bank, ontem e hoje, que os rumores adversos sobre o Ho-Pak são inverídicos e iniciados por tai-pans e outro grande banco. Vejo que há mais, hoje.
— É. Haply tem absoluta certeza.
— Meu marido e eu ouvimos não ser verdade. Nenhum tai-pan ou banco estão espalhando boatos, ou já espalharam boatos. Talvez sensato abandonar ataque.
— Não é um ataque, sra. Mong, só uma atitude. Sabe como os chineses são suscetíveis aos boatos. O Ho-Pak é tão forte quanto qualquer banco da colônia. Estamos certos de que os boatos foram iniciados por um gran...
— Não por tai-pans nem por grande banco. Meu marido e eu não gostamos desta atitude, faz favor. Queira mudar — falou, e ele ouviu o granito na sua voz.
— Isso é política editorial, e eu tenho controle sobre a política editorial — respondeu ele sombriamente.
— Nós somos editor. É o nosso jornal. Nós dizemos você parar, então você pára.
— Está me ordenando que pare?
— Claro que é ordem.
— Pois bem. Como ordenou, paramos.
— Ótimo! — O aparelho ficou mudo. Christian Toxe quebrou o lápis, jogou-o contra a parede, e começou a xingar. A secretária soltou um suspiro e fechou discretamente a porta; quando acabou, Toxe abriu a porta. — Peg, quer me trazer um café? Mac! Martin!
Toxe recostou-se na cadeira, que rangeu. Enxugou o suor das faces, acendeu um cigarro e tragou profundamente.
— Sim, Chris? — perguntou Haply.
— Martin, cancele o artigo que íhe pedi e faça outro sobre o sistema bancário de Hong Kong e a necessidade de se ter algum tipo de seguro bancário...
Os dois homens o fitaram, boquiabertos.
— Nosso editor não gosta do enfoque dos boatos. Martin Haply enrubesceu.
— Ora, ele que se foda! Você mesmo ouviu os caras, na festa do tai-pan.
— Isso nada prova. Você não tem provas. Vamos parar com esse enfoque. Não está provado, portanto não posso tomar posição.
— Mas, olh...
O pescoço de Toxe ficou roxo.
— Paramos e pronto! — rugiu. — Entendeu?
Haply começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia. Sufocado de raiva, girou sobre os calcanhares e se afastou. Cruzou o salão, abriu com violência a porta da frente, e bateu-a atrás de si.
Christian Toxe soltou a respiração.
— Mas que droga de gênio terrível tem esse rapaz! Apagou o cigarro e acendeu outro.
— Deus, estou fumando demais! — Ainda fervendo, seus olhos castanhos fitaram o homem mais velho. — Alguém deve ter ligado para ela, Mac. Agora, que favor você gostaria de receber em troca, se fosse a sra. Dragão Mong?
Subitamente, Mac abriu um sorriso.
— Não um título de sócio votante do Turf Club!
— Primeiro da turma!
Singh, o repórter indiano, entrou na sala, trazendo trinta centímetros de teletipo.
— Pode precisar disso para a edição extra, Chris. Era uma série de boletins Reuter do Oriente Médio. "Teerã, 8h32m. — Fontes diplomáticas de alto nível no Irã relatam que súbitas e extensas manobras militares soviéticas tiveram início junto de sua fronteira setentrional, perto da área fronteiriça petrolífera de Azerbaijão, onde mais distúrbios ocorreram. Consta que Washington pediu permissão para mandar observadores para aquela área."
O parágrafo seguinte dizia:
"Tel Aviv, 6 h. — O Parlamento israelense confirmou no fim da noite de ontem que outro imenso projeto de irrigação foi iniciado para desviar ainda mais as águas do rio Jordão para o deserto meridional de Neguev. Houve uma reação adversa e hostil imediata da Jordânia, Egito e Síria".
— Neguev? A usina atômica novinha em folha de Israel não fica no Neguev? — perguntou Toxe.
— Fica. Que bela adição para as mesas de conferências de paz. A água seria para isso?
— Não sei, Mac, mas isso com certeza vai deixar secas algumas gargantas jordanianas e palestinas. Água, água por todo canto, e nenhuma gota para se tomar um banho. Puxa vida, seria bom se chovesse! Singh, ajeite esses boletins, e nós os colocaremos na última página. Não venderão um mísero jornal. Faça um novo artigo sobre os Lobisomens para a primeira página: "A polícia estendeu uma vasta rede, mas os perversos seqüestradores do Sr. John Chen continuam a enganá-la. Segundo fontes chegadas à família de seu pai, o representante nativo da Struan, ainda não se recebeu nenhuma nota de resgate, mas espera-se uma a qualquer momento. O China Guardian pede a todos os seus leitores que ajudem na captura desses monstros..." Esse tipo de coisa.
Em Aberdeen, Wu Óculos viu a velha sair do cortiço, com uma cesta de compras na mão, e se meter no meio da multidão barulhenta, no beco estreito. Ele a seguiu cautelosamente, sentindo-se muito satisfeito consigo mesmo. Enquanto esperava que ela reaparecesse, puxara conversa com um vendedor ambulante cujo local de vendas permanente era um pedaço de calçada quebrada, do lado oposto. O ambulante vendia chá e pequenas tigelas de congee (mingau de arroz) quente. Wu pedira uma tigela, e durante a refeição o ambulante lhe falara da velha, Ah Tam, que estava no bairro desde o ano passado. Chegara à colônia vinda de uma aldeia perto de Cantão, junto com as imensas ondas de imigrantes que tinham cruzado a fronteira no verão anterior. Não tinha família, e as pessoas para quem trabalhava não tinham filhos com cerca de vinte anos, embora a tivesse visto com um rapaz dessa idade naquela manhã.
— Disse que a aldeia dela era Ning-tok...
Foi então que Wu sentiu-se animar por aquele golpe de sorte. Ning-tok era a aldeia de onde vinham seus próprios pais, e ele falava o dialeto do lugar.
Agora, estava vinte passos atrás dela, e ficou vendo-a pechinchar habilmente ao comprar legumes, selecionando apenas as melhores cebolas e verduras, todas fresquinhas, recém-chegadas dos campos dos Novos Territórios. Comprou muito pouco, e ele deduziu que a família para a qual ela trabalhava era pobre. Depois, ficou diante da barraca de aves, com suas camadas de galinhas esquálidas, que mal viviam ainda, enfiadas nas gaiolas, de pernas atadas. O barraqueiro rotundo barganhava com ela, ambos curtindo a linguagem obscena, os insultos, escolhendo esta ave, depois aquela, depois outra, cutucando-as, deixando-as de lado, até o negócio ser feito. Como era uma boa negociante, tinhosa, o homem concordou em reduzir seu lucro. Depois, estrangulou a ave habilmente, sem pensar, jogando a carcaça para a filha de cinco anos, acocorada numa pilha de penas e restos, para que a depenasse e limpasse.
— Ei, senhor vendedor — chamou Wu. — Quero uma ave pelo mesmo preço. Aquela! — Apontou para uma galinha razoável, e não ligou para os resmungos do homem. — Irmã Mais Velha — dirigiu-se a ela cortesmente —, está claro que me poupou muito dinheiro. Gostaria de tomar uma xícara de chá enquanto esperamos que nossas aves sejam limpas?
— Ah, sim, obrigada, meus velhos ossos estão cansados. Iremos para lá! — O dedo nodoso dela apontou para uma barraca em frente. — Assim, poderemos vigiar, e receber as aves por que pagamos.
O vendedor de aves resmungou uma obscenidade, e eles riram.
Ela foi abrindo caminho aos empurrões para o outro lado da rua, sentou-se num banco, pediu chá e um bolo, e não demorou estava contando a Wu como detestava Hong Kong e viver no meio de estranhos. Foi fácil para ele amolecê-la pelo uso casual de uma palavra no dialeto de Ning-tok, depois fingir surpresa quando ela passou a falar naquele dialeto e contou que vinha da mesma aldeia, e ah, que maravilha encontrar um vizinho, depois de tantos meses entre estranhos! Contou-lhe que trabalhara para a mesma família, em Ning-tok, desde os sete anos. Mas, infelizmente, há três anos, sua patroa — a criança que criara, agora uma senhora de idade igual a ela — morrera.
— Fiquei na casa, mas eles estavam passando por um período difícil. E então, no ano passado, a fome foi grande. Muitos resolveram vir para este lugar. O pessoal do presidente Mao não se incomodou. Ao contrário, nos encorajou... "Bocas Inúteis", era como eles nos chamavam. Não sei como nos separamos, e consegui cruzar a fronteira e chegar até aqui, sem tostão, faminta, sem família, sem amigos, sem saber para que lado me virar. Finalmente, arrumei um emprego, e agora trabalho como cozinheira e amah para a família Ch'ung, que é de varredores de ruas. Os miseráveis só me dão casa e comida, e a primeira mulher Ch'ung é uma bruxa desbocada, mas logo estarei livre de todos eles! Disse que seu pai veio para cá com a família há dez anos?
— É. Tínhamos um campo perto da vereda de bambus junto do rio. O nome dele era Wu Cho-tam e...
— Ah, sim, acho que me lembro da família. É, acho que sim. É, e conheço o campo. A minha família era a Wu Ting-top, e a família deles era dona da farmácia da encruzilhada há mais de cem anos.
— Ah, o Honorável Wu Farmácia? Mas claro!
Wu Óculos lembrava-se bem da família. Wu Farmácia sempre fora um simpatizante maoísta. Certa vez, tivera que fugir dos nacionalistas. Naquela aldeia de mil pessoas, fora muito apreciado e respeitado, e mantivera a vida na aldeia o mais calma e protegida dos estranhos possível.
— Quer dizer que é um dos filhos de Wu Cho-tam, Irmão Mais Moço? — dizia Ah Tam. — Eeee, antigamente era uma maravilha em Ning-tok, mas nos últimos anos... terrível.
— É. Nós tivemos sorte. Nosso campo era fértil, e cultivávamos a terra como sempre, mas após alguns anos chegou gente de fora, que acusou todos os proprietários de terras... como se fôssemos exploradores! Nós apenas cultivávamos o nosso próprio campo. Mesmo assim, de vez em quando alguns proprietários eram levados dali, outros, fuzilados. Certa noite, há dez anos, meu pai fugiu com todos nós. Agora meu pai está morto, mas moro com minha mãe, não muito distante daqui.
— Houve muitas fugas e fome no início. Ouvi dizer que agora está melhor. Também ouviu? Gente de fora chegou, não foi? Eles chegaram e foram embora. A aldeia não está tão ruim, novamente, Irmão Mais Moço, ah, não! Gente de fora nos deixou em paz. É, eles deixaram a nós e a minha patroa em paz porque o Pai era importante, e um dos simpatizantes do presidente Mao, desde o começo. O nome da minha patroa era Fang-ling, mas agora está morta. Não há nenhuma organização coletivista perto de nós, portanto a vida é como sempre foi, embora todos tenhamos que estudar o Livro vermelho do presidente Mao. A aldeia não é tão ruim, todos os meus amigos estão lá... Hong Kong é um lugar horrível, e a minha aldeia é o meu lar. A vida sem família não vale nada. Mas agora...
— A velha baixou o tom de voz, e casquinou, cheia de prazer.
— Mas agora os deuses me favoreceram. Dentro de um ou dois meses irei para casa, para sempre. Terei dinheiro bastante para me aposentar, e comprarei a casinha que fica no fim da minha rua, e quem sabe um campo pequeno e...
— Aposentar? — perguntou Wu, instigando-a a continuar. — E quem tem dinheiro para isso, Irmã Mais Velha? Disse que não lhe pagavam nada...
— Ah — replicou a velha, toda inchada —, tenho um amigo importante.
— Que espécie de amigo?
— Um amigo de negócios, muito importante, que precisa da minha ajuda! Como lhe fui muito útil, prometeu me dar uma imensa quantia...
— Está inventando tudo isso, Irmã Mais Velha — debochou. — Será que sou um estranho tonto que...
— Estou lhe dizendo que meu amigo é tão importante que pode manter a ilha inteira escravizada!
— Não existe gente assim!
— Ah, mas existe, sim! — Ela baixou a voz e murmurou, roucamente: — E quanto aos Lobisomens?
Wu Óculos fitou-a, de boca aberta.
— O quê?
Ela casquinou de novo, radiante com o impacto da sua confidencia.
— É.
O rapaz recompôs rapidamente os pedaços de sua mente baratinada. Se aquilo fosse verdade, receberia a recompensa e a promoção, e quem sabe o convite para ingressar no Serviço Especial de Informações.
— Está inventando essa história!
— E eu lá ia mentir para alguém da minha própria aldeia? Meu amigo é um deles, estou lhe dizendo. Também é um 489; e a irmandade dele vai ser a mais rica de toda a Hong Kong.
— Eeee, que sorte tem, Irmã Mais Velha! E quando o vir de novo, pergunte-lhe por favor se tem utilidade para alguém como eu. Sou lutador de rua, de profissão, embora minha tríade seja pobre, e o líder, um burro e um estrangeiro. Ele é de Ning-tok?
— Não. Ele... é meu sobrinho — disse ela, e o rapaz percebeu que era mentira. — Vou vê-lo mais tarde. É, ele vem aí, mais tarde. Está me devendo algum dinheiro.
— Eeee, que bom! Mas não o ponha no banco, especialmente no Ho-Pak ou...
— Ho-Pak? — replicou, desconfiada, os olhinhos estreitando-se subitamente nos vincos do rosto. — Por que fala no Ho-Pak? O que o Ho-Pak tem a ver comigo?
— Nada, Irmã Mais Velha — disse Wu, amaldiçoando-se pelo deslize, sabendo que agora ela fechara a guarda. — Vi as filas hoje de manhã, só isso.
Ela balançou a cabeça, sem se sentir convencida. Depois notou que sua galinha já estava pronta e embrulhada, portanto agradeceu-lhe pelo chá e o bolo e se afastou, resmungando sozinha. Com muito cuidado, ele a seguiu. De vez em quando, ela olhava para trás, mas não o viu. Tranqüilizada, foi para casa.
O homem da CIA saltou do carro e entrou rapidamente no quartel-general da polícia. O sargento uniformizado na mesa de informações cumprimentou-o.
— Boa tarde, Sr. Rosemont.
— Tenho hora marcada com o Sr. Crosse.
— Sei, ele o está esperando.
Azedamente, Rosemont dirigiu-se ao elevador. "Esta merda de ilha maldita! Tenho vontade de cagar nela, e nos malditos britânicos."
— Alô, Stanley — cumprimentou Armstrong. — O que está fazendo aqui?
— Ah, oi, Robert. Tenho um encontro com o seu chefe.
— Já tive esse desprazer hoje, uma vez. Exatamente às sete horas e um minuto.
A porta do elevador se abriu. Rosemont entrou, e Armstrong o seguiu.
— Espero que tenha boas novas para Crosse — comentou Armstrong, bocejando. — Ele está num humor terrível.
— E? Você também vai participar do encontro?
— Parece que sim. Rosemont enrubesceu.
— Merda, pedi um encontro particular.
— Sou particular.
— Claro que é, Robert. E Brian, e todo mundo. Mas tem um filho da mãe que não é.
O bom humor de Armstrong desapareceu.
— É?
— É.
Rosemont não disse mais nada. Sabia que magoara o inglês, mas não se importava. "É a verdade", pensou, com amargura. "Quanto mais cedo esses malditos ingleses abrirem os olhos, melhor."
O elevador parou. Desceram o corredor, e Brian Kwok os fe2 entrar na sala de Crosse. Rosemont sentiu as duas trancas correrem, às suas costas, e pensou: "Que idiotice inútil e desnecessária; o homem é um cretino".
— Pedi um encontro particular, Rog.
— É particular. Robert é muito particular, Brian também. O que posso fazer por você, Stanley?
Crosse estava polidamente frio.
— Pois bem, Rog, hoje tenho uma longa lista para você: primeiro, você está pessoalmente cem por cento enrascado comigo, com todo o meu departamento, até com o próprio diretor em Washington. Mandaram que eu lhe dissesse, entre outras coisas, que o seu toupeira superou a si mesmo, desta vez.
— É?
A voz de Rosemont agora estava áspera.
— Só para começar, acabamos de saber por uma das nossas fontes em Cantão que Fong-fong e todos os seus rapazes foram atingidos, ontem à noite. Foram expostos... e estão perdidos! — Armstrong e Brian Kwok pareciam chocados. Crosse devolvia-lhe o olhar, e não pôde ler nada no rosto dele. — Tem que ser o seu toupeira, Rog. Tem que ser identificado pelos documentos de Alan Medford Grant que estão em poder do tai-pan.
Crosse olhou para Brian Kwok.
— Use o código de rádio de emergência. Verifique isso! Enquanto Brian Kwok se afastava às pressas, Rosemont repetiu:
— Eles já eram, os pobres coitados!
— Vamos verificar, de qualquer forma. A seguir? Rosemont sorriu sem humor.
— A seguir: quase tudo o que estava nos relatórios de Alan que estão com o tai-pan já está espalhado pela comunidade dos agentes de informações, em Londres... do lado errado.
— Deus amaldiçoe todos os traidores — resmungou Armstrong.
— É, foi o que pensei, Robert. A seguir, outra preciosidade: a morte de Alan não foi nenhum acidente.
— Como?
— Ninguém sabe quem foi, mas todos sabemos o porquê. A moto foi atingida por um carro. Ainda não se sabe a marca, o número de série, se há testemunhas, nada, ainda, mas foi atingido... e, naturalmente, denunciado daqui.
— Então, por que não fui informado pela Fonte? Por que a informação está vindo de você? — perguntou Crosse.
A voz de Rosemont tornou-se mais cortante.
— Acabo de desligar o telefone, falando com Londres. Passa um pouco das cinco da manha, lá. Portanto talvez seu pessoal pretenda informá-lo quando chegar ao escritório, depois de comer tranqüilamente bacon com ovos, e beber uma boa xícara de chá!
Armstrong lançou um rápido olhar para Crosse, e crispou-se ao ver a cara dele.
— Provou... provou bem seu ponto de vista, Stanley — falou Crosse. — A seguir?
— As fotos que lhe demos dos caras que mataram Voranski... o que aconteceu?
— Estávamos vigiando a casa deles. Os dois homens não voltaram. Portanto invadi o local hoje de madrugada. Revistamos o cortiço inteiro, aposento por aposento, mas não encontramos ninguém que, mesmo de leve, se assemelhasse às fotos. Revistamos durante duas horas, e não havia portas secretas ou coisa semelhante. Eles não estavam lá. Talvez seu agente se tivesse enganado...
— Não desta vez. Marty Povitz tinha certeza. Cercamos o lugar tão logo deciframos o endereço. Mas houve um tempinho em que não estava sendo vigiado, na frente e atrás. Acho que foram avisados, novamente pelo seu toupeira.
Rosemont pegou uma cópia do telex, e entregou-a a Crosse. Ele a leu, ficou vermelho, e passou-a a Armstrong:
"Decifrado do diretor, Washington, para Rosemont, vice-diretor, Estação de Hong Kong: Sinders, MI-6, traz ordens da Fonte, Londres, para você ir com ele na sexta-feira assistir à entrega dos documentos e obter uma fotocópia imediata".
— Receberá a sua cópia pelo correio, hoje, Rog — disse o americano.
— Posso ficar com isso? — perguntou Crosse.
— Claro. A propósito, botamos alguém seguindo o Dunross, também. Nós...
Crosse exclamou, irado:
— Quer fazer o favor de não interferir na nossa jurisdição?
— Disse-lhe que estava atolado na merda, Rog!
Secamente, Rosemont colocou outro telegrama na mesa.
"Rosemont, Hong Kong. Entregue este telegrama pessoalmente ao chefe do sei. Até novas ordens, Rosemont está autorizado a atuar independentemente para ajudar a descobrir o inimigo, da forma que escolher. Ele, contudo, deve manter-se dentro da lei e informar-lhe pessoalmente o que está fazendo. Fonte 8-98/3."
Rosemont viu Crosse refrear uma explosão.
— O que mais você autorizou? — indagou Crosse.
— Nada. Ainda. Outro assunto: estaremos no banco na sexta-fei...
— Sabe onde Dunross colocou as pastas?
— Todo mundo sabe... toda a comunidade. Já lhe falei que seu toupeira vem fazendo serão. — Abruptamente, Rosemont explodiu: — Ora, qual é, Rog? Você sabe que é só contar uma notícia "quente" para alguém, em Londres, e toda a cidade fica sabendo! Todos temos problemas de segurança, mas os seus são piores! — Com esforço, o americano controlou-se. — Podia ter sido franco comigo sobre a mancada com Dunross... teria nos poupado muito sofrimento e constrangimento!
Crosse acendeu um cigarro.
— Talvez. Talvez não. Estava tentando manter a segurança.
— Lembra-se de mim? Estou do seu lado!
— Está?
— Pode apostar que sim, porra! — exclamou Rosemont, muito irado. — E se dependesse de mim, mandaria abrir todas as caixas de depósito individuais do banco antes do anoitecer... e danem-se as conseqüências!
— Graças a Deus não pode fazer isso.
— Pela madrugada! Estamos em guerra, e só Deus sabe o que há naquelas outras pastas. Talvez nos revelem o seu maldito toupeira, e então poderemos pôr as mãos no filho da mãe, e dar-lhe o que merece.
— É — falou Crosse, a voz cortante como uma chicotada —, ou talvez não haja nada nos documentos, afinal!
— Como assim?
— Dunross concordou em entregar as pastas a Sinders na sexta-feira. E se não houver nada nelas? E se ele tiver queimado as páginas, e nos entregar apenas as capas? Que diabo faremos, então?
Rosemont fitou-o, boquiaberto.
— Deus... e existe tal possibilidade?
— Claro que sim! Dunross é esperto. Pode ser que não estejam lá, ou que as que estão no cofre sejam falsas. Não sabemos se ele as guardou lá. É o que ele diz. Santo Deus, existem cinqüenta possibilidades. Vocês, da CIA, que são tão espertos, digam-me em qual caixa de depósito está, e eu a abrirei pessoalmente.
— Pegue a chave com o governador. Entregue-a para mim e para alguns dos meus rapazes durante cinco horas e...
— Nem pense nisso! — rosnou Crosse, o rosto subitamente vermelho.
Armstrong sentiu a violência no ar. "Pobre Stanley", pensou, "hoje você é o alvo." Abafou um estremecimento, recordando-se das vezes em que tivera que enfrentar Crosse. Logo aprendera que era melhor contar a verdade ao sujeito, contá-la logo. Se Crosse realmente se dispusesse a interrogá-lo, sabia, sem sombra de dúvida, que "abriria o jogo". Graças a Deus ele nunca tivera motivos para tentar, pensou, agradecido, e depois voltou o olhar para Rosemont, que estava vermelho de raiva. "Quem serão os informantes de Rosemont, e como ele sabe ao certo que Fong-fong e sua equipe foram dizimados?"
— Nem pense nisso — repetiu Crosse.
— Então, que diabo vamos fazer? Ficar com a bunda na cadeira até sexta?
— É. Esperamos. Mandaram que esperássemos. Mesmo que Dunross tenha arrancado páginas, ou parágrafos, ou destruído todos os documentos, não podemos botá-lo na prisão... ou forçá-lo a lembrar-se, ou a nos contar qualquer coisa.
— Se o diretor ou a Fonte resolverem que ele tem que sofrer um aperto, há maneiras. Isso é o que o inimigo faria.
Crosse e Armstrong fitaram Rosemont. Finalmente, Armstrong falou, friamente:
— Mas isso não quer dizer que é direito.
— Nem tampouco errado. Há uma coisa, mas apenas para os seus ouvidos, Rog.
Armstrong levantou-se imediatamente, mas Crosse fez sinal para que se sentasse.
— Robert é os meus ouvidos.
Armstrong disfarçou a vontade de rir que o invadiu, ante uma afirmação tão ridícula.
— Não. Desculpe, Rog, são ordens... dos seus superiores e dos meus.
Armstrong percebeu distintamente que Crosse hesitava.
— Robert, espere do lado de fora. Quando eu tocar a campainha, torne a entrar. Vá dar uma espiada no Brian.
— Sim, senhor.
Armstrong saiu e fechou a porta, lamentando não estar presente para o golpe final.
— E então?
O americano acendeu outro cigarro.
— Máximo sigilo. Às quatro horas de hoje, toda a 92.a Divisão de Pára-Quedistas saltou no Azerbaijão, apoiada por grandes unidades da Força Delta, e se espalhou ao longo da fronteira Irã-União Soviética. — Os olhos de Crosse se arregalaram. — Isso foi feito atendendo a um pedido direto do xá, em resposta a maciços preparativos militares soviéticos logo além das fronteiras, e aos costumeiros distúrbios patrocinados pelos soviéticos em todo o Irã. Meu Deus, Rog, não pode pôr um condicionador de ar aqui? — Rosemont enxugou a testa. — Há um manto de segurança cobrindo todo o Irã, agora. Às seis horas, unidades de apoio desembarcaram no aeroporto de Teerã. A nossa Sétima Frota está se dirigindo para o golfo; a Sexta, a do Mediterrâneo, já está em posição de combate perto de Israel; a Segunda, do Atlântico, dirige-se para o Báltico. A norad foi alertada, a OTAN foi alertada, e todos os Poseidons estão a um passo do Vermelho.
— Meu Deus, mas que diabo está acontecendo?
— Khruchov está tentando outra investida sobre o Irã... sempre um alvo soviético por excelência, certo? Acha que está com a vantagem. Fica bem na fronteira dele, onde suas próprias linhas de comunicação são curtas, e as nossas, imensas. Ontem, o pessoal da segurança do xá descobriu uma insurreição "socialista democrática" que deveria explodir dentro dos próximos dias em Azerbaijão. Então o Pentágono está reagindo feito um alucinado. Se o Irã cair, cai todo o golfo Pérsico, depois a Arábia Saudita, e isso acaba com o petróleo da Europa, e acaba com a Europa.
— O xá já esteve encrencado antes. Isso não é mais um pouco de exagero de vocês?
O americano ficou mais duro.
— Khruchov recuou no caso de Cuba. Foi a primeira vez em que houve um recuo soviético, pombas, porque Kennedy não estava blefando, e a única coisa que os comunas entendem é a força. Força-bruta-maciça-pra-valer! O Grande K que recue dessa vez também, ou lhe entregaremos a própria cabeça!
— Vocês vão arriscar a explosão do mundo inteiro por causa de uns birutas analfabetos, fanáticos, arruaceiros, que provavelmente têm alguma razão, no fim das contas?
— Não me interessa a política, Rog, só me interessa vencer. O petróleo iraniano, o petróleo do golfo Pérsico, o petróleo saudita são a jugular do Ocidente. Não vamos deixar que o inimigo fique com ele.
— Se o quiserem, eles o tomarão.
— Não desta vez. Chamamos a operação de Dry Run¹. A idéia é entrar de sola, assustá-los e fazer com que fujam; depois ir embora rapidamente, discretamente, para que ninguém saiba que agimos, exceto o inimigo, e especialmente para que nenhum maldito congressista ou jornalista liberal americano o saiba. O Pentágono acha que os soviéticos não acreditam que somos capazes de uma reação tão rápida, tão maciça, vinda de tão longe, portanto tomarão um choque, correrão para se abrigar, e deixarão a idéia toda de lado... até a próxima vez.
¹ "Exercício de tiro com pólvora seca." (N. da T.)
O silêncio tornou-se mais pesado. Crosse tamborilou os dedos na mesa.
— O que quer que eu faça? Por que está me contando tudo isso?
— Porque meus chefões mandaram. Querem que todos os chefes do sei aliados saibam, porque, se essa merda se espalhar, haverá motins de apoio por toda parte, como sempre, motins de fachada, bem-coordenados, e vocês terão que estar preparados. Os relatórios de Alan Medford Grant diziam que a Sevrin fora ativada aqui... Talvez haja alguma ligação. Além disso, vocês, aqui em Hong Kong, são vitais para nós. São a porta dos fundos que dá para a China, a porta dos fundos para Vladivostok e todo o leste da Rússia... e o nosso melhor atalho para as bases navais e de submarinos atômicos deles no Pacífico. — Rosemont pegou outro cigarro, com dedos trêmulos. — Ouça, Rog — falou, controlando sua raiva violenta —, vamos esquecer toda a merda burocrática, certo? Quem sabe não podemos nos ajudar mutuamente?
— Que submarinos atômicos? — falou Crosse, com um sorriso de deboche deliberado, jogando verde. — Eles ainda não têm submarinos atômicos, e...
— Santo Deus! — explodiu Rosemont. — Vocês estão com as cabeças enfiadas rabo acima, e não querem escutar. Elogiam a distensão, tentam amordaçar-nos, e eles estão rindo a bandeiras despregadas! Eles têm submarinos nucleares, postos de mísseis e bases navais espalhados por todo o mar de Okhotsk! — Rosemont levantou-se e foi até o imenso mapa da China e da Ásia que ocupava uma das paredes e cutucou a península Kamtchatka, ao norte do Japão. —... Petropavlovsk, Vladivostok... têm operações gigantescas ao longo de toda esta costa siberiana, aqui em Komsomolsk, na foz do Amur e em Sacalina. Mas Petropavlovsk é que é a tal. Daqui a dez anos, será o maior porto de guerra na Ásia, com campos de pouso de apoio, recintos para submarinos protegidos atomica-mente, pistas para caças idem e silos de mísseis. E dali ameaçarão toda a Ásia... Japão, Coréia, China, as Filipinas... sem esquecer do Havaí e da nossa costa oeste.
— As forças americanas são preponderantes, e sempre serão. Está exagerando de novo.
A fisionomia de Rosemont se fechou.
— As pessoas me chamam de falcão. Não sou. Sou apenas realista. Eles estão em pé de guerra. Os nossos Midas III indicaram toda espécie de sujeira, nossos... — Parou, e quase deu um chute em si mesmo, por ter aberto tanto o bico.
— Bem, sabemos um bocado do que eles estão fazendo nesse momento, e pode apostar que não são relhas de arado.
— Acho que está errado. Não querem a guerra, como nós não queremos.
— Quer prova? Pois a terá amanhã, logo que eu obtiver autorização! — disse o americano, irritado. — Se isso for provado, poderemos esperar cooperação?
— Pensei que já estávamos cooperando.
— Cooperará?
— Como queira. A Fonte quer que eu reaja de alguma forma específica?
— Não, apenas que fique preparado. Acho que tudo isso passará pelos canais competentes, hoje.
— É. — Crosse tornou-se repentinamente suave. — O que realmente está chateando você, Stanley?
A hostilidade de Rosemont abandonou-o.
— Perdemos um dos nossos melhores aparelhos em Berlim Oriental, ontem à noite, um bocado de caras legais. Um amigo meu foi atingido ao tentar voltar para o nosso lado, e temos certeza de que tudo tem ligação com Alan Medford Grant.
— Ah, lamento muito. Não foi Tom Owen, foi?
— Não. Ele saiu de Berlim no mês passado. Foi Frank O'Connel.
— Acho que não o conheci. Uma pena.
— Ouça, Rog, esse tal de agente infiltrado é uma merda.
— Levantou-se e foi para junto do mapa. Fitou-o durante longo tempo. — Está sabendo de Iman?
— Como?
O dedo rombudo de Rosemont indicou um local no mapa. A cidade ficava no interior, a uns duzentos e noventa quilômetros ao norte de Vladivostok, num entroncamento ferroviário.
— É um centro industrial, ferrovias, muitas fábricas.
— E daí? — quis saber Crosse.
— Sabe do campo de pouso de lá?
— Que campo de pouso?
— É subterrâneo, todo ele, pertinho da cidade, construído num labirinto gigantesco de cavernas naturais. É certamente uma das maravilhas do mundo. Tem capacidade atômica, Rog. A base inteira foi construída por mão-de-obra escrava dos japoneses e nazistas, em 45, 46 e 47. Cem mil homens, ao que consta. Fica tudo debaixo da terra, Rog, com espaço para dois mil e quinhentos aviões, tripulações e pessoal de apoio. É à prova de bombas... até atômicas... com oitenta pistas secundárias, que vão dar numa gigantesca pista que rodeia dezoito morros baixos. Um dos nossos levou nove horas para percorrê-la de carro. Isso foi em 46... Como será hoje em dia?
— Muito melhorada... se é que existe.
— Atualmente está em condições de entrar em operação. Alguns caras do serviço de informações, nosso e de vocês, até mesmo alguns dos melhores jornalistas, sabiam de sua existência já em 46. Portanto, por que o silêncio, agora? Aquela base, por si só, é uma ameaça maciça a todos nós, e ninguém dá uma porra dum berro. Até mesmo a China, que sem dúvida está sabendo sobre Iman.
— Não posso lhe dar uma resposta.
— Eu posso. Acho que essa informação está sendo abafada, deliberadamente, junto com um bocado de outras coisas. — O americano se levantou e se espreguiçou. — Meu Deus, o mundo inteiro está caindo aos pedaços, e eu estou com dor nas costas. Conhece um bom quiroprático?
— Já experimentou o dr. Thomas, na Pedder Street? Vou a ele a toda hora.
— Não o tolero. Faz a gente esperar na fila, não marca hora. Deus abençoe os quiropráticos! Estou tentando convencer meu filho a estudar isso, ao invés de formar-se em medicina.
O telefone tocou, e Crosse atendeu.
— Sim, Brian? — Rosemont ficou olhando para Crosse, enquanto este escutava. — Só um minutinho, Brian. Stanley, já acabamos?
— Claro. Só faltam umas coisinhas de rotina, sem segredo.
— Certo. Brian, entre com o Robert logo que subir. — Crosse desligou. — Não pudemos manter contato com Fong-fong. Serão DPM ou DPC em quarenta e oito horas.
— Não entendi.
— Desaparecidos Presumivelmente Mortos ou Desaparecidos Presumivelmente Capturados.
— Que azar. Desculpe trazer más notícias.
— Joss.
— Com Dry Run e Alan Medford Grant, que tal colocar Dunross sob custódia?
— Nem pensar.
— Você tem a Lei dos Segredos Oficiais.
— Nem pensar.
— Vou recomendar que seja feito. A propósito, o pessoal do FBI de Ed Langan conseguiu achar uma ligação de Banastasio com Bartlett. Ele é um grande acionista da Par-Con. Dizem que foi quem deu a grana que permitiu a última fusão que fez da Par-Con uma das grandes.
— Algo sobre os vistos de Moscou para Bartlett e Tcholok?
— Só o que pudemos saber é que entraram como turistas. Talvez fosse apenas disfarce.
— Algo sobre as armas?
Pela manhã Armstrong contara a Crosse a teoria de Peter Marlowe, e ele ordenara que Wu Quatro Dedos fosse colocado imediatamente sob vigilância, e oferecera uma grande recompensa por informações.
— O FBI tem certeza que foram colocadas a bordo em Los Angeles. Seria fácil, o hangar da Par-Con não tem segurança. Verificaram também os números de série que você nos deu. Todos faziam parte de um carregamento que foi "extraviado", indo da fábrica para Camp Pendleton, o almoxarifado dos Fuzileiros Navais no sul da Califórnia. Quem sabe não acabamos por descobrir uma grande operação de contrabando de armas? Mais de setecentos Ml4 se extraviaram nos últimos seis meses. Por falar nisso... — Interrompeu-se ao ouvir uma batida discreta. Viu Crosse tocar no interruptor. A porta se abriu, e Brian Kwok e Armstrong entraram. Crosse fez sinal para que se sentassem. — Por falar nisso, lembra-se do caso da CARE?
— A suspeita de corrupção, aqui em Hong Kong?
— Esse mesmo. Talvez tenhamos uma pista para vocês.
— Ótimo. Robert, foi você que cuidou do caso, na época, não é?
— Sim, senhor. — Robert Armstrong soltou um suspiro.
Há três meses, um dos vice-cônsules do consulado americano pedira ao DIC para investigar a administração do fundo de caridade, para ver se algum administrador mão-leve estava envolvido em manobras para obter lucro pessoal. As entrevistas e averiguações ainda continuavam. — O que é que você tem, Stanley?
Rosemont revistou os bolsos e puxou uma folha datilografada. Continha três nomes e um endereço: Thomas K. K. Lim (Lim Estrangeiro), Tak Chou-lan (Tak Mãos Grandes), Lo Tup-lin (Lo Dentuço), sala 720, Edifício Princes, centro.
— Thomas K. K. Lim é americano, cheio da nota e com boas ligações em Washington, no Vietnam e na América do Sul. Está metido em negócios com os outros dois palhaços no citado endereço. Deram-nos uma dica de que está envolvido em algumas transações escusas com a AID e que Tak Mãos Grandes está metido com a CARE. Não fica na nossa jurisdição, portanto, está entregue a vocês. — Rosemont deu de ombros e espreguiçou-se de novo. — Talvez dê em alguma coisa. O mundo inteiro está pegando fogo, e ainda temos que cuidar dos vigaristas! Uma loucura! Ficarei em contato com vocês. Lamento sobre Fong-fong e o seu pessoal.
Foi embora.
Crosse contou a Armstrong e Brian Kwok, em breves palavras, o que soubera sobre a Operação Dry Run. Brian Kwok comentou, com azedume:
— Qualquer dia um desses ianques malucos vai cometer um erro. É uma estupidez botar armas atômicas numa situação tão delicada.
Crosse olhou para eles, que fecharam a guarda.
— Quero o toupeira. Quero esse agente antes que a CIA descubra quem é. Se eles o pegarem primeiro... — O homem de rosto magro estava nitidamente irado. — Brian, vá ver Dunross. Conte-lhe que a morte de Alan Medford Grant não foi acidental, e diga-lhe para não sair sem o nosso pessoal por perto. Sob qualquer circunstância. Diga-lhe que eu preferiria que ele nos desse os papéis antes, confidencialmente. Assim, nada terá a temer.
— Sim, senhor.
Brian Kwok sabia que Dunross faria exatamente o que quisesse, mas ficou de boca fechada.
— Nosso planejamento normal antimotim cobrirá qualquer desdobramento do problema iraniano e da Dry Run. Mas é melhor alertar o DIC e... — Interrompeu-se. Robert Armstrong olhava de testa franzida para o pedaço de papel que Rosemont lhe dera. — O que foi, Robert?
— Tsu-yan não tinha um escritório no Edifício Princes?
— Brian?
— Nós o seguimos até lá várias vezes, senhor. Visitava um conhecido, relação comercial... — Brian Kwok vasculhou a memória. — Navegação. O nome dele é Ng, Vee Cee Ng, apelidado Ng Fotógrafo. Sala 721. Fizemos uma verificação sobre ele, mas tinha a ficha limpa. Vee Cee Ng dirige a Companhia de Navegação Ásia e China e cerca de cinqüenta outros pequenos negócios correlatos. Por quê?
— Neste endereço consta: sala 720. Tsu-yan pode ter ligação com John Chen, as armas, Banastasio, Bartlett... até os Lobisomens — disse Armstrong.
Crosse pegou o pedaço de papel. Depois de uma pausa, disse:
— Robert, pegue uma equipe e vá verificar as salas 720 e 721, imediatamente.
— Não ficam na minha área, senhor.
— Tem toda a razão! — disse Crosse prontamente, a voz pesada de sarcasmo. — É, eu sei. Você é do DIC de Kowloon, Robert, não da zona central. Contudo, eu autorizo a incursão. Vá fazê-la. Agora.
— Sim, senhor.
Armstrong saiu, o rosto vermelho.
O silêncio tornou-se mais denso.
Brian Kwok esperou, fitando estoicamente o tampo da mesa. Crosse escolheu um cigarro com cuidado, acendeu-o, depois recostou-se na cadeira.
— Brian! Acho que Robert é o toupeira.