10
19h43m
Dunross acabou de ler a pasta de capa azul pela terceira vez. Leu-a logo que chegou, como sempre, depois mais uma vez, enquanto se dirigia para o palácio do governador. Fechou a capa azul e pousou-a por um momento no colo, a mente tumultuada. Agora, estava no seu escritório no segundo andar da Casa Grande, que se situava num cômodo na parte superior do Pico, os janelões envidraçados dando para jardins iluminados por holofotes, e depois, bem lá embaixo, a cidade e a imensidão do porto.
O relógio de pé, antigo, bateu um quarto para as oito.
"Faltam quinze minutos", pensou. "Depois, nossos convidados chegam, a festa começa e todos tomamos parte numa nova charada. Ou quem sabe apenas continuamos com a mesma."
A sala tinha teto alto e lambris de carvalho velho, cortinas de veludo verde-escuro e tapetes de seda chineses. Era um aposento masculino, confortável, antigo, um pouco gasto e decorado com carinho. Ouviu as vozes abafadas dos criados, lá embaixo. Um carro subiu o morro e passou adiante.
O telefone tocou.
— Sim? Ah, alô, Claudia.
— Ainda não consegui falar com Tsu-yan, tai-pan. Não estava no escritório. Já ligou para o senhor?
— Não, ainda não. Continue tentando.
— Certo. Até daqui a pouco. Tchau.
Estava sentado numa poltrona funda, de braços e espaldar alto, e usava um dinner jacket com o nó na gravata ainda por dar. Ficou olhando distraído pela janela, a vista sempre agradável. Mas naquele dia estava cheio de maus pressentimentos, pensando em Sevrin, no traidor, e em todas as outras coisas más que o relatório previra.
O que fazer?
— Rir — falou em voz alta. — E lutar.
Levantou-se e caminhou com passos suaves até o retrato a óleo de Dirk Struan que estava na parede, acima da cornija da lareira. A moldura era pesada, dourada e velha, o dourado estava lascado aqui e ali, e havia dobradiças secretas num dos lados. Afastou-a da parede e abriu o cofre que a tela escondia. No cofre havia muitos papéis, alguns amarrados com capricho com fitas escarlates, alguns antigos, outros novos, umas poucas caixinhas, uma Mauser carregada e bem lubrifiçada presa a um dos lados do cofre, uma caixa de munição, uma imensa Bíblia antiga com as armas da Struan gravadas no belo couro velho, e sete pastas de capa azul, semelhantes à que trazia nas mãos.
Pensativo, colocou a pasta ao lado das outras, em seqüência. Fitou-as por um momento, e começou a fechar o cofre, mas mudou de idéia quando seus olhos depararam com a Bíblia antiga. Acariciou-a de leve, depois tirou-a de lá e abriu-a. Presas à grossa folha de rosto com lacre velho, havia as metades de duas velhas moedas de bronze chinesas, partidas grosseiramente. Era óbvio que, antigamente, tinha havido quatro daquelas meias moedas, pois ainda havia a impressão das duas que faltavam, e os restos do mesmo lacre vermelho presos ao papel antigo. A caligrafia que encabeçava a página era linda e nítida: "Juro pelo Senhor Deus, que, quem quer que seja que apresente a outra parte de qualquer dessas moedas, eu lhe concederei qualquer coisa que pedir". Estava assinado: "Dirk Struan, 10 de junho de 1841", e abaixo da assinatura dele havia a de Culum Struan e as de todos os outros tai-pans, e o último nome era Ian Dunross.
Ao lado do primeiro espaço, onde antes houvera uma moeda, fora escrito: "Wu Fang Choi, pago parcialmente, 16 de agosto, Ano do Nosso Senhor de 1841", e havia novamente a assinatura de Dirk Struan, com a co-assinatura de Culum Struan logo abaixo, e, datado de 18 de junho de 1845, "pago integralmente". Ao lado do segundo: "Sun Chen-yat, pago integralmente, 10 de outubro de 1911", assinado, ousadamente, pela Bruxa Struan.
"Ah", disse Dunross para si mesmo, perturbado, "que bela arrogância! Ser segura ao ponto de assinar o livro daquele jeito, e não como Tess Struan, para que as futuras gerações vissem.
"Quantas gerações mais?", perguntou-se. "Quantos tai-pans mais terão que assinar cegamente, e fazer o juramento sagrado de cumprir os desejos de um homem morto há quase um século e meio?"
Pensativo, correu os dedos pelas beiradas irregulares das duas meias moedas que restavam. Depois de um momento, fechou a Bíblia com firmeza, colocou-a de novo no lugar, tocou-a uma vez para dar sorte e trancou o cofre. Girou a tela de volta para o lugar, e fitou o quadro, agora de pé, com as mãos enfiadas nos bolsos, diante da cornija da lareira, o carvalho velho e pesado entalhado com as armas da Struan, lascado e quebrado aqui e ali, um velho pára-fogo chinês em frente da imensa lareira.
Aquele retrato a óleo de Dirk Struan era o seu preferido. Quando se tornara tai-pan, ele o havia tirado da Galeria Longa e o pendurara ali no lugar de honra, em substituição ao retrato da Bruxa Struan que encimara a lareira do escritório do tai-pan desde que existira uma Casa Grande. Ambos tinham sido pintados por Aristotle Quance. No retrato, Dirk Struan estava de pé diante de uma cortina carmesim, ombros largos, arrogante, seu casaco preto bem-talhado, o colete, a gravata e a camisa de babados brancos e bem-talhados. Sobrancelhas cerradas, nariz forte, cara raspada, cabelos avermelhados e suíças, lábios encrespados, e podia-se sentir os seus olhos penetrantes, o verde deles realçado pelo preto, o branco e o escarlate.
Dunross deu um meio sorriso, sem medo, sem inveja, mais acalmado do que qualquer outra coisa pelo olhar do seu ancestral... sabendo que era possuído, parcialmente possuído por ele. Ergueu a taça de champanha para a tela numa brincadeira meio zombeteira, como havia feito tantas vezes antes.
— Saúde!
Os olhos o fitavam, também.
"O que faria você, Dirk... fantástico Dirk?", pensou.
— Provavelmente diria: "Encontre os traidores e mate-os" — refletiu em voz alta —, e provavelmente teria razão.
O problema do traidor na polícia não o abalava tanto quanto a informação sobre a rede de espionagem Sevrin, suas ligações nos Estados Unidos e os lucros secretos e espantosos obtidos pelos comunistas na Grã-Bretanha. "Mas que diabo, onde Grant consegue todas essas informações?", perguntou a si mesmo, pela centésima vez.
Lembrou-se do primeiro encontro que tiveram. Alan Medford Grant era um homem baixo, com jeito de gnomo, quase calvo, e tinha olhos e dentes grandes. Usava um terno riscadinho e chapéu-coco, e Dunross gostou dele imediatamente.
— Não se preocupe, Sr. Dunross — dissera Grant quando Dunross o contratara em 1960, logo que se tornara tai-pan. — Asseguro-lhe que não haverá interesses conflitantes com o governo de Sua Majestade, se eu presidir o seu comitê de pesquisas, sem exclusividade, como combinamos. Para falar a verdade, já obtive a aprovação deles. Dar-lhe-ei apenas, confidencialmente, é claro, para o senhor pessoalmente, é claro, e com a publicação absolutamente vedada, dar-lhe-ei apenas as informações sigilosas que, na minha opinião, não põem em risco o interesse nacional. Afinal de contas, nossos interesses são os mesmos, não são?
— Acho que sim.
— Posso perguntar-lhe como soube de mim?
— Temos amigos em altas esferas, Sr. Grant. Em certos círculos o seu nome é muito famoso. Talvez até mesmo um secretário do exterior o recomendasse — acrescentara, delicadamente.
— Ah, sei.
— Nosso arranjo é satisfatório?
— Sim... um ano, inicialmente, podendo ser prorrogado para cinco, se tudo correr bem. Após os cinco?
— Mais cinco — disse Dunross. — Se obtivermos os resultados que quero, seu pagamento antecipado será dobrado.
— Ah, quanta generosidade! Mas posso perguntar-lhe por que está sendo tão generoso, talvez "extravagante" fosse a palavra certa, comigo e com esse comitê em projeto?
— Sun Tse disse: "O que permite a um sábio soberano ou a um bom general atacar, conquistar e obter coisas fora do alcance dos homens normais é o conhecimento antecipado. O conhecimento antecipado vem somente através dos espiões. Nada é mais importante para o Estado do que a qualidade dos seus espiões. É dez mil vezes mais barato pagar regiamente aos melhores espiões do que até mesmo a um pequeno exército pobremente".
Alan Medford Grant riu de orelha a orelha.
— Certíssimo! As minhas oito mil e quinhentas libras por ano são um régio pagamento, Sr. Dunross. Ah, sim, sem dúvida.
— Consegue pensar num melhor investimento para mim?
— Não, se eu atuar corretamente, se eu e os que escolher formos os melhores existentes. Mesmo assim, trinta e tantas mil libras em salários por ano... um fundo de até cem mil libras para... para informantes e informações, tudo dinheiro sigiloso... bem, espero que fique satisfeito com o seu investimento.
— Se você for o melhor, recuperarei dez mil vezes o meu investimento. Espero recuperá-lo dez mil vezes — disse, falando sério.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, é claro. Agora, especificamente, que tipo de informação quer?
— Toda e qualquer informação, comercial, política, que ajude a Struan a fazer planos antecipados, especialmente no tocante à costa do Pacífico, ao modo de pensar russo, americano e japonês. Nós próprios provavelmente saberemos mais sobre as atitudes chinesas. Por favor, dê-me sempre mais do que menos. Na verdade, qualquer coisa seria mais valiosa, porque estou querendo tirar a Struan do comércio da China... mais especificamente, quero que a companhia seja internacional, e quero diversificar, sair da nossa dependência atual do comércio com a China.
— Muito bem. Primeiro: não gostaria de confiar os nossos relatórios aos correios.
— Providenciarei um mensageiro.
— Obrigado. Segundo: preciso ter carta branca para escolher, nomear e demitir os outros membros do comitê... e gastar o dinheiro como achar apropriado.
— De acordo.
— Cinco membros serão suficientes.
— Quanto quer lhes pagar?
— Cinco mil libras por ano, pagamento antecipado, sem exclusividade, para cada um, seria excelente. Por esse preço posso conseguir os melhores homens. É. Nomearei membros associados para estudos especiais, à medida que for precisando. Como a maioria dos nossos contatos serão no exterior, muitos na Suíça, será que poderia haver fundos à disposição lá?
— Digamos que eu deposite a quantia total combinada trimestralmente numa conta suíça numerada. Pode sacar os fundos à medida que for precisando... somente a sua assinatura, ou a minha. Preste contas a mim, exclusivamente, trimestralmente. Se quiser estabelecer um código, tudo bem para mim.
— Excelente. Não poderei dar o nome de ninguém... não posso prestar contas das pessoas a quem vou dar o dinheiro.
Depois de uma pausa, Dunross disse:
— Está bem.
— Obrigado. Acho que nos entendemos. Pode me dar um exemplo do que deseja?
— Por exemplo, não quero ser pego de surpresa, como aconteceu com meu predecessor, no caso de Suez.
— Ah! Está se referindo ao fiasco de 1956, quando Eisenhower nos traiu de novo e causou o fracasso do ataque britânico-franco-israelense ao Egito... porque Násser nacionalizara o canal?
— É. Aquilo nos custou uma fortuna... acabou com os nossos interesses no Oriente Médio, quase nos arruinou. Se o tai-pan anterior tivesse sabido sobre um provável fechamento de Suez, teríamos ganho uma fortuna reservando espaço para carga, aumentando nossa frota... ou se tivéssemos conhecimento, antecipadamente, do modo de pensar americano, especialmente de que Eisenhower ficaria novamente do lado da Rússia, contra nós, poderíamos ter diminuído em muito as nossas perdas.
O homenzinho comentou, com tristeza:
— Sabe que ele ameaçou congelar todos os bens britânicos, franceses e israelenses nos Estados Unidos, instantaneamente, se não nos retirássemos de pronto do Egito, quando estávamos a poucas horas da vitória? Acredito que todos os nossos problemas atuais no Oriente Médio derivam daquela decisão americana. É. Inadvertidamente, os Estados Unidos aprovaram a pirataria internacional pela primeira vez, e estabeleceram um precedente para piratarias futuras. Nacionalização. Que piada! "Roubo" é uma palavra melhor... ou "pirataria". É. Eisenhower foi mal assessorado. E muito mais mal assessorado ao prosseguir com o insensato acordo político de Yalta, de um Roosevelt doente, do incompetente Attlee, permitindo que Stálin engolisse a maior parte da Europa, quando era militar-mente claro até para o político mais burro ou para o general mais turrão que era contrário aos nossos absolutos interesses nacionais, nossos e dos Estados Unidos, nos determos. Acho que Roosevelt realmente nos detestava, a nós e ao nosso Império Britânico.
O homenzinho formou um triângulo com os dedos e abriu um sorriso.
— Temo que haja uma grande desvantagem em me contratar, Sr. Dunross. Sou inteiramente pró-britânico, anticomunista e, especialmente, contra o KGB, que é o principal instrumento da política externa soviética, que é aberta e eternamente dedicada à nossa destruição, portanto o senhor pode dar o desconto em algumas das minhas previsões mais apimentadas, se quiser. Sou completamente contra um Partido Trabalhista dominado pela ala esquerdista, e constantemente lembro a quem queira ouvir que o hino do Partido Trabalhista é A bandeira vermelha. — Alan Medford Grant deu aquele seu sorriso de elfo. — É melhor que conheça a minha posição desde o início. Sou monarquista, legalista, e acredito no sistema parlamentar britânico. Jamais, conscientemente, lhe darei informações falsas, embora minhas avaliações sejam parciais. Posso perguntar-lhe qual é a situação política de vocês?
— Não temos política em Hong Kong, Sr. Grant. Não votamos, não temos eleições... somos uma colônia, especificamente uma colônia de porto livre, não uma democracia. A coroa governa... na verdade o governador o faz, despoticamente, em nome da coroa. Ele tem um conselho legislativo, mas é um conselho "vaca de presépio", e a orientação política histórica é o laissez-faire. Sabiamente, ele deixa as coisas como estão. Ouve a comunidade empresarial, faz mudanças sociais, muito cautelosamente, e deixa todos em paz para ganhar ou não ganhar dinheiro, criar, expandir-se, arruinar-se, ir ou vir, sonhar ou ficar acordado, viver ou morrer como puder. E o imposto máximo é de quinze por cento, mas só sobre dinheiro ganho em Hong Kong. Não temos política aqui, não queremos política aqui... nem a China quer que a tenhamos. Eles também são a favor do status quo. Minha posição política pessoal? Sou monarquista, a favor da liberdade, da pirataria e do livre comércio. Sou escocês, sou a favor da Struan, do laissez-faire em Hong Kong e da liberdade em todo o mundo.
— Acho que nos entendemos. Ótimo. Nunca trabalhei antes para um indivíduo, só para o governo. Esta será uma nova experiência para mim. Espero satisfazê-lo. — Grant fez uma pausa e pensou por um momento. — Como Suez em 56? — Formaram-se ruguinhas fundas ao redor dos olhos do homenzinho. — Muito bem, faça planos para a perda do Canal do Panamá pelos americanos.
— Isso é ridículo!
— Ora, não fique tão chocado, Sr. Dunross! É fácil demais. Bastam dez ou quinze anos de trabalho constante do inimigo e muito papo liberal nos Estados Unidos, muito bem auxiliados pelos inocentes úteis que acreditam na benevolência da natureza humana, acrescente a tudo isso uma quantidade modesta de agitação panamenha calculada, estudantes e coisa e tal (de preferência, ah, sempre estudantes), hábil e secretamente assistidos por alguns agitadores profissionais pacientes e altamente treinados, e a técnica pericial, o financiamento e um plano a longo prazo, oh, tão secretos, do KGB — pronto, no devido tempo o canal passaria das mãos dos Estados Unidos para as do inimigo.
— Eles jamais aceitariam isso.
— Certo, Sr. Dunross. Mas terão outra alternativa? Que garrote melhor contra seu principal inimigo capitalista declarado, em tempo de hostilidades, ou até de crise, do que ser capaz de impedir o Canal do Panamá, ou mesmo bloqueá-lo? Um navio afundado em qualquer um de uma centena de locais, ou uma tranca destruída, poderia deixar o canal obstruído durante anos.
Dunross lembrou-se de que servira mais dois drinques antes de responder:
— Está sugerindo seriamente que façamos planos para essa eventual conjuntura?
— Estou — disse o homenzinho, com sua extraordinária inocência. — Levo meu trabalho muito a sério, Sr. Dunross.
Meu trabalho, aquele que escolhi, é o de procurar, pôr a descoberto e avaliar as jogadas inimigas. Não sou anti-russo, antichinês, antigermânico oriental ou contra qualquer um do bloco... pelo contrário, desejo desesperadamente ajudá-los. Estou convencido de que estamos num estado de guerra, de que o inimigo de todo o povo são os membros do Partido Comunista, seja ele britânico, soviético, chinês, húngaro, americano, irlandês... até marciano... e que todos eles estão ligados, de um jeito ou de outro. E que o KGB, quer a gente goste ou não, está no centro da teia deles. — Tomou um gole da nova dose de uísque que Dunross acabara de servir-lhe. — Que uísque maravilhoso, Sr. Dunross.
— Loch Vey... fabricado numa pequena destilaria perto da nossa terra natal, em Ayr. É uma companhia da Struan.
— Maravilhoso!
Mais um gole apreciador, e Dunross lembrou-se de mandar uma caixa do uísque para Alan Medford Grant, pelo Natal... se os relatórios iniciais fossem interessantes.
— Não sou fanático, Sr. Dunross, nem agitador. Apenas uma espécie de repórter e de prognosticador. Há quem colecione selos. Eu coleciono segredos...
As luzes de um carro que dobrava a curva semi-escondida da estrada, lá embaixo, distraíram Dunross momentaneamente. Caminhou até a janela e ficou olhando o carro até ele sumir, apreciando o barulho do motor bem regulado. Depois, sentou-se numa cadeira de espaldar alto e deixou de novo o pensamento vagar. "É, Sr. Grant, o senhor realmente coleciona segredos", pensou, abalado como sempre pelo raio de alcance dos conhecimentos do homenzinho.
"Sevrin. Deus todo-poderoso! Se isso for verdade...
"Até que ponto você está sendo exato, dessa vez? Até onde confiarei em você, dessa vez... até onde me arriscarei?"
Em relatórios anteriores, Grant fizera duas previsões que, até então, haviam sido confirmadas. Com um ano de antecedência, Grant predissera que De Gaulle vetaria os esforços da Grã-Bretanha para ingressar no Mercado Comum Europeu, que a posição do general francês seria cada vez mais antibritânica, antiamericana e pró-soviética, e que De Gaulle, instado por influências externas e encorajado por um dos seus assessores mais chegados (um espião secretíssimo, dissimulado, do KGB), desfecharia um ataque a longo prazo na economia americana, especulando com ouro. Dunross achara que isso era excesso de imaginação, e perdera uma fortuna potencial.
Recentemente, com seis meses de antecedência, Grant previra a crise dos mísseis em Cuba, e que Kennedy bancaria o durão, imporia o bloqueio a Cuba, exerceria a pressão necessária e não se curvaria sob a tensão da proximidade, e que Khruchov recuaria sob pressão. Apostando que Grant estava certo, desta vez — embora, na época prevista, uma crise de mísseis cubana fosse altamente improvável —, Dunross ganhara meio milhão de libras para a Struan, comprando a termo títulos de açúcar havaiano, mais seiscentas mil na Bolsa, mais seiscentas mil para o fundo secreto do tai-pan... e cimentara um plano de longo alcance para investir em canaviais havaianos logo que pudesse obter o instrumento financeiro. "E agora obtive", disse a si mesmo, radiante, "a Par-Con."
— Quase obtive — resmungou, corrigindo-se.
"Até onde posso confiar neste relatório? Até o momento, o comitê de Alan Medford Grant foi um investimento gigantesco, a despeito de todos os seus meandros", pensou. "É. Mas é quase como ter meu próprio astrólogo. Alguns prognósticos exatos não significam que todos eles o serão. Hitler tinha o seu prognosticador. Júlio César também. Seja sensato, seja cauteloso", lembrou a si mesmo.
"O que fazer? É agora ou nunca."
Sevrin. Alan Medford Grant escrevera: "Documentos trazidos a nós, consubstanciados pela espiã francesa Marie d'Orléans, presa pela Süreté no dia 16 de junho, indicam que o Departamento V do KGB (Desinformação — extremo oriente) tem bem colocada uma rede de espionagem secretíssima, até agora desconhecida, espalhada por todo o Extremo Oriente, codinome 'Sevrin'. O propósito da Sevrin está claramente definido no principal documento roubado:
"Objetivo: Desmantelar a China revisionista — formalmente reconhecida pelo Comitê Central da URSS como o principal inimigo, perdendo apenas para os Estados Unidos capitalista.
"Norma: A eliminação permanente de Hong Kong como o bastião do capitalismo no Extremo Oriente e fonte preeminente para a China de todas as moedas estrangeiras, assistência estrangeira e toda assistência técnica e manufatureira, de qualquer tipo.
"Método: Infiltração a longo prazo na imprensa e meios de comunicação, governo, polícia, empresariado e educação por estrangeiros amistosos controlados pelo Centro... mas somente segundo normas especialíssimas, em toda a Ásia.
"Data de início: Imediata.
"Duração da operação: Provisoriamente, trinta anos.
“Data-alvo: 1980-83.
"Classificação: Vermelho Um.
"Fundos: O máximo.
"Aprovação: L. B., 14 de março de 1950.
"É interessante notar", continuara Grant, "que o documento foi assinado em 1950 por L. B. Supõe-se que seja La-vrenti Béria, quando a Rússia soviética era abertamente aliada da China comunista, e que, já naquele tempo, a China fosse secretamente considerada o seu inimigo número 2 (reportar-se ao nosso relatório anterior, 3/1962, Rússia versus China).
"A China, historicamente, é o grande prêmio que sempre foi (e sempre será) cobiçado pela Rússia imperialista e hegemônica. A posse da China, ou sua mutilação em Estados súditos balcanizados, é a tônica perpétua da política externa russa. Primeiramente, é claro, virá a eliminação da Europa Ocidental, pois então, segundo acredita a Rússia, a China será engolida sem problemas.
"Os documentos revelam que a célula de Hong Kong da Sevrin consiste em um superintendente residente, de codinome Arthur, e seis agentes. Nada sabemos sobre Arthur, exceto que é agente do KGB desde que foi recrutado na Inglaterra, nos anos 30 (não se sabe se nasceu na Inglaterra, ou se seus pais são ingleses, mas deve ter quarenta e tantos ou cinqüenta e poucos anos). Sua missão, naturalmente, é uma operação ultra-secreta, a longo prazo.
"Documentos de apoio altamente secretos do serviço de informações, roubados da STB (Segurança Secreta do Estado) da Tchecoslováquia, datados de 6 de abril de 1959, dizem, em parte: '...entre 1946 e 1959, seis agentes-chaves, ultra-secretos, foram recrutados através de informação fornecida pelo superintendente, Arthur, um em cada um dos seguintes lugares: Ministério Colonial de Hong Kong (codinome Charles), Tesouro (Mason), Base Naval (John), Banco de Londres, Cantão e Xangai (Vincent), Companhia Telefônica de Hong Kong (William) e Struan e Companhia (Frederick). Segundo as normas costumeiras, só o superintendente conhece a verdadeira identidade dos demais. Sete endereços seguros foram estabelecidos, entre eles o Sinclar Towers, na ilha de Hong Kong, e o Hotel Nove Dragões, em Kowloon. O contato da Sevrin em Nova York tem o codinome Guillio. É muito importante para nós por causa das suas ligações com a Máfia e a CIA'."
Grant continuara dizendo "que se acreditava que Guillio fosse Vincenzo Banastasio, um escroque importante e atual chefão da família Sallapione. Isso está sendo verificado pelas nossas fontes americanas. Não sabemos se o agente inimigo infiltrado na polícia (tratamos disso em detalhes em outra seção) faz ou não parte da Sevrin, mas presumimos que sim.
"Na nossa opinião, a China será forçada a buscar um aumento cada vez maior do comércio com o Ocidente, para contrabalançar a hegemonia imperialista soviética e para preencher o vácuo e o caos criados pela retirada súbita, em 1960, de toda a ajuda técnica e financeira dos soviéticos. As forças armadas da China precisam desesperadamente se modernizar. As colheitas têm sido ruins. Portanto, todas as formas de materiais estratégicos e equipamentos militares encontrarão um mercado fácil por muitos anos, assim como a comida, alimentos básicos. A compra de títulos a termo de arroz americano é um investimento de longo alcance recomendado.
"Tenho a honra de ser, senhor, seu servo obediente, A. M. G., Londres, 15 de agosto de 1963."
"Jatos, tanques, porcas, parafusos, foguetes, motores, caminhões, gasolina, pneus, material eletrônico e alimentos", pensou Dunross, animadíssimo. "Uma variedade ilimitada de mercadorias, fáceis de obter, fáceis de transportar por navio, e nada no mundo como uma guerra para dar lucro, se a gente sabe comerciar. Mas a China não está comprando agora, mesmo que esteja precisando, não importa o que Grant diga.
"Quem pode ser Arthur?
"E na Struan, quem? Santo Deus! John Chen e Tsu-yan, e armas contrabandeadas, e agora um agente do KGB lá dentro. Quem? E quanto a..."
Ouviu uma leve batidinha na porta.
— Entre — falou, reconhecendo o modo de bater da mulher.
— Ian, são quase oito horas — disse Penelope. — Achei melhor avisá-lo. Sabe como você é.
— Sei.
— Que tal o dia de hoje? Horrível o que aconteceu com John Chen, não é? Leu os jornais, não leu? Vai descer?
— Vou. Champanha?
— Obrigada.
Ele serviu uma taça para ela, e voltou a encher a sua.
— Ah, Penn, a propósito, convidei um sujeito que conheci hoje à tarde, ex-membro da RAF. Pareceu-me um cara simpático... Peter Marlowe.
— Piloto de caças?
— É. Mas de Hurricanes, não Spits. Vestido novo?
— É.
— Está bonita — disse ele.
— Obrigada, mas não estou. Sinto-me tão velha! Mas obrigada. — Sentou-se na outra poltrona de braços, seu perfume tão delicado quanto suas feições. — Peter Marlowe, é o nome dele?
— É. O pobre infeliz foi preso em Java, em 42. Foi prisioneiro de guerra durante três anos e meio.
— Oh, pobre homem. Foi abatido?
— Não, os japoneses destruíram o aeroporto antes que ele pudesse escapar. Talvez tenha tido sorte. Os Zeros pegaram dois aviões em terra, e os dois últimos pouco depois de terem levantado vôo... os pilotos morreram queimados. Parece que aqueles Hurricanes eram os últimos dos Poucos¹... o resto de toda a defesa aérea do Extremo Oriente. Que estrago, aquele!
¹ Referência à frase de Churchill: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos". (N. da T.)
— Terrível.
— É. Graças a Deus nossa guerra foi na Europa. — Dunross observou-a. — Ele disse que passou um ano em Java, depois os japoneses o mandaram para Cingapura, num destacamento de trabalho.
— Para Changi? — perguntou, a voz diferente.
— É.
— Ah!
— Passou dois anos e meio ali. — "Changi", em malaio, queria dizer "trepadeira", e Changi era o nome da cadeia em Cingapura usada pelos japoneses, na Segunda Guerra Mundial, como um dos seus nefastos campos para prisioneiros de guerra.
Ela pensou por um momento, depois deu um sorriso nervoso:
— Será que ele conheceu Robin lá?
Robin Grey era irmão dela, seu único parente vivo; seus pais haviam morrido num ataque aéreo a Londres, em 1943, pouco antes de seu casamento com Dunross.
— Marlowe disse que sim, que parecia recordar-se dele, mas era evidente que não queria falar daquela época, portanto não puxei mais pelo assunto.
— Posso imaginar. Disse a ele que Robin era meu irmão?
— Não.
— Quando é que Robin deve voltar para cá?
— Não sei ao certo. Dentro de alguns dias. Esta tarde o governador me disse que a delegação está agora em Pequim. — Uma delegação comercial parlamentar britânica, com deputados dos três partidos (Conservador, Liberal e Trabalhista), fora convidada em Londres por Pequim para debater todas as formas de comércio. A delegação chegara a Hong Kong fazia duas semanas e seguira diretamente para Cantão, onde todas as negociações comerciais eram realizadas. Era muito raro alguém receber um convite, muito menos uma delegação parlamentar, e mais raro ainda o convite incluir uma ida a Pequim. Robin Grey era um dos membros, representando o Partido Trabalhista. — Penn, querida, não acha que devíamos receber Robin, dar uma festa para ele? Afinal, há anos que não o vemos, e esta é a primeira vez que ele vem à Ásia... não acha que está na hora de esquecer o passado e fazer as pazes?
— Ele não receberá convites para a minha casa. Para nenhuma das minhas casas.
— Não acha que devia relaxar um pouco? Afinal, águas passadas não movem moinhos.
— Não, eu o conheço, você não. Robin tem a vida dele, nós temos a nossa. Há anos que eu e ele chegamos a este acordo. Não tenho a menor vontade de revê-lo. É horrível, perigoso, desbocado e um chato de galocha.
Dunross riu.
— Concordo que seja odioso, e detesto suas opiniões políticas... mas é apenas um entre meia dúzia de deputados. Esta delegação é importante. Tenho que entretê-los de alguma forma, Penn.
— Pois faça-o, Ian. Mas não aqui, de preferência. Ou então me avise com bastante antecedência, para eu ter algum mal-estar, e providenciar para que as crianças também tenham. É uma questão de prestígio, e ponto final. — Penelope sacudiu a cabeça, afastando o mau humor. — Deus! Não vamos deixar que ele estrague esta noite! O que esse Marlowe está fazendo em Hong Kong?
— É escritor. Quer escrever um livro sobre Hong Kong. Mora nos Estados Unidos, agora. A mulher dele também vem. Ah, a propósito, convidei também os americanos, Linc Bartlett e Casey Tcholok.
— Ah! — Penelope Dunross achou graça. — Ora, afinal quatro ou quarenta pessoas a mais não farão nenhuma diferença... não conheço a maioria mesmo, e Claudia organizou tudo com sua eficiência de sempre. — Arqueou uma sobrancelha. — Vejam só! Um contrabandista de armas entre os piratas! Isso não vai nem causar uma pequena comoção.
— E ele é?
— Todo mundo diz que sim. Não leu o artigo do Mirror de hoje à tarde, Ian? Ah Tat está convencida de que o americano dá azar. Informou a todos os empregados, às crianças e a mim, o que torna a coisa oficial. Ah Tat contou a Adryon que o astrólogo dela pediu que ela dissesse a você para ficar alerta contra a má influência vinda do Leste. Ah Tat está certa de que isso se refere aos ianques. Ainda não veio fazer fofoca no seu ouvido?
— Ainda não.
— Deus, como gostaria de poder tagarelar em cantonense como você e as crianças. Diria àquela harpia velha para guardar para si suas superstições e opiniões... ela é uma péssima influência...
— Daria a vida pelas crianças.
— Sei que é a sua gan sun, e que praticamente o criou, e que se acha uma dádiva de Deus para o clã dos Dunrosses. Mas, no que me diz respeito, é uma vaca velha rabugenta e detestável, eu a odeio. — Penelope sorriu docemente. — Ouvi dizer que a moça americana é bonita.
— Atraente... não bonita. Andrew está cortando um dobrado com ela.
— Acredito. Uma dama falando de negócios! Aonde vamos parar, neste nosso grande mundo! Ela é capaz?
— Ainda é cedo para dizer. Mas é muito esperta. Está criando... irá criar situações constrangedoras, sem dúvida.
— Já viu Adryon hoje?
— Não... o que foi? — perguntou, reconhecendo imediatamente seu tom de voz.
— Andou mexendo de novo no meu armário... metade das minhas melhores meias sumiu, o resto está espalhado, meus lenços de seda estão todos remexidos, minha blusa e meu cinto novos desapareceram. Mexeu até no meu melhor Hermes... essa garota é o fim da picada!
— Com dezenove anos, não é uma garota — disse ele, cansadamente.
— É o fim da picada! Perdi a conta das vezes que falei com ela!
— Falarei de novo.
— Não vai adiantar nada.
— Eu sei.
Ela riu junto com ele.
— Ela é uma parada!
— Tome. — Entregou a ela um estojo fino. — Feliz vigésimo!
— Oh, obrigada, Ian. O seu está lá embaixo. Você o... — Interrompeu-se e abriu o estojo. Continha uma pulseira de jade entalhado, o jade encravado em filigrana de prata, finíssima, antiqüíssima... uma peça de colecionador. — Ah, que lindo! Obrigada, Ian. — Colocou-a no pulso, sobre a corrente fina de ouro que usava, e ele não notou prazer verdadeiro ou desapontamento verdadeiro no seu tom de voz, embora estivesse atento às nuanças. — É uma beleza — falou, debruçando-se para a frente e roçando os lábios no rosto dele. — Obrigada, querido. Onde o conseguiu? Em Formosa?
— Não, aqui na Cat Street. Na loja de Wong Chun Kit, ele ga...
A porta se escancarou, e uma garota entrou atropelada-mente. Era alta, esguia e claríssima, e disse, depressa e sem fôlego:
— Espero que não haja problemas. Convidei um rapaz para hoje à noite e acabo de receber seu telefonema confirmando que virá e que vai chegar atrasado. Mas achei que não faria mal. Ele é legal, um barato.
— Pelo amor de Deus, Adryon — disse Dunross, suavemente —, quantas vezes já lhe disse para bater antes de irromper sala adentro, e quer por favor falar inglês? Que diabo é um barato?
— Bom, grande, legal, um barato. Desculpe, papai, mas você é mesmo muito careta, porque "legal" e "um barato" estão na moda, até mesmo em Hong Kong. Até já. Tenho que correr, depois da festa eu vou sair... vou chegar tarde, portanto não...
— Espere um mi...
— Essa blusa é minha, a minha blusa nova — explodiu Penelope. — Adryon, tire-a imediatamente! Já lhe disse umas cinqüenta vezes para não mexer no meu armário!
— Ora, mamãe — retrucou Adryon, com a mesma brusquidão —, você não está precisando dela, não posso usá-la esta noite? — O tom de voz dela mudou. — Por favor! Puxa, por favor! Papai, fale com ela. — Passou a falar em perfeito cantonense de amah: — Honorável Pai... por favor, ajude sua Filha Número Um a obter o impossível de obter, senão eu chorarei, chorarei, chorarei oh ko... — Depois, no mesmo fôlego, voltando ao inglês: — Mamãe... você não precisa dela, e vou tomar cuidado, juro. Por favor!
— Não.
— Vamos, por favor, eu tomo cuidado, prometo.
— Não.
— Mamãe!
— Bem, se você pro...
— Puxa, obrigada.
A garota riu de orelha a orelha, virou-se e saiu correndo, batendo a porta atrás de si.
— Puta que o pariu — disse Dunross, com azedume —, mas por que as portas sempre têm que bater atrás dela?
— Bem, pelo menos agora ela não bate de propósito. — Penelope soltou um suspiro. — Acho que não agüentaria passar por aquilo tudo de novo.
— Nem eu. Graças a Deus Glenna é razoável.
— É puramente temporário, Ian. Ela também puxou ao pai, como Adryon.
— Hum! Eu não tenho um gênio dos diabos — disse ele, vivamente. — E já que estamos falando no assunto, estou torcendo para que Adryon tenha encontrado um sujeito decente para trazer, ao invés do palhaço de costume. Quem é esse que vem hoje?
— Não sei, Ian. Também estou sabendo disso agora.
— Eles são sempre um horror! O gosto dela em matéria de homem é um espanto... Lembra-se daquele pateta de cabeça de melão com braços neolíticos por quem estava "loucamente apaixonada"? Santo Deus, mal tinha quinze anos e...
— Tinha quase dezesseis.
— Como era o nome dele? Ah, é, Byron. Byron, pela madrugada!
— Você não devia ter ameaçado estourar os miolos dele, Ian. Era só uma paixãozinha juvenil.
— Era mais uma paixão de gorila, por Deus — resmungou Dunross, com maior azedume. — Era um maldito gorila... Lembra-se do outro, daquele antes do desgraçado do Byron... aquele filho da mãe psiquiátrico... como se chamava?
— Victor. É, Victor Hopper. Foi ele que... é, estou lembrando, foi ele que perguntou se não faria mal se ele dormisse com Adryon.
— Ele o quê?
— Foi, sim. — Sorriu para ele, não tão inocentemente. — Não lhe contei, na época... achei que seria melhor.
— Ele o quê?
— Não fique irritado agora, Ian. Isso aconteceu há quatro anos. Eu disse a ele que não, não no momento, que Adryon tinha apenas catorze anos, mas sim, certamente, quando tivesse vinte e um anos. Aquele foi outro que morreu no nascedouro.
— Santo Deus! Ele perguntou se po...
— Pelo menos perguntou, Ian! Já é alguma coisa. Tudo isso é tão comum! — Levantou-se, serviu mais champanha para ele e para si mesma. — Você tem apenas mais uns dez anos de purgatório, e depois virão os netos. Feliz aniversário de casamento, e o melhor das coisas britânicas para você!
Ela riu, encostou a taça na dele, bebeu e sorriu para ele.
— Está certa, mais uma vez — retrucou ele, devolvendo o sorriso, gostando muito dela.
Tantos anos, anos bons. "Tive sorte", pensou. "É. Fui abençoado, naquele primeiro dia." Estava no seu posto da RAF em Biggin Hill, numa manhã quente e ensolarada de agosto de 1940, durante a Batalha da Grã-Bretanha, e ela era do Corpo Auxiliar Feminino, recém-destacada para lá. Era o oitavo dia de guerra dele, sua terceira missão naquele dia, e a primeira vez que abatera alguém. Seu Spitfíre estava todo pontilhado de buracos de bala, partes da asa haviam sido derrubadas, a cauda parecia tatuada. Por todas as regras da sorte, devia estar morto, mas não estava, e o Messerschmitt e seu piloto estavam, e ele estava em casa, seguro, o sangue fervendo, tonto de medo e vergonha e alívio porque voltara, e o jovem que vira na outra cabine de piloto, o inimigo, incendiara-se berrando, enquanto descia em espiral.
— Alô, senhor — dissera Penelope Grey. — Bem-vindo, senhor. Tome.
Entregara-lhe uma xícara de chá quente e doce, e nada mais dissera, embora devesse ter começado imediatamente a interrogá-lo sobre os detalhes da missão... fazia parte do Serviço de Comunicações. Ela nada dissera, apenas sorrira, dando-lhe tempo para descer dos céus da morte para a vida, novamente. Ele não lhe agradecera, apenas tomara o chá, que fora o melhor que jamais bebera.
— Peguei um Messerschmitt — dissera, quando estava em condições de falar, a voz tão trêmula quanto os joelhos. Não se lembrava de ter se soltado dos cintos de segurança, de sair da cabine ou de entrar no caminhão junto com os outros sobreviventes. — Era um 109.
— Sim, senhor, o líder da Esquadrilha Miller confirmou a destruição do aparelho inimigo e disse que o senhor se aprontasse, pois deve voltar a subir a qualquer minuto. Vai levar o Poppa Mike Kilo, desta vez. Obrigada pelo avião derrubado, senhor, é um daqueles demônios a menos... ah, como gostaria de poder ir com vocês para ajudar a matar todos aqueles monstros...
Mas eles não eram monstros, pensou, pelo menos o primeiro piloto e o primeiro avião que abatera não haviam sido... apenas um jovem como ele próprio, quem sabe da mesma idade, que se incendiara berrando, que morrera berrando, uma folha caída em chamas, e naquela tarde, ou na próxima, ou em breve, seria a vez dele... inimigos demais, gente nossa de menos.
— Tommy voltou, Tom Lane?
— Não, senhor. Lamento, senhor. Ele... o líder da esquadrilha disse que o capitão-aviador Lane foi derrubado sobre Dover.
— Tenho pavor de ser derrubado, de pegar fogo — dissera ele.
— Ah, mas não vai, senhor, não o senhor. Eles não vão derrubá-lo. Eu sei. Não vai, senhor, não, o senhor não. Nunca irão pegá-lo, nunca, nunca, nunca — dissera ela, os olhos azuis muito claros, cabelos claros, rosto bonito, dezoito anos incompletos, mas forte, muito forte e muito confiante.
Ele acreditara nela, e sua fé o acompanhara durante mais quatro meses de missões — às vezes cinco missões por dia — e mais aviões derrubados, e, embora ela estivesse errada e mais tarde ele também tivesse sido acertado em pleno ar, ele sobreviveu. Apenas se queimou um pouquinho. E depois, quando saiu do hospital, impossibilitado para sempre de voltar a pilotar, eles se casaram.
— Nem parece que foram vinte anos — disse ele, contendo a sua felicidade.
— E mais dois antes — disse ela, contendo a sua felicidade.
— E mais dois na...
A porta se abriu. Penelope soltou um suspiro quando Ah Tat invadiu o aposento, falando pelos cotovelos em cantonense.
— Ayeeyah, meu Filho, mas você ainda não está pronto, os nossos honrados convidados chegarão a qualquer momento, e o nó de sua gravata ainda não foi dado, e aquele estrangeiro sem mãe trazido desnecessariamente de Kwantung Norte para a nossa casa para cozinhar... aquele rebento fedido de uma meretriz de um dólar de Kwantung Norte, de onde vêm os melhores ladrões e as piores prostitutas, e que se considera um cozinheiro... Ah!... Esse homem e a sua equipe igualmente desprezível estão sujando a nossa cozinha e roubando a nossa paz. Oh ko — continuou a velhinha enrugada, sem tomar fôlego, enquanto seus dedos encurvados subiam automaticamente e habilmente davam o nó na gravata dele — e isso não é tudo! A Filha Número Dois... a Filha Número Dois não quer botar o vestido que a Honorável Primeira Mulher escolheu para ela, e está tendo um ataque de raiva que se ouve em Java! Eeee, esta família! Tome, meu Filho — tirou do bolso um envelope de telex e passou-o a Dunross —, eis outra mensagem dos bárbaros dando mais parabéns por este dia feliz, e que sua pobre velha Mãe teve que trazer ela mesma, escada acima, com suas pobres e velhas pernas, porque os outros criados ociosos são vadios e preguiçosos...
Fez uma pausa momentânea para tomar fôlego.
— Obrigado, Mãe — agradeceu ele, cortesmente.
— Na época do seu Honorável Pai, os criados trabalhavam e sabiam o que fazer, e sua velha Mãe não tinha que aturar estranhos sujos na nossa Casa Grande! — Foi saindo, xingando ainda mais o pessoal do bufê. — Não se atrase, Filho, senão...
Ainda falava, mesmo depois de ter fechado a porta.
— O que há com ela? — indagou Penelope, desanimada.
— Está reclamando do pessoal do bufê, não gosta de estranhos... sabe como ela é.
Abriu o envelope, onde estava o telex dobrado.
— O que estava falando de Glenna? — perguntou a mulher, tendo reconhecido yee-chat, Segunda Filha, embora seu cantonense fosse mínimo.
— Só que estava tendo um ataque por causa do vestido que você escolheu para ela.
— O que há de errado nele?
— Ah Tat não disse. Olhe, Penn, quem sabe Glenna devesse ir logo para a cama... já está quase passando da hora de ela dormir e...
— Imagine! Só quando as galinhas criarem dentes. Até mesmo a Bruxa Struan não conseguiria evitar que Glenna comparecesse à sua primeira festa adulta, como ela diz. Você concordou, Ian, você concordou. Eu, não. Foi você!
— É, mas não ach...
— Não. Tem idade suficiente. Afinal, está com treze anos. — Penelope terminou calmamente o seu champanha. — Mesmo assim, agora vou ter uma palavrinha com a senhorita, pode deixar.
Levantou-se. Depois, notou a fisionomia dele, que fitava o telex.
— O que aconteceu?
— Um empregado nosso foi morto em Londres. Grant. Alan Medford Grant.
— Ah. Será que eu ò conhecia?
— Acho que foi apresentada a ele uma vez, em Ayrshire. Era um homenzinho com jeito de gnomo. Esteve numa das nossas festas no Castelo Avisyard... na nossa última viagem.
Ela franziu o cenho.
— Não me lembro. — Pegou o telex que ele lhe oferecia. Dizia: "Lamento informar-lhe que A. M. Grant foi morto em acidente de motocicleta hoje de manhã. Os detalhes seguirão quando eu os tiver. Lamento. Lembranças, Kiernan". — Quem é Kiernan?
— O assistente dele.
— Esse Grant... era amigo seu?
— De certo modo.
— É importante para você?
— É.
— Ah, sinto muito.
Dunross forçou-se a dar de ombros e a manter a voz serena. Mas, no íntimo, praguejava obscenamente.
— Coisas da vida. Joss.
Penelope queria lamentar com ele, reconhecendo de pronto a profundidade do choque que tivera. Sabia que ele estava perturbadíssimo, tentando disfarçar... e queria saber imediatamente quem era e que importância tinha aquele desconhecido. Mas ficou calada.
"Esse é o meu papel", lembrou a si mesma. "Não fazer perguntas, ficar calma e estar presente... para apanhar os cacos, mas só quando ele me permite."
— Vai descer?
— Num minuto.
— Não demore, Ian.
— Está bem.
— Mais uma vez, obrigada pela minha pulseira — disse, apreciando-a.
— De nada — ele respondeu.
Mas ela sabia que ele não a escutara, de verdade. Já estava ao telefone, pedindo uma ligação interurbana. Ela saiu e fechou a porta suavemente, e ficou parada tristemente no longo corredor que levava às alas leste e oeste, o coração disparado. "Malditos sejam todos os telex e todos os telefones, e maldita seja a Struan e Hong Kong, e malditos sejam todas as festas e todos os bicões, e, ah, como gostaria que pudéssemos ir embora para sempre, esquecer Hong Kong, esquecer o trabalho, a Casa Nobre, os Grandes Negócios, a costa do Pacífico e a Bolsa de Valores, e maldi..."
— Mamãeeeee!
Ouviu a voz estridente de Glenna vinda do fundo do seu quarto, dobrando o ângulo mais afastado da ala leste, e imediatamente todos os seus sentidos se concentraram. Havia raiva frustrada na voz de Glenna, mas não havia perigo, portanto ela não se apressou, simplesmente respondeu:
— Já vou... o que é, Glenna ?
— Onde você estááááãá?
— Já estou indo, querida — respondeu, pensando agora em coisas importantes. "Glenna vai ficar linda naquele vestido. Ah, já sei", pensou, satisfeita, "vou lhe emprestar o meu colarzinho de pérolas. Vai ficar perfeito." Apressou o passo.
Do outro lado do porto, em Kowloon, o sargento comissionado Tang-po, DIC, subiu as escadas desconjuntadas e entrou na sala. O âmago da sua tríade secreta já estava ali.
— Enfiem isso nesse osso que alguns de vocês têm entre as orelhas: os Dragões querem que se encontre o Chen da Casa Nobre, e que esses Lobisomens bexiguentos, comedores-de-bosta, sejam presos tão rapidamente que até os deuses piscarão os olhos!
— Sim, senhor — responderam os subalternos em coro, chocados com o seu tom de voz.
Estavam no esconderijo de Tang-po, um pequeno e desenxabido apartamento de três peças, atrás de uma porta de entrada desenxabida no quinto andar de um prédio de apartamentos igualmente desenxabido, encimando umas lojas muito modestas num beco sujo, a apenas três quarteirões de distância do quartel-general da polícia do distrito de Tsim Sha Tsui, que ficava de frente para o porto e o Pico, na ponta da península de Kowloon. Eles eram em número de nove: um sargento, dois cabos, os outros guardas — todos detetives à paisana do DIC, todos cantonenses, todos escolhidos a dedo, tendo feito juramentos de sangue, de lealdade e sigilo. Eram o tong, ou irmandade secreta, de Tang-po, que protegia toda a jogatina de rua no distrito de Tsim Sha Tsui.
— Olhem em toda parte, falem com todo mundo. Temos três dias — falou Tang-po. Era um homem corpulento, de cinqüenta e cinco anos, com cabelos levemente grisalhos e sobrancelhas cerradas, e seu posto era o mais alto que podia alcançar, sem ser oficial. — Esta é a minha ordem, de todos os meus irmãos Dragões e do Altíssimo em pessoa. Além disso — acrescentou, com azedume —, a Grande Montanha de Bosta prometeu rebaixar-nos e destacar-nos para a fronteira ou outros lugares, a todos nós, se falharmos, e esta é a primeira vez que nos ameaça com isso. Que todos os deuses mijem de uma grande altura sobre os demônios estrangeiros, especialmente aqueles fornicadores sem mãe que não aceitam sua situação difícil e se comportam como gente civilizada!
— Amém! — exclamou o sargento Lee, com grande fervor. Ele era católico de vez em quando, porque, na juventude, freqüentara uma escola católica.
— A Grande Montanha de Bosta deixou bem claro, hoje à tarde: resultados, caso contrário, rumo à fronteira, onde não há um penico onde mijar, nem ninguém para ser extorquido num raio de trinta quilômetros. Ayeeyah, que todos os deuses nos protejam do fracasso!
— É — disse o cabo Ho, em nome de todos, tomando notas no seu livro. Era um homem de feições marcadas, que estudava à noite para ser contador, e era ele que cuidava dos livros da irmandade e das atas das suas reuniões.
— Irmão Mais Velho — começou o sargento Lee, cortesmente —, há uma recompensa fixa que possamos oferecer aos nossos informantes? Há um máximo ou um mínimo?
— Há — Tang-po lhes disse, acrescentando cuidadosamente: — O Grande Dragão falou cem mil HK, se for dentro de três dias... — A sala ficou repentinamente silenciosa, com o vulto da recompensa — metade para encontrar o Chen da Casa Nobre, metade para encontrar os raptores. E uma bonificação de dez mil para o irmão cujo informante apresentar ou um ou outro... e uma promoção.
— Dez mil por Chen e mais dez mil pelos raptores? — indagou o cabo. "Oh, deuses, concedam-me o prêmio", orava ele, assim como oravam os demais. — É isso mesmo, Irmão Mais Velho?
— Dew neh loh moh, foi o que eu disse — replicou Tang-po bruscamente, tirando baforadas do cigarro. — Está com as orelhas cheias de pus?
— Não, lamento, Honorável Senhor. Por favor, desculpe.
Todos estavam absortos no prêmio. O sargento Lee pensava: "Eee, dez mil, e promoção, se for dentro de três dias! Ah, se for dentro de três dias, então será a tempo para o Dia da Corrida, e aí... Ah, todos os deuses grandes e pequenos, abençoem-me uma vez, e a segunda vez na loteria dupla de sábado".
Tang-po estava consultando suas anotações.
— Vamos agora tratar de outros assuntos. Através da cooperação do Diurno Chan e do Honorável Song, a irmandade poderá usar os chuveiros deles no Victoria diariamente entre oito e nove horas da manhã, não mais entre sete e oito horas, como antes. Mulheres e concubinas numa base de rodízio. Cabo Ho, reorganize o rodízio.
— Ei, Honrado Senhor — chamou um dos jovens detetives —, ouviu falar da Pêlos Púbicos Dourados?
— Hem?
O jovem relatou o que o Diurno Chang lhe contara, pela manhã, quando fora tomar café na cozinha do hotel. Riram.
— Ayeeyah, imagine só! Como ouro, heya?
— Já deitou com algum demônio-fêmea estrangeiro, Honorável Senhor?
— Não, nunca. Não. Ayeeyah, só de pensar... eca!
— Eu gostaria de possuir uma — falou Lee, com uma risada —, só para ver como é a coisa!
Todos riram com ele, e um falou:
— Um Portão de Jade é um Portão de Jade, mas dizem que algumas fêmeas estrangeiras são tortas!
— Ouvi dizer que são rachadas de banda!
— Honorável Senhor, mais uma coisa — o jovem detetive falou, quando as risadas haviam cessado. — O Diurno Chang me disse que lhe contasse que a Pêlos Púbicos Dourados tem um transmissor-receptor em miniatura... o melhor que ele já viu, melhor do que qualquer um que tenhamos, mesmo na Seção Especial. Ela o leva sempre consigo.
Tang-po fitou-o.
— Curioso. Ora, por que um demônio-fêmea estrangeiro iria querer uma coisa dessas?
Lee perguntou:
— Algo a ver com as armas?
— Não sei, Irmão Mais Moço. Mulheres com transmissores-receptores? Interessante. Não estava na bagagem dela quando o nosso pessoal a revistou, ontem à noite, portanto tinha que estar na bolsa. Bom, muito bom. Cabo Ho, depois da nossa reunião, deixe um presente para o Diurno Chang, duas vermelhas. — Uma nota vermelha valia cem HK. — Realmente, gostaria de saber para quem se destinavam aquelas armas — acrescentou, pensativo. — Certifiquem-se de que todos os informantes saibam que também estou muito interessado nisso.
— O Chen da Casa Nobre está metido com as armas e os demônios estrangeiros? — quis saber Lee.
— Acho que sim, Irmão Mais Moço, acho que sim. Outra curiosidade... mandar uma orelha não é civilizado... não cedo assim. Não é nada civilizado.
— Ah, então acha que os Lobisomens são demônios estrangeiros? Ou mestiços fornicadores? Ou portugueses?
— Não sei — disse Tang-po, com azedume. — Mas aconteceu no nosso distrito, portanto é uma questão de prestígio para todos nós. A Grande Montanha de Bosta está com muita raiva. Ele também está desprestigiado.
— Eee — comentou Lee —, aquele sacana tem um gênio dos diabos!
— É. Quem sabe a informação sobre o transmissor-receptor o acalme um pouco. Acho que vou pedir a todos os meus irmãos para ficarem de olho na Pêlos Púbicos Dourados e no seu amigo contrabandista de armas, por via das dúvidas. Ora, havia mais alguma coisa... — Novamente, Tang-po consultou as anotações. — Ah, sim, por que a nossa contribuição da Boate Recepcionista Feliz baixou trinta por cento?
— Ela mudou de dono, Honrado Senhor — respondeu o sargento Lee, em cuja zona ficava o cabaré. — Pok Um Olho Só vendeu a casa para um xangaiense sacana chamado Wang... Wang Feliz. Wang Feliz disse que a Graxa Fragrante é muito alta, os negócios vão mal, muito mal.
— Dew neh loh moh para todos os xangaienses. E vão mesmo?
— O movimento baixou, mas não muito.
— É verdade, Honrado Senhor — falou o cabo Ho. — Estive lá à meia-noite para recolher o dinheiro adiantado da semana, a bosta do lugar fedorento estava meio cheio.
— Havia ali demônios estrangeiros?
— Dois ou três, Honrado Senhor. Ninguém de importância.
— Dê ao Honorável Wang Feliz um recado meu: ele tem três semanas para melhorar os negócios. Depois, vamos pensar de novo no caso dele. Cabo Ho, diga a algumas garotas do Grande Novo Oriental para recomendarem a Recepcionista Feliz por um mês, mais ou menos... elas têm bastantes fregueses entre os demônios estrangeiros... e diga ao Wang que vai chegar um porta-aviões nuclear, o Corregidor, depois de amanhã, para R e R... — Ele usou as letras inglesas, pois todos compreendiam rest and recreation¹ da época da Guerra da Coréia.
¹ "Descanso e recreação." (N. da T.)
— Perguntarei ao meu Irmão Dragão em Wanchai e na zona do cais se Wang Feliz pode distribuir por lá alguns cartões de visita. Cerca de mil bárbaros do País Dourado ajudariam muito a receita! Vão passar oito dias aqui.
— Honrado Senhor, farei isso ainda hoje — prometeu o cabo Ho.
— Meu amigo da polícia marítima me contou que vai haver muitos vasos de guerra em visita, brevemente; a Sétima Frota Americana está sendo aumentada. — Tang-po franziu a testa. — Dobrada, segundo ele. O que se comenta no continente é que os soldados americanos vão entrar no Vietnam com força total... já têm uma linha aérea ali... pelo menos — acrescentou — a tríade CIA deles tem.
— Eeee, isso é bom para os negócios! Teremos que consertar os navios deles. E entreter os seus homens! Bom. Ótimo para nós.
— É. Ótimo. Mas uma burrice para eles. O Honorável Chu En-lai já os vem advertindo, há meses, educadamente, de que a China não os quer lá! Por que não escutam? O Vietnam é a nossa esfera externa bárbara! É uma burrice escolher aquela selva horrorosa e aqueles bárbaros detestáveis para fazer uma guerra. Se a China não conseguiu subjugar aqueles bárbaros estrangeiros durante séculos, como poderão eles fazê-lo? — Tang-po riu e acendeu outro cigarro. — Para onde foi Pok Um Olho Só?
— A raposa velha conseguiu o visto permanente e se mandou para San Francisco no primeiro avião. Ele, a mulher e oito filhos.
Tang-po virou-se para o contador.
— Ele nos devia algum dinheiro?
— Ah, não, Honrado Senhor. Estava com os pagamentos integralmente atualizados. O sargento Lee cuidou disso.
— Quanto custou àquele fornicador velho? Para obter o visto?
— Sua saída foi facilitada por um presente de três mil HK para o cabo Sek Pun So, da Imigração, segundo nossas recomendações. Nossa porcentagem foi paga, e também o ajudamos a encontrar o mercador de diamantes certo para converter sua fortuna nas melhores pedras branco-azuladas disponíveis. — Ho consultou os seus livros. — Nossa comissão de dois por cento foi de oito mil novecentos e sessenta HK.
— O velho e bom Um Olho Só! — exclamou Tang-po, contente por ele. — Saiu-se muito bem. Com que emprego "especializado" conseguiu o visto?
O sargento Lee explicou:
— O de cozinheiro num restaurante do Bairro Chinês, chamado O Lugar de Comer Bem. Oh ko, já provei a comida feita por ele, e o velho Um Olho Só é ruim pra cachorro.
— Vai contratar outro para tomar o seu lugar, e vai se meter no ramo imobiliário, ou com jogo e cabarés — disse alguém. — Eeee, que sorte!
— Mas quanto lhe custou o visto americano?
— Ah, o dom dourado para o Paraíso! — Ho suspirou. — Ouvi dizer que pagou cinco mil dólares americanos para encabeçar a lista.
— Ayeeyah, é mais do que o costumeiro. Por quê?
— Parece que há também a promessa de um passaporte americano, logo que acabe o prazo de cinco anos, e de ignorarem o fato de o velho Um Olho Só não falar inglês...
— Aqueles sacanas do País Dourado... extorquem, mas não são organizados. Não têm classe nenhuma — falou Tang-po, desdenhosamente. — Um ou dois vistos, aqui e ali... quando todos aqui sabem que se pode comprar um, na hora certa e com a propina certa. Então por que não agem direito, de modo civilizado? Vinte vistos por semana... até mesmo quarenta... são todos doidos, esses demônios estrangeiros!
— Dew neh loh moh, mas como está certo! — falou o sargento Lee, tonto com a quantidade potencial das propinas que poderia ganhar, se fosse vice-cônsul do consulado dos Estados Unidos em Hong Kong, no Departamento de Vistos. — Eeee!
— Deveríamos ter uma pessoa civilizada nesse cargo, logo estaríamos estabelecidos como mandarins e policiando San Francisco! — disse Tang-po, e todos riram junto com ele. A seguir, acrescentou, enojado: — Pelo menos deviam ter um homem no cargo, não um que goste de uma Haste Ardente na sua Cloaca Medonha, ou da sua na de outro homem!
Riram ainda mais.
— Ei — exclamou um deles —, ouvi dizer que o parceiro dele é o Jovem Demônio Estrangeiro Fedorento Barriga de Porco, das Obras Públicas... sabe, aquele que está vendendo licenças para construções que não deviam ser feitas!
— Isso são águas passadas, Chan, há muito tempo. Ambos já estão de cacho novo. O último boato é que o nosso demônio vice-cônsul está ligado a um jovem... — Tang-po acrescentou, delicadamente: — filho de um contador de destaque, que também é um comunista de destaque.
— Eeee, isso não é bom — disse o sargento Lee, identificando o homem imediatamente.
— Não — concordou Tang-po. — Especialmente porque ouvi dizer, ontem, que o jovem tem um apartamento secreto dobrando a esquina. No meu distrito! E o meu distrito é o que tem menos crimes.
— Isso mesmo — concordaram todos, com orgulho.
— Devemos falar com ele, Irmão Mais Velho? — perguntou Lee.
— Não, apenas mantê-lo sob vigilância especial. Quero saber tudo sobre esses dois. Tudo. Até mesmo se arrotam. — Tang-po soltou um suspiro. Deu ao sargento Lee o endereço e distribuiu as missões a cada um. — Já que estão todos aqui, decidi antecipar o pagamento de amanhã.
Abriu a sacola grande, que continha dinheiro em notas. Cada homem recebeu o equivalente ao seu pagamento na polícia, mais despesas autorizadas.
Trezentos HK por mês, sem custas, não era um salário suficiente para um guarda alimentar uma família, mesmo pequena, e ter um pequeno apartamento, nem mesmo de duas peças, com uma pia e sem sanitários, e para mandar um filho para a escola; ou o suficiente para conseguir mandar um pouco para a sua aldeia natal, em Kwantung, para pais, avós, mães, tios e avôs necessitados, muitos dos quais, há tantos anos, haviam dado as economias de toda uma vida para ajudá-lo a se pôr a caminho, na estrada irregular para Hong Kong.
Tang-po fora um desses. Sentia muito orgulho por ter sobrevivido à viagem, aos seis anos de idade, sozinho, por ter encontrado os parentes, e depois, aos dezoito anos, ter entrado para a polícia... há trinta e seis anos. Servira bem à rainha, impecavelmente à força policial, não servira aos inimigos japoneses durante a ocupação, e agora chefiava uma divisão-chave na colônia de Hong Kong. Respeitado, rico, com um filho cursando a universidade em San Francisco, outro dono de metade de um restaurante em Vancouver, no Canadá, sua família em Kwantung sustentada... e, o que era mais importante, seu distrito de Tsim Sha Tsui com menos roubos sem solução, menos ferimentos, mutilações e guerras entre tríades sem solução do que qualquer outro distrito... e apenas três assassinatos em quatro anos, todos resolvidos e os culpados presos e condenados, e um deles um demônio estrangeiro marujo que matara outro por causa de uma dançarina de cabaré. E quase nenhum furto de pouca monta, e nunca um demônio estrangeiro turista incomodado por mendigos ou pivetes, e era a maior área turística, com mais de trezentas mil pessoas civilizadas para policiar e proteger dos bandidos e delas mesmas.
"Ayeeyah, é", Tang-po disse para si mesmo. "Se não fosse por nós, aqueles camponeses fornicadores de cabeça dura estariam se engalfinhando uns com os outros, brigando, pilhando, matando, e depois o grito inevitável da turba se ergueria: 'Matem os demônios estrangeiros!' E eles tentariam, e depois voltariam os levantes outra vez. Fodam-se todos os malfeitores e as pessoas arruaceiras!"
— Agora — disse ele amavelmente —, vamos nos reunir daqui a três dias. Encomendei um jantar de dez pratos do Chang Boa Comida. Até lá, que todos encostem o olho no orifício dos deuses, e me arranjem as respostas. Quero os Lobisomens... e quero John Chen de volta. Sargento Lee, fique mais um momento. Cabo Ho, escreva a ata e me entregue as contas amanhã às cinco.
— Sim, Honrado Senhor.
Saíram todos. Tang-po acendeu outro cigarro. O sargento Lee fez o mesmo. Tang-po tossiu.
— Devia parar de fumar, Irmão Mais Velho.
— Você também! — Tang-po deu de ombros. — Joss! Quando eu tiver que ir, eu vou. Joss! Mesmo assim, para ter paz, disse à minha Mulher Principal que parei. Ela fica reclamando o tempo todo.
— Mostre-me uma que não reclame, e vai ver que ela é um ele com a Cloaca Medonha.
Riram juntos.
— É verdade. Heya, na semana passada ela insistiu em que eu fosse consultar um médico, e sabe o que o sacana sem mãe me disse? Disse: "É melhor parar de fumar, velho amigo, ou não passará de cinzas num vaso funerário antes de ficar vinte luas mais velho, e aposto que a sua Mulher Principal vai gastar todo o seu dinheiro com rapazes de vida livre, e a sua concubina vai provar os frutos de outro!"
— O porco! Ah, mas que porco!
— É. Ele me assustou de verdade. Senti as palavras dele me atingirem no Saco Secreto! Mas quem sabe falava a verdade.
Pegou um lenço, assoou o nariz, com a respiração asmática, pigarreou ruidosamente e cuspiu na escarradeíra.
— Ouça, Irmão Mais Moço, o nosso Grande Dragão disse que chegou a hora de organizar o Contrabandista Yuen, Lee Pó Branco e o primo dele, Wu Quatro Dedos.
O sargento Lee fitou-o, chocadíssimo. Aqueles três homens tinham a fama de ser os Grandes Tigres do comércio de ópio. Importadores e exportadores. Para uso local e também, segundo a voz corrente, para exportação para o País Dourado, onde havia o dinheiro grosso. Ópio trazido para Hong Kong secretamente e convertido em morfina e, depois, em heroína.
— Ruim, muito ruim. Nunca tocamos nesse comércio antes.
— É — falou Tang-po delicadamente.
— Seria muito perigoso. O Departamento de Narcóticos é seriamente contra ele. A Grande Montanha de Bosta em pessoa está muito seriamente interessada em apanhar esses três... interessada pra caralho.
Tang-po fitou o teto. Depois, falou:
— Q Grande Dragão explicou assim: uma tonelada de ópio no Triângulo Dourado custa sessenta e sete mil dólares americanos. Transformada na porra da morfina, e depois na porra da heroína, e a heroína pura diluída a cinco por cento, a proporção costumeira nas ruas do País Dourado, e entregue ali, já se tem quase seiscentos e oitenta milhões em dólares americanos. Com uma tonelada de ópio.
Tang-po tossiu e acendeu outro cigarro.
O suor começou a porejar nas costas de Lee.
— Quantas toneladas poderiam passar através desses três fornicadores?
— Não sabemos. Mas disseram-lhe que cerca de trezentos e oitenta toneladas por ano são produzidas no Triângulo Dourado — Yunan, Birmânia, Laos e Tailândia. Grande parte vem para cá. Eles lidariam com cinqüenta toneladas, falou ele. Tem certeza de cinqüenta toneladas.
— Oh ko!
— É. — Tang-po também suava. — Nosso Grande Dragão disse que chegou a hora de investirmos no negócio. Vai crescer e crescer. Ele tem um plano para fazer a marinha se unir a nós...
— Dew neh loh moh, não se pode confiar naqueles filhos da mãe marítimos.
— Foi o que eu disse, mas ele falou que precisamos dos filhos da mãe marítimos, e que podemos confiar em alguns, selecionados. Quem mais poderá agarrar e interceptar uns vinte por cento de sinal... quem sabe até cinqüenta por cento para apaziguar a Grande Montanha de Bosta em pessoa, em momentos pré-combinados? — Tang-po cuspiu certeiramente, de novo. — Se pudéssemos juntar a marinha, o Departamento de Narcóticos e o Bando dos Três, o nosso h'eung yan atual seria igual à mijada de uma criança nas águas do porto.
Fez-se um silêncio sério no aposento.
— Teríamos que recrutar novos membros, e isso é sempre perigoso.
— É.
Lee pegou o bule de chá e serviu-se de um pouco de chá de jasmim, com o suor escorrendo costas abaixo, o ar abafado e cheio de densa fumaça. Esperou.
— O que acha, Irmão Mais Moço?
Os dois homens não eram aparentados, mas usavam a cortesia chinesa entre si porque há mais de quinze anos confiavam um no outro. Lee salvara a vida do seu superior nos levantes de 1956. Estava agora com trinta e cinco anos, e seu heroísmo nos levantes lhe garantira uma medalha da polícia. Era casado e tinha três filhos. Há dezesseis anos estava na força policial, e seu salário integral era de oitocentos e quarenta e três HK por mês. Tomava o bonde para ir para o trabalho. Se não complementasse a sua renda através da irmandade, como todos eles, teria tido que ir a pé ou de bicicleta, na maior parte dos dias. O bonde levava duas horas.
— Acho que a idéia é muito ruim — falou. — Drogas, qualquer tipo de droga é ruim pra caralho... é, muito ruim. O ópio é ruim, embora seja bom para gente velha... o pó branco, cocaína, é ruim, mas não tão ruim quanto as seringas da morte. Dá azar comerciar com as seringas da morte.
— Foi o que eu lhe disse.
— Vai obedecê-lo?
— O que é bom para um irmão deve ser bom para todos — disse Tang-po, cautelosamente, evitando uma resposta direta.
Novamente, Lee esperou. Não sabia como um Dragão era eleito, ou exatamente quantos havia, ou quem era o Grande Dragão. Sabia apenas que o seu Dragão era Tang-po, um homem sábio e cauteloso, que pensava nos interesses deles.
— Falou também que um ou dois dos nossos demônios estrangeiros superiores estão ficando com cócegas quanto às suas malditas fatias do dinheiro do jogo.
Lee cuspiu, enojado.
— O que esses fornicadores fazem para merecer a sua parte? Nada. Só fecham os olhos malditos. Exceto o Cobra.
Esse era o apelido do inspetor-chefe Donald C. C. Smyth, que organizara abertamente seu distrito de Aberdeen Leste e vendia favores e proteção em todos os níveis, diante dos seus subalternos chineses.
— Ah, ele! Devia ser enfiado esgoto abaixo, o sacana. Logo, aqueles a quem paga, acima deles, não poderão mais esconder o seu fedor. E o fedor dele se espalhará sobre todos nós.
— Ele deve se aposentar daqui a dois anos — falou Lee, sombriamente. — Talvez fique puxando o saco de todos os figurões até sair, e eles não poderão fazer nada. Os amigos dele estão lá no alto, segundo dizem.
— E enquanto isso? — perguntou Tang-po. Lee soltou um suspiro.
— Meu conselho, Irmão Mais Velho, é ser cauteloso, não entrar nessa se puder evitar. Se não puder... — deu de ombros. — É o destino. Já está decidido?
— Não. Ainda não. O assunto foi mencionado na nossa reunião semanal. Para ser estudado.
— Já se dirigiram ao Bando dos Três?
— Parece que foi Lee Pó Branco que nos procurou em primeiro lugar, Irmão Mais Moço. Parece que os três vão se unir.
Lee soltou uma exclamação abafada.
— Com juramentos de sangue?
— Parece que sim.
— Vão trabalhar juntos? Aqueles demônios?
— Foi o que disseram. Aposto que Wu Quatro Dedos vai ser o Tigre Maior.
— Ayeeyah, ele? Dizem que matou pessoalmente cinqüenta homens — falou Lee, sombriamente. Estremeceu ao pensar no perigo. — Devem ter uns trezentos lutadores no seu rol de pagamento. Seria melhor para todos nós se aqueles três estivessem mortos... ou atrás das grades.
— É. Mas, entrementes, Lee Pó Branco diz que eles estão prontos para se expandir, e que em troca de uma pequena cooperação da nossa parte poderão garantir um lucro gigantesco. — Tang-po enxugou a testa, tossiu e acendeu outro cigarro. — Ouça, Irmãozinho — falou, suavemente. — Ele jura que lhes ofereceram uma grande fonte de dinheiro americano, dinheiro vivo e de banco, e um grande mercado varejista para a sua mercadoria lá, com sede nesse lugar chamado Manhattan.
Lee sentiu o suor na testa.
— Um mercado varejista lá... ayeeyah, isso significa milhões. Eles garantem?
— Garantem. Com muito pouca coisa para fazermos. Exceto fechar os olhos e cuidar para que a marinha e o Departamento de Narcóticos apreendam apenas os carregamentos corretos, e fechem os olhos quando for a hora. Não está escrito nos Livros Antigos: se você não der um aperto, o raio o atingirá?
Um novo silêncio.
— Quando é que a decisão... quando vai ser decidido?
— Na semana que vem. Se for sim, bem, o fluxo do tráfico vai levar meses para ser organizado, quem sabe um ano. — Tang-po deu uma olhada no relógio e se levantou. — Hora do nosso banho. O Noturno Song providenciou jantar para nós, depois.
— Eeeee, que ótimo. — Inquieto, Lee apagou a única lâmpada do teto. — E se a decisão for não?
Tang-po apagou o cigarro e tossiu.
— Se for não... — Deu de ombros. — Temos uma só vida, a despeito dos deuses, portanto é nosso dever pensar nas nossas famílias. Um dos seus parentes trabalha como comandante com Wu Quatro Dedos...