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19h5m

Linc Bartlett escolheu com cuidado a gravata. Estava usando uma camisa azul-clara, um terno marrom-claro e a gravata era marrom com uma listra vermelha. Havia uma cerveja aberta sobre a cômoda, a lata orvalhada pelo frio. O dia inteiro ele debatera consigo mesmo se devia ou não sair com Orlanda, se devia ou não contar a Casey.

O dia fora excelente para ele. Primeiro, o desjejum com Orlanda, depois uma ida a Kai Tak, para dar uma olhada no seu avião e certificar-se de que poderia usá-lo para o vôo com Dunross a Taipé. O almoço com Casey, depois a emoção na Bolsa. Depois que a Bolsa fechara, ele e Casey haviam tomado a balsa para Kowloon. Toldos de lona para proteger da chuva impediam a visão e tornavam o convés claustrofóbico, a travessia desagradável. Mas era agradável estar com Casey, e ele sentia ainda mais a sua presença devido à existência de Orlanda, e a seu dilema.

— Ian chegou ao fim da linha, não é, Linc?

— Eu diria que sim, claro. Mas ele é esperto. A batalha ainda não terminou, somente o primeiro ataque.

— Como pode se pôr de pé? As ações dele estão a preço de banana.

— Claro, comparando com a semana passada, mas não conhecemos a sua taxa de rentabilidade. Esta Bolsa é como um ioiô — você mesma o disse —, e perigosa. Nisso Ian tem razão.

— Aposto que ele está sabendo dos dois milhões que você entregou ao Gornt.

— Talvez. Não é nada que ele próprio não fizesse, se tivesse a oportunidade. Vai receber Seymour e Charlie Forrester?

— Vou. O vôo da Pan Am está no horário, e uma limusine irá me buscar. Sairei assim que chegarmos. Acha que eles vão querer jantar?

— Não. Os dois estarão bombardeados com a diferença dos fusos horários. — Ele abrira um sorriso. — Espero. —

Tanto Seymour Steigler III, o advogado deles, quanto Charlie Forrester, o chefe da divisão de espuma, tinham uma vida social muito intensa. — A que horas chega o vôo deles?

— Às quatro e cinqüenta. Voltaremos lá pelas seis da tarde.

Às seis, tinham tido uma reunião com Seymour Steigler... Forrester não se sentia bem, e fora direto para a cama.

O advogado deles era nova-iorquino, um homem bonitão, de cabelos pretos ondulados, ficando grisalhos, olhos escuros e olheiras profundas.

— Casey me contou os detalhes, Linc — dissera ele. — Parece que estamos em grande forma.

Como tinham previamente combinado, Bartlett e Casey haviam explicado toda a transação ao advogado, excluindo a combinação secreta com Dunross quanto aos navios dele.

— Há umas duas cláusulas que quero incluir, Linc, para nos proteger — dissera Steigler.

— Tudo bem. Mas não quero a transação renegociada. Quero tudo encerrado até terça-feira, como planejamos.

— E quanto à Rothwell-Gornt? Que tal eu dar uma sondada nela, hem? Podemos passar a perna na Struan.

— Não — dissera Casey. — Deixe o Gornt e o Dunross em paz, Seymour. — Eles também não haviam contado a Steigler sobre a transação particular de Bartlett com Gornt. — Hong Kong é mais complicada do que pensávamos. Melhor deixarmos como está.

— É isso aí — concordara Bartlett. — Deixe Gornt e Dunross comigo e com Casey. Cuide dos advogados deles.

— E que tal são eles?

— Ingleses. Muito certinhos — dissera Casey. — Estive com John Dawson ao meio-dia... é o sócio mais antigo da firma. Dunross devia estar presente, mas mandou Jacques de Ville no seu lugar. Ele é um dos diretores da Struan, trata de todos os negócios corporativos deles, e de alguns financiamentos. Jacques é muito bom, mas Dunross é que dirige e decide tudo. É isso aí.

— Que tal ligar para esse tal... Dawson agora mesmo? Falarei com ele durante o café da manhã. Digamos... às oito horas?

Bartlett e Casey tinham achado graça.

— Nem pensar, Seymour! — ela dissera. — Ele o receberá com calma às dez horas, e vocês conversarão durante um almoço de duas horas. Eles aqui comem e bebem como se não houvesse um amanhã, e tudo é "meu velho" para cá, "meu velho" para lá.

— Então conversarei com ele depois do almoço, quando ele estiver amolecido, e quem sabe poderei ensinar-lhe uma ou duas coisinhas — dissera Seymour Steigler, os olhos tornando-se duros. Abafara um bocejo. — Tenho que ligar para Nova York antes de ir para a cama. Ei, já estou com todos os documentos da fusão da gxr e...

— Pode dá-los a mim, Seymour — dissera Casey.

— E comprei o bloco de duzentos mil ações da Rothwell-Gornt a 23, 50. A quanto estão hoje?

— A 21.

— Meu Deus, Linc, você perdeu quinhentos mil — dissera Casey, perturbada. — Por que não vende e recompra?

— Não. Manteremos as ações. — Bartlett não estava preocupado com o prejuízo das ações da Rothwell, pois estava tendo grande lucro na sua parte do esquema de venda a descoberto de Gornt. — Por que não encerra suas atividades por hoje, Seymour? Se já estiver acordado, poderemos tomar café, os três juntos, lá pelas oito. Que tal?

— Boa noite. Casey, você marca com o Dawson para mim?

— Pode deixar. Eles o receberão pela manhã. O tai-pan... Ian já disse a eles que nosso negócio é de alta prioridade.

— E deve ser — dissera Steigler. — Nosso pagamento inicial tirará Dunross do aperto.

— Se ele sobreviver — dissera Casey.

— Hoje estamos aqui. Amanhã não estaremos mais. Então, vamos aproveitar!

Era uma das máximas de Steigler, e a frase ainda ecoava na cabeça de Bartlett. "Hoje estamos aqui, amanhã não estaremos mais... ", como o incêndio da véspera. "Eu podia ter acabado mal. Podia ter esmagado a cabeça, como aconteceu com aquele infeliz do Pennyworth. Nunca se sabe quando é a nossa vez, nosso acidente, nossa bala, ou nosso ato de Deus. Vindo de fora ou de dentro. Como aconteceu com papai. Meu Deus! Bronzeado e sadio, quase nunca estivera doente na vida, e então o médico diz que está com câncer. E em três meses ele definhou, fedeu e morreu em meio a grandes dores. "

Bartlett sentiu um suor repentino molhando-lhe a testa. Fora uma época muito ruim, aquela, durante o seu divórcio, enterrando o pai, a mãe abaladíssima, e tudo caindo aos pedaços. Depois, a conclusão do divórcio. O acordo fora uma barra, mas ele conseguira pagar tudo a ela sem ter que vender sua parte nas companhias, conseguindo manter o controle acionário. Ainda lhe pagava pensão, embora ela tivesse se casado de novo... assim como uma pensão com correção monetária para as crianças, e futuros dotes para elas... e cada centavo doía. "Não o dinheiro em si, mas a injustiça da lei da Califórnia, o advogado recebendo uma terça parte até que a morte nos separe. Fodido pelo meu advogado e pelo dela. Um dia ainda me vingarei deles", prometeu Bartlett a si mesmo, mais uma vez. "Deles e de todos os outros malditos parasitas. "

Com esforço, deixou de pensar neles. Por ora.

"Hoje estamos aqui, amanhã não estaremos mais. Então, vamos aproveitar", repetiu, enquanto tomava a sua cerveja, dava o nó na gravata e se olhava ao espelho. Sem vaidade. Gostava de viver dentro de si próprio. Havia feito as pazes consigo mesmo, sabendo quem era e o que pretendia. A guerra o ajudara a fazer isso. E a sobreviver ao divórcio, sobreviver a ela, descobrir como era, e viver com isso. Casey fora a única coisa decente em todo aquele ano.

Casey.

"E quanto a Casey?

"Nossas regras são bem claras, sempre foram. Foi ela que as estabeleceu: se qualquer um de nós tiver um encontro, não haverá perguntas ou recriminações.

"Então, por que estou nervoso, agora que resolvi sair com Orlanda sem contar a Casey?"

Lançou um olhar ao relógio. Quase hora de sair.

Bateram muito de leve à porta e ela se abriu instantaneamente; Song Noturno sorriu para ele.

— Senholita — anunciou o velho, dando um passo para o lado. Casey vinha descendo o corredor, um maço de papéis e um caderno de notas na mão.

— Oi, Casey — falou Linc. — Já ia ligar para você.

— Oi, Linc — retrucou ela, e falou em cantonense para o velho, enquanto passava: — Doh jeh. — O andar dela era animado ao entrar na suíte de dois quartos. — Tenho algumas coisas para você. — Entregou-lhe um maço de cartas e de telex e foi até o bar servir-se de um martíni seco. Usava calças justas cinzentas, tipo esporte, sapatos baixos cinzentos e camisa de seda cinzenta. Tinha o cabelo preso para trás, com um lápis espetado como único enfeite. Usava óculos, não as lentes de contato de costume. — As duas primeiras tratam da fusão da gxr. Está tudo assinado, selado e sacramentado, e tomamos posse a 2 de setembro. Há uma reunião de diretoria confirmada às três da tarde em Los Angeles... o que nos dá tempo de sobra para estar de volta. Já pedi...

— Tiro coberta da cama, Patrão? — interrompeu Song Noturno, com ar de importância, da porta.

Bartlett começou a dizer que não, mas Casey já estava sacudindo a cabeça.

— Um ho — falou amavelmente, em cantonense, pronunciando as palavras bem e com cuidado. — Cha z'er, doh jeh. — Não, obrigada, por favor, deixe para mais tarde.

Song Noturno olhou para ela, com cara de bobo.

— Wat?

Casey repetiu. O velho bufou, irritado porque a Pêlos Púbicos Dourados tinha a falta de educação de dirigir-se a ele no seu próprio idioma.

— Tiro coberta da cama, heya? Agora, heya? — perguntou num inglês ruim.

Casey repetiu as palavras em cantonense, novamente sem obter reação, começou de novo, depois parou e falou, desanimada, em inglês:

— Qual, deixe pra lá! Agora não. Mais tarde.

Song Noturno abriu um sorriso, tendo feito com que ela ficasse desprestigiada.

— Sim, senholita! — falou, e saiu, batendo a porta com força suficiente para deixar aquilo bem claro.

— Cretino — ela murmurou. — Ele não podia deixar de entender. Falei direito, sei que falei, Linc. Por que é que eles insistem em não entender? Tentei a mesma coisa com a minha criada, e tudo o que ela falou também foi: "Wat?" — Riu a contragosto, imitando a fala grosseira e gutural: — Wat você falou, heya?

Bartlett riu.

— São simplesmente turrões. Mas onde foi que aprendeu chinês?

— É cantonense. Arranjei um professor. Arrumei uma horinha para ele hoje de manhã. Pensei que ao menos devia ser capaz de dizer "Oi", "Bom dia", "A conta, faça o favor"... coisas comuns. Porra, mas é complicado. Todos os tons... em cantonense há sete tons... sete modos de se dizer a mesma palavra. Se você pedir a conta, é "mai dan", mas se falar um pouquinho errado, quer dizer "ovos fritos", que também é "mai dan". E pode apostar que o garçom trará os ovos fritos, só para sacanear você. — Ela sorveu o seu martíni e acrescentou uma azeitona extra. — Estava precisando disso. Quer outra cerveja?

Bartlett sacudiu a cabeça.

— Não, chega.

Já lera todos os telex.

Casey sentou-se no sofá e abriu o bloco de notas.

— A secretária de Vincenzo Banastasio telefonou e pediu que eu confirmasse a suíte dele para sábado, e...

— Não sabia que ele vinha para Hong Kong. Você sabia?

— Acho que lembro de tê-lo ouvido dizer qualquer coisa sobre vir para a Ásia na última vez que o vimos... no hipódromo, mês passado... em Del Mar... quando John Chen estava lá. Que coisa terrível o que houve com o John, não é?

— Espero que prendam aqueles Lobisomens. Que filhos da mãe, assassinarem-no e colocarem nele um cartaz daqueles!

— Escrevi um bilhete de pêsames em nosso nome para o pai dele e a mulher, Dianne... Lembra que a conhecemos na casa do Ian, e em Aberdeen?... Meu Deus, parece que foi há um milhão de anos!

— É. — Bartlett franziu o cenho. — Ainda não me lembro de ter ouvido o Vincenzo dizer nada. Ele vai ficar aqui?

— Não, quer ficar no lado de Hong Kong. Confirmei a reserva no Hilton por telefone, e amanhã vou confirmar pessoalmente. Ele chegou no vôo da jal de sábado de manhã, de Tóquio. — Casey olhou-o por cima dos óculos. — Quer que eu marque uma reunião?

— Quanto tempo ele vai ficar?

— O fim de semana. Alguns dias. Sabe como ele é impreciso. Que tal no sábado, após as corridas? Estaremos no lado de Hong Kong, e é uma caminhada curta do Happy Valley até o hotel, se não arranjarmos uma carona.

Bartlett já ia dizer "Vamos marcar no domingo", mas depois lembrou-se de Taipé.

— Claro, no sábado depois das corridas. — Foi então que notou a expressão dela. — O que é?

— Só estava me perguntando qual é a do Banastasio.

— Quando ele comprou quatro por cento das nossas ações da Par-Con — retrucou ele —, verificamos a ficha dele com o Seymour, o sec e mais outros serviços, e todos afirmaram que o dinheiro dele era limpo. Nunca foi preso nem acusado, embora corram muitos boatos. Ele nunca nos criou problemas, nunca quis se meter na diretoria, nunca aparece na assembléia dos acionistas. Sempre me deu sua procuração e entrou com o dinheiro quando precisamos. — Fitou-a. — E então?

— E então, nada, Linc. Sabe qual é a minha opinião a respeito dele. Concordo que não podemos retomar as ações. Ele as comprou livremente, e perguntou primeiro, e sem dúvida estávamos precisando do dinheiro dele, e o utilizamos bem. — Ajeitou os óculos e fez uma anotação. — Vou marcar a reunião e ser cortês como sempre. Mais uma coisa: nossa conta comercial no Victoria foi movimentada. Depositei vinte e cinco mil dólares nela, e aqui está o seu talão de cheques. Criamos um fundo, e o First Central está pronto para transferir os sete milhões iniciais para a conta, quando mandarmos. Aí há um telex de confirmação. Também abri uma conta pessoal para você no mesmo banco... eis seu talão de cheques com mais vinte e cinco mil, vinte mil em letras do Tesouro de Hong Kong reaplicáveis diariamente. — Ela abriu um sorriso. — Isso deve dar para comprar duas tigelas de chop suey e um bom pedaço de jade, embora me digam que é difícil distinguir os falsos dos legítimos.

— Não o jade. — Bartlett tinha vontade de olhar para o relógio, mas não o fez. Apenas bebeu sua cerveja. — Que mais?

— Clive Bersky telefonou e pediu um favor.

— Mandou ele ir torrar o saco de outro?

Ela riu. Clive Bersky era o executivo-chefe da agência deles do First Central de Nova York. Era muito meticuloso, pedante, e deixava Bartlett maluco, exigindo documentação perfeita.

— Pediu que, se o negócio com a Struan for fechado, depositemos nossos fundos através do... — Consultou o seu bloco. — do Royal Belgium and Far East Bank, aqui.

— Por que esse?

— Não sei. Estou fazendo averiguações. Temos um encontro para tomar um drinque com o executivo-chefe local às oito. O First Central acaba de comprar o banco dele. Tem agências aqui, em Cingapura e em Tóquio.

— Cuide você dele, Casey.

— Claro. Posso tomar uma bebida e dar no pé. Quer comer depois? Podíamos ir ao Escoffier, ou aos Sete Dragões, ou quem sabe subir a Nathan Road e jantar comida chinesa. Algum lugar não muito longe daqui... a meteorologia diz que vem mais chuva por aí.

— Obrigado, mas hoje não. Vou para o lado de Hong Kong.

— É? On... — Casey se deteve. — Ótimo. A que horas vai sair?

— Agorinha. Mas não há pressa. — Bartlett viu o mesmo sorriso tranqüilo no rosto dela enquanto seus olhos corriam a lista, mas teve certeza de que ela soubera instantaneamente aonde ele ia, e de repente ficou furioso. Manteve a voz calma. — O que mais tem aí?

— Nada que não possa esperar — disse, na mesma voz agradável. — Tenho um encontro amanhã cedo com o comandante Jannelli, sobre sua viagem a Taipé... o escritório de Armstrong mandou a documentação que tira temporariamente o embargo do seu avião. Tudo o que você tem a fazer é assinar o formulário comprometendo-se a voltar a Hong Kong. Pus a data de terça-feira. Está certo?

— Claro. A terça é o Dia D. Ela se levantou.

— Por hoje chega, Linc. Cuidarei do banqueiro e do resto disto aqui. — Terminou o seu martíni e colocou o copo de volta no bar espelhado. — Ei, Linc, essa gravata! A azul combinaria melhor. Até logo, no café da manhã. — Jogou-lhe o beijo de costume, saiu como sempre, e fechou a porta com as palavras de costume: — Durma com os anjos, Linc!

— Porra, por que estou tão puto da vida? — resmungou ele com raiva. — Casey não fez nada. Filha da puta!

Sem sentir, amassou a lata de cerveja vazia. "Filha da puta! E agora? Esqueço o que houve e saio, ou o quê?"

Casey subia o corredor, fumegando, na direção do seu quarto. "Aposto a vida como ele vai sair com aquela vagabunda de uma figa. Devia tê-la afogado quando tive a chance. "

Então notou que Song Noturno tinha aberto a porta para ela, e segurava-a para que passasse, com um sorriso que ela considerou de deboche.

— E você também pode ir pra puta que o pariu! — rosnou para ele, antes que pudesse se conter. Depois bateu a porta, jogou os papéis e o bloco em cima da cama, e já ia começar a chorar. — Você não vai chorar — ordenou a si mesma em voz alta, com lágrimas na voz. — Porra de homem nenhum vai derrubar você, mas não vai mesmo! — Ficou olhando para os dedos, que tremiam com a raiva de que estava possuída. — Ah, que todos os homens vão à merda!


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