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10h52m

— Tai-pan, o dr. Samson ligando de Londres. Está na linha 3.

— Oh, obrigado, Claudia. — Dunross apertou o botão. — Alô, doutor. Acorda tarde.

— Acabo de chegar do hospital... desculpe não ter ligado antes. Quer saber notícias da sua irmã, a sra. Gavallan?

— É, como vai ela?

— Bem, senhor, começamos outra série de exames rigorosos. Mentalmente, devo dizer que ela está em muito boa forma. Infelizmente, não posso dizer o mesmo da parte física...

Dunross escutou com o coração pesado, enquanto o médico entrava em detalhes sobre a esclerose múltipla, explicando que ninguém sabia muito sobre a doença, que não havia cura conhecida, e que a moléstia ocorria em níveis descendentes... uma vez que tivesse havido alguma deterioração da estrutura nervosa, não era possível, com a medicação atual, voltar ao nível anterior.

— Tomei a liberdade de chamar o professor Klienberg, da clínica da ucla em Los Angeles, para uma consulta... ele é o maior especialista na moléstia. Por favor, fique descansado que faremos tudo o que pudermos pela sra. Gavallan.

— Não me parece que o senhor possa fazer alguma coisa.

— Bem, não é assim tão grave, senhor. Se a sra. Gavallan se cuidar, descansar e for sensata, pode levar uma vida normal durante muitos anos.

— Quanto tempo é "muitos anos"?

Dunross ouviu a longa hesitação. "Ah, Kathy, pobre Kathy!"

— Não sei. Muitas vezes esse tipo de problema está nas mãos de Deus, sr. Dunross. Os doentes não seguem todos o mesmo padrão. No caso da sra. Gavallan, eu poderia dar-lhe uma resposta melhor daqui a seis meses, quem sabe no Natal. Nesse meio tempo, já a inscrevi como paciente no serviço de saúde da previdência, assim...

— Não. Quero que ela seja paciente particular, dr. Sam-son. Por favor, mande todas as contas para o meu escritório.

— Sr. Dunross, não há diferença na qualidade do meu serviço. Ela apenas terá que aguardar um pouquinho na sala de espera, e ficar numa enfermaria, não num quarto particular do hospital.

— Por favor, que ela seja paciente particular. Eu prefiro, e o marido dela também.

Dunross ouviu o suspiro, e detestou-o.

— Muito bem — dizia o médico. — Tenho todos os seus telefones. Ligarei para o senhor tão logo o professor Klienberg tenha feito o seu exame e os testes estejam concluídos.

Dunross agradeceu e repôs o fone no gancho. "Oh, Kathy, pobre e querida Kathy!"

Quando se levantara, ao alvorecer, conversara com ela e com Penelope. Kathy dissera-lhe que estava se sentindo melhor, e que Samson fora muito encorajador. Penn lhe dissera, mais tarde, que Kathy estava com um ar muito cansado.

— A coisa não está com boa cara, Ian. Há alguma chance de você poder vir para cá por uma ou duas semanas, antes de 10 de outubro?

— Não no momento, Penn, mas nunca se sabe.

— Vou levar Kathy para Avisyard logo que ela sair do hospital. No máximo na semana que vem. Ficará melhor ali. O campo a fará melhorar, não se preocupe, Ian.

— Penn, quando chegar a Avisyard, quer ir até a Árvore dos Gritos por mim?

— O que aconteceu?

Ele ouviu a preocupação na voz dela.

— Nada, querida — falou, pensando em Jacques e Phillip Chen... "Como posso explicar isso?" — Nada de especial, o mesmo de sempre. Só queria que você dissesse alô à nossa Árvore dos Gritos verdadeira.

— O nosso jacarandá aí não está servindo?

— Não, está ótimo, mas não é a mesma coisa. Quem sabe você devia trazer uma muda para Hong Kong.

— Não. É melhor a deixarmos onde está. Só assim você tem que voltar para casa, não é, Ian?

— Posso fazer uma aposta por você, para hoje à tarde? Nova pausa.

— Dez dólares no cavalo que escolher. Eu apoiarei a sua escolha. Sempre apoiarei a sua escolha. Ligue para mim amanhã. Amo você... tchau.

Lembrou-se da primeira vez em que ela dissera "Amo você", e, depois, mais tarde, quando ele a pedira em casamento, todas as recusas, até que, finalmente, no meio de um pranto sentido, o motivo real:

— Ah, Deus, Ian, não sirvo para você. Você é de classe alta, eu não. Meu modo de falar, tive que aprender. É, no começo da guerra fui enviada para a zona rural... meu Deus, eu só tinha estado fora de Londres duas vezes, até então, em toda a minha vida, só até o litoral. Fui enviada para uma belíssima mansão em Hampshire, onde todas as outras garotas eram de uma das melhores escolas da classe alta. Byculla chamava-se a mansão. Houve uma confusão, Ian, e todo o meu colégio foi para outro lugar, só eu fui para Byculla, e foi só então que descobri que falava diferente, de modo diferente... está vendo, às vezes ainda me esqueço! Ah, Deus, não tem idéia de como foi horrível descobrir, tão garota, que eu era... vulgar, de fala vulgar, e que há diferenças tão ilimitadas na Inglaterra, no modo como falamos... o modo como falamos é uma coisa tão importante!

"Ah, como me esforcei para imitar as outras! Elas me ajudavam, e houve uma professora que foi maravilhosa para mim. Eu me joguei de cabeça na nova vida, na vida delas, e jurei me aperfeiçoar, e nunca mais voltar, nunca, nunca, nunca, e não vou. Mas não posso me casar com você, meu querido. Sejamos apenas amantes, jamais serei boa o bastante para você."

Mas, com o tempo, eles se casaram. Vovó Dunross a convencera. Penelope concordara, mas somente depois de ter ido sozinha até a Árvore dos Gritos. Nunca lhe contara o que havia dito.

"Tenho tanta sorte!", pensou Dunross. "Ela é a melhor mulher que um homem podia ter."

Desde que voltara da pista de corridas, ao amanhecer, ele trabalhara sem cessar. Meia centena de telegramas. Dúzias de telefonemas internacionais. Inúmeros locais. Às nove e meia ligara para o governador, contando a proposta de Tiptop.

— Terei que consultar o ministro — dissera Sir Geoffrey. — O mais cedo que poderei telefonar para ele será às quatro da tarde. Ian, isso deve ser mantido em segredo absoluto. Ah, meu Deus, Brian Kwok deve ser importantíssimo para eles!

— Ou quem sabe apenas outra concessão conveniente para a entrega do dinheiro.

— Ian, não acredito que o ministro vá concordar com uma troca.

— Por quê?

— O governo de Sua Majestade pode considerá-lo um precedente, um mau precedente. Eu consideraria.

— O dinheiro é vital.

— O dinheiro é um problema temporário. Infelizmente, os precedentes são eternos. Esteve na pista?

— Sim, senhor.

— Que tal os cavalos?

— Pareciam todos em grande forma. Aleksei Travkin disse que Pilot Fish é o nosso maior concorrente, e que a pista vai estar macia. Noble Star está ótima, mas nunca correu em pista molhada.

— Vai chover?

— Sim. Mas talvez tenhamos sorte, senhor.

— Esperemos que sim. Que tempos terríveis, Ian. Enfim, essas coisas nos são enviadas para nos provar, não é? Vai ao enterro do John?

— Vou, senhor.

— Eu também. Coitado...

No enterro, de manhã, Dunross dissera palavras gentis sobre John Chen para não desmoralizar a Casa de Chen, e todos os ancestrais dos Chens que haviam servido bem e durante muito tempo à Casa Nobre.

— Obrigado, tai-pan — dissera Phillip Chen, simplesmente. — Sinto muito, mais uma vez.

Mais tarde, dissera em particular a Phillip Chen:

— Sentir muito não nos ajuda a sair da armadilha em que você e seu filho nos colocaram. Nem a resolver o problema do maldito Quatro Dedos e a terceira moeda.

— Eu sei, eu sei! — dissera Phillip Chen, torcendo as mãos. — Eu sei, e a não ser que possamos conseguir de volta as ações estamos arruinados, estamos todos arruinados! Oh ko, depois que você anunciou a alta, comprei e comprei, e agora estamos arruinados.

Dunross dissera vivamente:

— Temos o fim de semana, Phillip. Agora, escute-me, merda! Você vai pedir o troco de cada favor que lhe devem. Quero o apoio de Lando Mata e Tung Pão-Duro até a meia-noite de domingo. Pelo menos vinte milhões.

— Mas, tai-pan, não...

— Se isso não estiver nas minhas mãos até a meia-noite de domingo, quero o seu pedido de demissão na minha mesa até nove horas. Você não será mais o nosso representante nativo, seu filho estará excluído, e toda a sua linhagem estará excluída para sempre, e escolherei um novo representante, de outra linhagem.

Então, soltou pesadamente a respiração, odiando o fato de que Phillip Chen e John Chen — e provavelmente Jacques de Ville — houvessem traído a sua confiança. Foi até a bandeja e serviu-se de um pouco de café. Naquele dia, o gosto não lhe parecia bom. Os telefones não paravam de tocar, a maior parte dos telefonemas sobre o próximo colapso do mercado de capitais, do sistema bancário. Havergill, Johnjohn, Richard Kwang. Nada da parte do Pão-Duro, Lando Mata ou Murtagh. O único momento alegre fora o seu telefonema para David MacStruan, em Toronto:

— David, quero você aqui para uma reunião na segunda-feira. Pode...

Foi interrompido por um berro de alegria.

— Tai-pan, já estou a caminho do aeroporto. Bom...

— Agüente as pontas, David!

Explicara o seu plano de transferir Jacques para o Canadá.

— Oh, meu rapaz, se fizer isso, serei seu escravo para sempre!

— Vou precisar de mais do que escravos, David — dissera, cuidadosamente.

Fez-se uma longa pausa, e a voz do outro lado tornou-se mais dura.

— Qualquer coisa que quiser, tai-pan, já tem. Qualquer coisa.

Dunross sorriu, animado ao pensar no primo distante. Deixou o olhar vagar pela janela. O porto estava nublado, o céu pesado e escuro, mas ainda não havia chuva. "Ótimo", pensou, "contanto que não chova até depois de terminado o quinto páreo! Depois das quatro, pode chover. Quero esmagar Gornt e Pilot Fish e, oh, Deus, que o First Central libere o meu dinheiro, ou o Lando Mata ou o Pão-Duro ou a Par-Con! Sua aposta está coberta", disse a si mesmo, estoicamente, "de todas as maneiras possíveis. E Casey? Também estará tentando me lograr, como o Bartlett? E como o Gornt? E quanto a..."

— Tai-pan, seu compromisso das onze horas chegou — disse a voz de Claudia, pelo interfone.

— Claudia, venha aqui um segundo. — Tirou da gaveta um envelope que continha mil dólares e entregou-lhe. — Dinheiro para as apostas, conforme o prometido.

— Ah, obrigada, tai-pan.

Havia vincos de preocupação no rosto alegre dela, e sombras sob o sorriso.

— Vai ficar na tribuna de Phillip?

— Vou, sim. Tio Phillip me convidou. Ele... parece muito abalado — disse ela.

— É por causa do John. — Dunross não tinha certeza se ela sabia. "Provavelmente sabe", pensou, "ou logo saberá. Não há segredos em Hong Kong. " — Quais os seus favoritos?

— Winner's Delight no primeiro, Buccaneer no segundo.

— Dois azarões? — Fitou-a. — Tem alguém de dentro dando as dicas para você?

— Ah, não, tai-pan. — Um pouquinho do seu bom humor normal voltou. — É só palpite.

— E no quinto?

— Não vou apostar no quinto, mas estou torcendo por Noble Star. — Claudia acrescentou, preocupada: — Há algo que eu possa fazer para ajudar, tai-pan? Qualquer coisa? A Bolsa de Valores e... temos que dar um jeito de massacrar o Gornt.

— Até que gosto do Gornt... é mesmo um fang-pi. — A obscenidade cantonense era pitoresca, e ela achou graça. — Agora, faça entrar a sra. Gresserhoff.

— Sim, sim, tai-pan — disse Claudia. — E obrigada pelo h'eung yau!

Dali a um momento, Dunross se levantou para receber sua visitante. Era a mulher mais bela que já tinha visto.

— Ikaga desu ka? (Como vai?) — perguntou, estupefato, no seu japonês fluente, imaginando como podia ter sido casada com Alan Medford Grant, cujo nome, Deus do céu, também parece que era Hans Gresserhoff.

— Genki, tai-pan. Domo. Genki desu! Anatawa? (Bem, tai-pan, obrigada, e o senhor?)

— Genki.

Ele curvou-se ligeiramente e não apertou a mão dela, embora tivesse notado que suas mãos e pés eram pequeninos, as pernas, longas. Conversando fiado por um momento, depois ela passou a falar em inglês, com um sorriso.

— O senhor fala japonês muitíssimo bem, tai-pan. Meu marido, ele não me contou que o senhor era tão alto.

— Quer um pouco de café?

— Obrigada... ah, mas deixe que eu vá buscar para o senhor, também. — Antes que pudesse detê-la, ela já se dirigira para a bandeja de café. Observou enquanto ela servia, delicadamente. Entregou-lhe a primeira xícara, com uma pequena reverência. — Por favor. — Riko Gresserhoff, ou Riko Anjin, mal chegava a um metro e meio, perfeitamente proporcionada, com cabelos curtos e um belo sorriso, e pesaria uns quarenta e um quilos. Sua blusa e a saia eram de seda castanho-avermelhada, bem-talhadas, e francesas. — Obrigada pelo dinheiro para as despesas que a srta. Claudia me deu.

— Não é nada. Nós lhe devemos, ao espólio do seu marido, cerca de oito mil libras. Terei pronto um cheque administrativo para a senhora amanhã.

— Obrigada.

— Estou em dívida para com a senhora, sra. Gresserhoff. Sabe...

— Por favor, chame-me de Riko, tai-pan.

— Muito bem, Riko-san. Sabe tudo a meu respeito, mas nada sei da senhora.

— É. Meu marido disse que eu lhe devia contar o que quisesse saber. Disse que, depois que me tivesse certificado de que era o tai-pan, devia entregar-lhe um envelope que trouxe da parte dele para o senhor. Posso trazê-lo mais tarde? — Novamente, o pequeno sorriso interrogativo. — Por favor?

— Irei agora com a senhora e o apanharei.

— Ah, não, seria muito trabalho. Talvez eu possa trazê-lo para o senhor depois do almoço. Por favor?

— De que tamanho é o envelope? As mãozinhas dela mediram o ar.

— É um envelope comum, mas não muito grosso. Pode pô-lo facilmente no bolso.

O mesmo sorriso, de novo.

— Quem sabe não gostaria de... escute — disse, encantado com a presença dela. — Daqui a um ou dois minutos mando o carro ir levá-la. A senhora pega o envelope e volta para cá. — A seguir, acrescentou, sabendo que ia bagunçar os lugares marcados, mas pouco se importando: — Quer nos fazer companhia no almoço, no hipódromo?

— Ah, mas... mas teria que mudar de roupa e... ah, obrigada, não, iria lhe causar muito transtorno. Não poderia entregar a carta mais tarde, ou amanhã? Meu marido falou que só a entregasse nas suas mãos.

— Não precisa mudar de roupa, Riko-san, está linda. Ah, tem um chapéu?

Ela o fitou, perplexa.

— Como disse?

— É, bem, é costume nosso que as senhoras usem chapéus e luvas para as corridas. É um costume bobo, mas a senhora tem? Um chapéu?

— Tenho. Toda senhora tem um chapéu, naturalmente. Ele sentiu uma onda de alívio.

— Ótimo, então está tudo acertado.

— Bem, se é isso o que o senhor quer... — Levantou-se. — Posso ir, agora?

— Não, se tiver tempo, por favor, sente-se. Durante quanto tempo foram casados?

— Quatro anos. Hans... — Hesitou. Depois, falou com firmeza: — Hans mandou que eu lhe dissesse, mas só ao senhor, caso ele morresse e eu viesse para cá, como vim, que lhe dissesse que o nosso foi um casamento de conveniência.

— Como?

Ela enrubesceu um pouco, mas continuou:

— Por favor, desculpe, mas ele mandou que eu lhe dissesse. Foi uma conveniência para ambos. Consegui cidadania e passaporte suíços, e ele obteve alguém para cuidar dele quando ia à Suíça. Eu... não queria me casar, mas ele me pediu muitas vezes e... enfatizou que isso me protegeria quando ele morresse.

Dunross sobressaltou-se.

— Ele sabia que ia morrer?

— Acho que sim. Disse que o contrato de casamento era apenas de cinco anos, e que não devíamos ter filhos. Levou-me a um advogado de Zurique, que redigiu o contrato para cinco anos. — Abriu a bolsa, os dedos trêmulos, mas não a voz, e tirou de Iá um envelope. — Hans mandou que eu lhe entregasse isso: são cópias do contrato, minha certidão de nascimento e casamento, o testamento e a certidão de nascimento dele. — Pegou um lenço de papel e apertou-o contra o nariz. — Desculpe, por favor.

Cuidadosamente, desamarrou o barbante que envolvia o envelope e tirou de Iá uma carta.

Dunross aceitou-a. Reconheceu a letra de Alan.

"Tai-pan: Esta confirmará que minha mulher Riko Gresserhoff — Riko Anjin — é quem alega ser. Eu a amo de todo o meu coração. Ela merece e merecia alguém bem melhor do que eu. Se ela precisar de ajuda... por favor, por favor, por favor."

Estava assinada por Hans Gresserhoff.

— Não mereço marido melhor, tai-pan — disse numa vozinha triste e confiante. — Ele foi bom para mim, muito bom. E lamento que esteja morto.

Dunross a fitava.

— Ele estava doente? Sabia que ia morrer de alguma moléstia?

— Não sei. Nunca me contou. Um dos seus pedidos antes de... antes de eu me casar com ele, era que não lhe fizesse perguntas, não perguntasse aonde ia, por quê, ou quando ia voltar. Devia aceitá-lo como era. — Um ligeiro arrepio a percorreu. — Era muito difícil viver assim.

— Por que concordou em viver assim? Por quê? Sem dúvida não era necessário, não?

Riko hesitou de novo.

— Nasci no Japão, em 1939, e fui ainda bebê com meus pais para Berna... meu pai era um funcionário subalterno na embaixada japonesa ali. Em 1943, voltou ao Japão, mas deixou-nos em Genebra. Nossa família é... nossa família era de Nagasáqui. Em 1945 meu pai morreu, toda a nossa família morreu. Não havia motivo para voltar, e minha mãe quis ficar na Suíça. Por isso fomos morar em Zurique com um homem bom, que morreu há quatro anos. Ele... eles pagaram meus estudos e me sustentaram, e formávamos uma família feliz. Durante muitos anos eu soube que não eram casados, embora fingissem, e eu também. Quando ele morreu, não deixou dinheiro, ou deixou muito pouco. Hans Gresserhoff era conhecido desse homem, meu padrasto. O nome dele era Simeon Tzerak. Era uma pessoa deslocada, tai-pan, um apátrida nascido na Hungria que fora morar na Suíça. Antes da guerra era contador em Budapeste, ao que dizia. Minha mãe combinou meu casamento com Hans Gresserhoff. — Então, ergueu os olhos do tapete e olhou para ele. — Foi... foi um bom casamento, tai-pan, pelo menos eu me esforcei muito para ser o que meu marido e minha mãe queriam que eu fosse. Meu giri, meu dever, era obedecer a minha mãe, neh?

— É — disse ele bondosamente, compreendendo "dever" e "giri", a mais japonesa das palavras, a mais importante das palavras, que resume uma herança tradicional e um modo de vida. — Tenho certeza de que cumpriu perfeitamente o seu giri. E qual sua mãe acha que é o seu giri, agora?

— Minha mãe está morta, tai-pan. Quando meu padrasto morreu, não quis mais viver. Tão logo me casei, ela subiu uma montanha e esquiou para dentro de um precipício.

— Terrível.

— Ah, não, tai-pan, ótimo. Ela morreu como quis morrer, na hora e local da sua escolha. Seu homem estava morto, eu estava segura, o que mais lhe restava fazer?

— Nada — falou, escutando a suavidade da voz dela, a sinceridade, a calma. A palavra japonesa "wa" veio à sua cabeça: "harmonia". "É isso o que esta moça tem", pensou. "Harmonia. Vai ver que é isso o que lhe dá tanta beleza. Ayeeyah, quem me dera adquirir tal wa!"

Um dos seus telefones tocou.

— Sim, Claudia?

— É Aleksei Travkin, tai-pan. Desculpe, ele disse que era importante.

— Obrigado. — Para a moça, falou: — Dê-me licença um momento. Sim, Aleksei?

— Desculpe incomodar, tai-pan, mas Johnny Moore está doente e não vai poder montar.

Johnny Moore era o principal jóquei deles.

A voz de Dunross tornou-se mais cortante.

— Ele me pareceu bem, hoje de manhã.

— Está com uma febre de trinta e nove graus. O médico disse que pode ser intoxicação alimentar.

— Acha que mexeram na comida dele, Aleksei?

— Não sei, tai-pan, só sei que ele hoje não vai poder montar.

Dunross hesitou. Sabia que era melhor do que os seus demais jóqueis, embora o peso extra que Noble Star teria que carregar pudesse prejudicar o animal. "Devo ou não devo?"

— Aleksei, escale Tom Wong. Decidiremos antes do páreo.

— Sim. Obrigado. Dunross desligou.

— Anjin é um nome curioso — falou. — Quer dizer "piloto", ou "navegador", não é?

— Conta a lenda da minha família que um dos nossos ancestrais era um inglês que se tornou samurai e conselheiro do xógum Yoshi Toranaga, há muitos, muitíssimos anos. Temos muitas histórias, mas dizem que primeiro ele teve um feudo em Hemi, perto de Yokohama, depois foi com a família para Nagasáqui, como inspetor-geral de todos os estrangeiros. — De novo o sorriso, o dar de ombros, e a ponta da língua umede-ceu-lhe os lábios. — É só uma lenda, tai-pan. Dizem que se casou com uma dama de alta linhagem chamada Riko. — A risadinha dela encheu o aposento. — Conhece os japoneses! Um gaijin, um estrangeiro, casando-se com uma dama de alta linhagem... como isso seria possível? Mas, de qualquer forma, é uma história agradável, e uma explicação para um nome, neh? — Ela se levantou, e ele também. — Preciso ir, agora. Sim?

"Não", ele teve vontade de dizer.

O Daimler preto parou diante do Vic, as armas da Struan discretamente pintadas nas portas. Casey e Bartlett esperavam no topo das escadas, Casey de vestido verde, constrangida num chapeuzinho verde, redondo e de copa baixa, e em suas luvas brancas, Bartlett de ombros largos, a gravata azul combinando com o terno bem-talhado. Ambos estavam de cara fechada.

O chofer aproximou-se deles.

— Sr. Bartlett?

— Sim. — Desceram as escadas e foram ao seu encontro. — É nosso motorista?

— Sou, sim, senhor. Desculpe, senhor, mas os dois estão trazendo os distintivos de ingresso e os convites?

— Sim, aqui estão — respondeu Casey.

— Ah, ótimo. Desculpe, mas sem eles... Meu nome é Lim. O... bem... o costume é os cavalheiros prenderem os dois distintivos à lapela, e as senhoras geralmente usam um alfinete.

— Você é quem manda — disse Bartlett. Casey entrou no banco de trás, e ele a seguiu. Sentaram-se bem afastados. Em silêncio, começaram a pregar os pequenos distintivos, numerados individualmente.

Com ar inexpressivo, Lim fechou a porta, notando a frieza, rindo intimamente. Fechou a divisória elétrica de vidro e ligou o microfone do intercomunicador.

— Se quiser falar comigo, senhor, basta usar o microfone acima do senhor.

Pelo espelho retrovisor, viu Bartlett ligar momentaneamente o microfone.

— Certo, Lim, obrigado.

Tão logo Lim entrou no meio do tráfego, enfiou a mão sob o painel e tocou num botão oculto. Prontamente, ouviu-se a voz de Bartlett pelo alto-falante.

— ...vai chover?

— Não sei, Linc. O rádio disse que sim, mas está todo mundo rezando para que não chova. — Uma hesitação, depois friamente: — Ainda acho que está errado.

Lim recostou-se, satisfeito. Seu irmão mais velho, de toda a confiança, Lim Chu, mordomo dos tai-pans da Casa Nobre, conseguira que um outro irmão mais moço, um excelente mecânico de rádio, instalasse aquele interruptor secundário para que ele pudesse escutar o que diziam os passageiros. Custara muito caro, mas era para proteger o tai-pan, e o Irmão Mais Velho Lim ordenara que nunca devia ser usado quando o tai-pan estivesse no carro. Nunca, nunca, nunca. E nunca o fora. Ainda. Lim sentia-se nauseado à idéia de ser apanhado, mas a vontade deles de saber... naturalmente para proteger... superava sua ansiedade. "Oh, oh, oh", casquinava, "a Pêlos Púbicos Dourados está mesmo uma fera!"

Casey estava fumegando.

— Vamos parar com isso, tá legal? Desde a hora do café que você está parecendo um urso com dor no rabo!

— E você, então? — Bartlett olhou feio para ela. — Vamos ficar com o Gornt... como eu quero.

— Esse negócio é meu, você disse isso cinqüenta vezes. Você prometeu, sempre escutou antes. Pombas, estamos do mesmo lado, só estou tentando protegê-lo. Sei que você está errado.

— Você pensa que estou errado. E tudo por causa da Orlanda!

— Isso é besteira! Já expliquei meus motivos cinqüenta vezes. Se o Ian conseguir sair da armadilha, para nós será muito melhor ficar com ele do que com Gornt.

A fisionomia de Bartlett estava fria.

— Nunca tivemos uma briga antes, Casey, mas se quiser pôr suas ações em votação, farei o mesmo com as minhas, e você estará com o rabo na seringa antes de poder contar até dez!

O coração de Casey batia fortemente. Desde a reunião com Seymour Steigler, na hora do café, que o dia estava pesadíssimo. Bartlett não arredava pé da idéia de que, para ele, ficar com Gornt era o melhor, e nada que ela dissesse o faria mudar de opinião. Depois de uma hora de tentativas, ela encerrara a reunião e fora cuidar de uma pilha de telex chegados durante a noite. Depois, lembrando-se subitamente, em cima da hora, saíra em pânico para ir comprar o chapéu.

Quando se encontrara com Bartlett no saguão, cheia de expectativa, querendo que ele gostasse do chapéu, começara a fazer as pazes com ele, mas ele a interrompera.

— Esqueça — dissera. — Não estamos de acordo. E daí? Ela esperara e esperara, mas ele nem percebera.

— O que você acha?

— Já lhe disse. Gornt é melhor para nós.

— Estou falando do meu chapéu. Notara o olhar vazio dele.

— Ah, então é isso o que está diferente. É, está legal! Casey sentira vontade de arrancar o chapéu e jogá-lo em cima dele.

— É parisiense — dissera, meio sem jeito. — O convite diz chapéu e luvas, lembra? É uma baboseira, mas o Ian disse que as senhoras...

— O que a faz pensar que ele vai conseguir sair da armadilha?

— Ele é esperto. E é o tai-pan.

— Gornt está levando a melhor.

— E o que parece. Bem, vamos esquecer o assunto, por enquanto. É melhor esperarmos Iá fora. O carro vai chegar exatamente ao meio-dia.

— Só um minutinho, Casey. O que você está aprontando?

— O que quer dizer?

— Conheço-a melhor do que ninguém. Está tramando alguma coisa.

Casey hesitou, insegura, perguntando-se se realmente devia revelar a trama do First Central. "Não há motivo para fazê-lo", tranqüilizou-se. "Se o Ian obtiver o crédito e conseguir se safar, serei a primeira a saber. Ele prometeu. Aí, o Linc poderá cobrir os seus dois milhões com Gornt, e eles poderão recom-prar para cobrir as vendas a descoberto, e ter um lucro imenso. Ao mesmo tempo, Ian, Linc e eu entramos no mercado em baixa e obteremos o nosso próprio lucro, enorme. Serei a primeira a saber, depois do Murtagh e do Ian. Ian prometeu. É, foi, sim. Mas, será que posso confiar nele?"

Sentiu uma onda de náusea invadi-la. "Será que a gente pode confiar em alguém, comercialmente, aqui ou em outro lugar qualquer? Homem ou mulher?"

Na noite anterior, durante o jantar, confiara nele. Influenciada pelo vinho e pela comida, contara-lhe sobre o seu relacionamento com Linc, e o trato que haviam feito.

— É dureza, não? Para vocês dois?

— Sim e não. Ambos éramos maiores de idade, Ian, e eu queria ser algo mais do que apenas a sra. Linc Bartlett, mãe-amante-criada-lavadeira-de-pratos-lavadeira-de- fraldas-escrava-deixada-em-casa. Isso é o que acaba matando qualquer mulher. Ela é sempre abandonada. Em casa. Então, a casa acaba se tornando uma prisão, e isso a deixa maluca, o fato de ficar aprisionada até que a morte nos separe! Já vi isso acontecer muitas vezes.

— Alguém tem que cuidar da casa e das crianças. Cabe ao homem ganhar o dinheiro. Cabe à mulher...

— É. Na maioria das vezes. Mas não para mim. Eu não estou preparada para aceitar isso, e não acho que seja errado desejar um tipo de vida diferente. Sou eu quem ganha o sustento da minha família. O marido de minha irmã morreu, ela e os filhos precisam de ajuda. Minha mãe e meu tio estão velhinhos. Sou instruída, preparada, melhor do que muita gente no ramo. O mundo está mudando, tudo está mudando, Ian.

— Como já disse, não aqui, graças a Deus!

Casey lembrou-se de como já estava pronta para dar o troco na mesma moeda, mas mordeu a língua da antiga Casey e, ao invés disso, perguntou:

— Ian, e quanto à Bruxa? Como foi que ela conseguiu? Qual o segredo dela? Como se tornou superior aos outros?

— Os cordões da bolsa ficavam nas mãos dela. Totalmente. Ah, claro que concedia posição e prestígio externos a Culum e aos tai-pans seguintes, mas ela cuidava dos livros, contratava e despedia através dele... era a força daquela família. Quando Culum estava morrendo, foi fácil persuadi-lo a fazê-la tai-pan. Ele lhe entregou o carimbo da Struan, o carimbo da família, todas as rédeas e todos os segredos. Mas, sabiamente, ela manteve tudo em segredo, e depois de Culum só escolhia aqueles a quem podia controlar, e nem uma só vez deu a nenhum deles os cordões da bolsa, ou poder real, até que ela própria estivesse à morte.

— Mas dominar através dos outros será suficiente?

— O poder é o poder, e não creio que importe, contanto que se domine. Para uma mulher, depois de uma certa idade, o poder só vem através do controle do dinheiro. Mas você está certa quanto ao dinheiro do dane-se. Hong Kong é o único lugar no mundo onde você pode consegui-lo e mantê-lo. Com dinheiro, dinheiro grosso, pode-se ser igual a qualquer outro. Até mesmo Linc Bartlett. A propósito, gosto dele. Gosto muito dele.

— Eu o amo. Nossa parceria funcionou, Ian. Acho que tem sido boa para o Linc... ah, como espero que sim! Ele é o nosso tai-pan, e não estou tentando tomar o seu lugar. Só quero ter êxito como mulher. Ele tem me ajudado tremendamente, claro que tem. Sem ele, eu jamais teria conseguido. Assim somos sócios comerciais, até o meu aniversário, no dia 25 de novembro deste ano. É o Dia D. É quando ambos decidiremos.

— E...?

— Não sei, sinceramente não sei. Ah, eu amo o Linc mais do que nunca, porém não somos amantes.

Mais tarde, enquanto voltavam, na barca, ela sentira enorme vontade de fazer-lhe perguntas sobre Orlanda. Resolvera não fazer.

— Talvez eu devesse ter feito — resmungou em voz alta.

— O quê?

— Ah! — Voltou ao presente, encontrando-se na limu-sine, na balsa que levava a Hong Kong. — Desculpe, Linc, estava sonhando acordada.

Olhou para ele, e viu que continuava bonito como sempre, embora olhasse para ela friamente. "Você me atrai mais do que o Ian ou o Quillan", pensou. "E no entanto, agora, preferiria ir para a cama com qualquer um deles, e não com você. Porque você é um filho da mãe."

— Quer ir às últimas conseqüências? — dizia ele. — Quer pôr suas ações em votação contra as minhas?

Casey devolveu-lhe o olhar, furiosa. "Diga a ele para se foder", gritava-lhe a sua metade diabo, "precisa de você mais do que você dele, você tem as rédeas da Par-Con, sabe onde estão todos os podres, pode destroçar o que ajudou a criar." Mas sua outra metade lhe pedia cautela. Lembrou-se do que o tai-pan dissera sobre esse mundo dos homens, sobre o poder. E sobre a Bruxa.

Assim, baixou os olhos por um instante e deixou as lágrimas escorrerem. Imediatamente, notou a mudança nele.

— Puxa, Casey, não chore, desculpe... — dizia, estendendo os braços para ela. — Puxa, você nunca chorou antes... Escute, já cortamos um dobrado uma dúzia de vezes. Que nada! Umas cinqüenta vezes. Não há necessidade de ficar tão nervosa. Fizemos a Struan e Gornt se engalfinharem. No final não haverá diferença. Ainda seremos a Casa Nobre, mas no futuro o Gornt será o melhor, sei que estou certo.

"Mas não está mesmo", pensou, satisfeita, aconchegada a ele.


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