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00h35m

Irritado, o Banqueiro Kwang apertou a campainha diversas vezes. A porta se escancarou e Vênus Poon gritou estridentemente, em cantonense:

— Como ousa vir aqui a esta hora da noite sem ter sido convidado?

Estava de queixo empinado, parada com uma mão na porta e a outra atrevidamente no quadril, o vestido de noite decotado devastador.

— Cale-se, sua prostituta sem-vergonha! — berrou o Banqueiro Kwang, empurrando-a e entrando no apartamento. — Quem está pagando o aluguel? Quem comprou todos esses móveis? Quem pagou esse vestido? Por que não está pronta para ir dormir? Quem...

— Cale-se! — A voz dela era aguda, e abafou facilmente a dele. — Você estava pagando o aluguel, mas hoje é o dia em que venceu o aluguel, e onde está ele, heyaheyaheyaheya?

— Aqui! — O Banqueiro Kwang arrancou o cheque do bolso e agitou-o sob o nariz dela. — E eu Iá esqueço as porras das minhas promessas?... não! Você esquece as porras das suas promessas?... sim!

Vênus Poon piscou os olhos. Sua raiva desapareceu, seu rosto mudou, a voz ficou carregada de mel.

— Ah, o Pai se lembrou? Ah, tinham me dito que havia abandonado a sua pobre Filha solitária, e voltado para as prostitutas da Blore Street número 1.

— Mentiras! — exclamou o Banqueiro Kwang, quase apopléctico, embora fosse verdade. — Por que não está vestida para ir dormir? Por que está usan...

— Mas três pessoas diferentes ligaram para mim, dizendo que você tinha estado Iá hoje à tarde, às quatro e quinze. Ah, como as pessoas são terríveis! — falou, com voz macia, sabendo que ele tinha estado Iá, embora apenas para apresentar o Banqueiro Ching, com quem estava tentando arranjar um empréstimo. — Ah, pobre Pai, como as pessoas são horrorosas! — Enquanto falava, carinhosamente, aproximou-se mais dele. Repentinamente, deu um bote com a mão e arrancou o cheque da mão dele antes que pudesse puxá-lo, embora continuasse falando com voz meiga: — Ah, obrigada, Pai, do fundo do coração... oh ko! — Ficou vesga de raiva, a voz mais dura e estridente de novo: — O cheque não está assinado, seu velho sujo, seu carne de cachorro! É outro dos seus truques de banqueiro! Ai, ai, ai, acho que vou me matar na porta da sua casa... não, melhor ainda, vou me matar diante das câmeras de TV, contando para toda a Hong Kong como você... Ai, ai, ai...

A amah dela agora estava na sala também, unindo-se a ela nos lamentos e miados, as duas mulheres envolvendo-o num coro de desaforos, desafios e acusações.

Impotente, ele as xingava também, mas isso só fez com que elas aumentassem o volume da algazarra. Ele ficou firme por um momento, depois, vencido, pegou uma caneta-tinteiro com um floreio, agarrou o cheque e assinou-o. A barulheira cessou. Vênus Poon pegou o cheque e examinou-o atentamente. Muito, muito atentamente. Ele sumiu dentro da bolsa dela.

— Ah, obrigada, Honorável Pai — disse humildemente, e virou-se abruptamente contra a amah. — Como ousa interferir numa discussão entre o amor da minha vida e sua patroa, seu monte de carne de cachorro apodrecida? É tudo culpa sua, por espalhar as mentiras cruéis de outras pessoas sobre a infi-delidade do Pai! Fora daqui! Vá buscar chá e comida! Fora! O Pai está precisando de um conhaque... vá buscar um conhaque, depressa!

A velha fingiu se abalar diante da raiva simulada e saiu depressa, vertendo lágrimas falsas. Vênus Poon arrulhava e se alvoroçava, as mãos suaves no pescoço de Richard Kwang.

Finalmente, graças à magia delas, ele se acalmou e serviu-se de uma bebida, lamentando em voz alta o tempo todo o seu azar, e como seus subordinados, amigos, aliados e devedores o haviam abandonado maldosamente, depois que somente ele em todo o império Ho-Pak havia trabalhado, gastando os dedos até os tendões, os pés até ficarem em carne viva, preocupando-se com todos eles.

— Oh, pobrezinho! — ronronava Vênus Poon, a cabeça a mil por hora enquanto os dedos funcionavam terna e habilmente. Tinha cerca de meia hora para chegar ao seu encontro com Wu Quatro Dedos, e, conquanto soubesse que era bom deixá-lo esperando um pouco, não queria que esperasse demais, para não esfriar o seu ardor. O último encontro deles o deixara tão excitado que ele lhe prometera um diamante, se ela repetisse sua atuação.

— Eu garanto, senhor — ofegara ela, exausta, a pele pegajosa de suor de duas horas de esforço concentrado, sentindo-se flutuar com a imensidade da explosão dele, finalmente conseguida.

Girou os olhos nas órbitas ao recordar os esforços prodigiosos de Wu Quatro Dedos, seu tamanho, conformidade e técnica apurada. "Ayeeyah", pensou, ainda massageando o pescoço do antigo amante, "vou precisar de cada grama de energia e de cada porção de sumo que o yin puder reunir para dominar o yang uivante do velho depravado. "

— Melhorou o seu pescoço, meu amor mais querido? — arrulhou.

— Melhorou, sim — disse Richard Kwang, relutante. A cabeça dele estava desanuviada, e ele sabia que os dedos dela eram tão hábeis quanto a sua boca e suas partes incomparáveis.

Sentou-a nos joelhos e enfiou Confiantemente a mão pelo decote do vestido de noite de seda preta que comprara para ela na semana anterior, e acariciou-lhe os seios. Quando ela não resistiu, arriou uma das alças e elogiou-a pelo tamanho, textura, gosto e formato do busto. O calor dela fez com que ele começasse a se excitar. Imediatamente, sua outra mão estendeu-se para o yin. Mas antes que se desse conta, ela havia escapado habilmente das suas mãos.

— Ah, não, Pai! O Honorável Vermelho está me visitando, e por mais que eu...

— Hem? — exclamou o Banqueiro Kwang, desconfiado. — O Honorável Vermelho não é esperado antes de depois de amanhã!

— Ah, não, ele chegou subitamente...

— Como? Ele só é esperado para depois de amanhã. Eu sei. Olhei no meu calendário e me certifiquei, antes de vir para cá! Sou algum idiota? Vou pescar um tigre num riacho? Temos um encontro marcado para hoje, para durar a noite toda. Senão, por que a desculpa de eu estar em Formosa? Você nunca se adianta, e nunca...

— Ah, mas foi hoje de manhã... o choque do incêndio, e o choque ainda maior de que você tinha me abandonado fez com que...

— Venha aqui, sua safadinha...

— Ah, não, Pai, o Honorável Vermelho...

Antes que ela pudesse se desviar, ele a agarrou e voltou a sentá-la nos joelhos. Começou a levantar-lhe a saia, mas Vênus

Poon era macaca velha nesse tipo de guerra, campeã de centenas de torneios, embora tivesse apenas dezenove anos. Não lutou contra ele, apenas chegou mais para perto dele, retorceu-se e segurou-o com uma das mãos, acariciando-o, e murmurou com voz rouca:

— Ah, Pai, mas dá muito azar mexer com o Honorável Vermelho, e por mais que eu deseje a sua imensidade dentro de mim, ambos sabemos que há outros meios de o yin deleitar o vórtice vital.

— Mas primeiro quero...

— Primeiro? Primeiro? — Satisfeita consigo mesma, sentiu-o ficar mais rijo. — Ah, como você é forte! Ah, é fácil ver por que todas as fofoqueiras safadas querem o meu velho Pai, ayeeyah, um homem tão forte, violento, maravilhoso!

Destramente, deixou à mostra o yang. Destramente, dominou-o e deixou o banqueiro ofegando.

— Vamos para a cama, querida — falou ele, a voz roufenha. — Primeiro um pouco de conhaque, depois uma dormi-dinha, e...

— Certo, mas não aqui, ah, não! — disse ela com firmeza, ajudando-o a levantar-se.

— Hem? Mas para todos os efeitos estou em Formosa...

— Sei, portanto é melhor ir para o seu clube!

— Mas eu...

— Ah, mas como deixou exausta a sua pobre Filha! Fingiu debilidade enquanto o arrumava e o levava até a porta antes que ele se desse conta do que se estava passando. Lá, beijou-o apaixonadamente, jurou amor eterno, prometeu que o veria no dia seguinte e fechou a porta às suas costas.

Trêmulo, ele ficou fitando a porta, os joelhos bambos, a pele pegajosa, desejando esmurrar a porta e exigir descansar na cama que havia comprado. Mas não o fez. Não tinha forças, e foi cambaleando até o elevador.

Ao descer, abriu subitamente um amplo sorriso, radiante consigo mesmo. O cheque que lhe dera correspondia apenas a um mês de aluguel. Ela se esquecera de que no mês anterior ele concordara em aumentar a quantia em quinhentos dólares por mês. "Eeee, Boquinha Maravilhosa", casquinou ele, "o yang passou a perna no yin, afinal de contas! Ah, como a esgotei hoje, e, oh, as Nuvens e Chuva! Hoje foi realmente a Pequena Morte e o Grande Nascimento, e até que barato ao preço de duas vezes o aluguel de um mês, mesmo com o aumento!"

Vênus Poon acabou de escovar os dentes e começou a retocar a maquiagem. Viu a amah pelo espelho do banheiro.

— Ah Poo — disse, com voz estridente —, pegue a minha capa de chuva, aquela preta, antiga, e telefone pedindo um táxi... e depressa, senão belisco as suas bochechas!

A velha apressou-se a obedecer, radiante porque o mau humor da patroa tinha passado.

— Já chamei o táxi — falou, resfolegando. — Estará Iá embaixo, esperando na porta lateral, logo que a Mãe descer. Mas é melhor dar alguns minutos para o Pai se afastar, para o caso de ele ter ficado desconfiado.

— Hum, aquele Casco de Tartaruga agora não presta para mais nada! Só lhe sobram forças para cair no banco de trás do carro e mandar que o levem ao seu clube!

Vênus Poon terminou de pintar os lábios e sorriu para si mesma no espelho, admirando-se imensamente.

"Agora, vamos ao diamante", pensou, entusiasmada.

— Quando se ver de novo, Paw'll? — perguntou Lily Su.

— Logo. Na semana que vem. — Havergill terminou de se vestir e apanhou relutantemente a capa de chuva. Estavam num quarto pequeno, mas limpo e agradável, tendo um banheiro com água corrente quente e fria, que a gerência do hotel mandara instalar particularmente, com grande despesa, ajudada clandestinamente por alguns peritos do departamento de águas. — Ligo para você, como sempre.

— Por que triste, Paw'll?

Virou-se e olhou para ela. Não lhe contara que em breve iria embora de Hong Kong. Da cama, ela também o olhava, a pele lustrosa e cheia de juventude. Há quase quatro meses era sua amante, não amante exclusiva, já que não lhe pagava o aluguel ou outras despesas. Ela era recepcionista da Boate Recepcionista Feliz, seu clube noturno preferido, em Kowloon. O dono da boate era Pok Um Olho Só, um antigo e valioso cliente do banco há muitos anos. A mama-san era uma mulher esperta, que conhecia os seus gostos. Tivera muitas amantes da Recepcionista Feliz ao longo dos anos, a maioria por algumas horas, algumas por um mês, pouquíssimas por mais tempo, e apenas uma experiência ruim em quinze anos... uma das moças tentara fazer chantagem. Prontamente ele procurara a mama-san. A moça fora embora naquela mesma noite. Nem ela nem seu cafetão tríade jamais tinham sido vistos outra vez.

— Por que triste, heya?

"Porque em breve vou embora de Hong Kong", tinha vontade de lhe dizer. "Porque quero uma exclusividade que não posso ter, mas devo ter, não ouso ter... e nunca quis ter com nenhuma antes. Ah, Deus do céu, como quero você!"

— Triste, não, Lily, apenas cansado — disse, os problemas do banco aumentando o peso que sentia.

— Tudo vai ficar muito bom — disse ela, confortadora. — Liga logo, heya?

— Sim. Ligo, sim.

A combinação deles era muito simples: um telefonema. Se não pudesse falar diretamente com ela, ligava para a mama-san e à noite ia à boate, sozinho ou com amigos. Ele e Lily dançavam um pouco para salvar as aparências, tomavam alguns drinques, e ela ia embora. Depois de uma meia hora ele pagava a conta e vinha para o local de encontros, já pago adiantada-mente. Não vinham juntos para o local de encontros particular e exclusivo porque ela não queria ser vista nas ruas, ou por vizinhos, com um demônio estrangeiro. Seria desastroso para a reputação de uma moça ser vista sozinha com um bárbaro. Em público. Fora do seu local de trabalho. Qualquer moça em idade de ter relações sexuais seria imediatamente considerada o tipo mais baixo de meretriz, a meretriz de um demônio estrangeiro, e desprezada como tal, abertamente ridicularizada, e seu valor diminuiria.

Havergill sabia disso e não se importava. Em Hong Kong aquilo era uma realidade da vida.

— Doh jeh. Obrigado — disse, sentindo amor por ela, querendo ficar, ou querendo levá-la com ele. — Doh jeh — disse apenas, e se retirou.

Quando ficou sozinha, Lily deixou escapar o forte bocejo que quase a dominara muitas vezes naquela noite, recostou-se na cama e espreguiçou-se gostosamente. A cama estava desfeita, mas era mil vezes melhor do que o catre no quarto que alugava em Tai-ping Shan.

Uma leve batida na porta.

— Honrada Senhora?

— Ah Chun?

— Sim. — A porta se abriu e a velha entrou, trazendo toalhas limpas. — Quanto tempo vai demorar?

Lily Su hesitou. Era costume o cliente pagar o quarto pela noite inteira. Também era costume, caso o quarto ficasse livre antes, a gerência devolver parte da taxa paga à garota.

— A noite toda — falou, querendo curtir o luxo, sem saber quando teria nova oportunidade. Talvez na semana seguinte aquele cliente já tivesse perdido o seu banco e tudo o mais.

— Joss — falou, e depois: — Prepare-me o banho, por favor.

Resmungando, a velha fez o que lhe tinha sido ordenado e foi embora. Lily Su deixou escapar novo bocejo, ouvindo, satisfeita, o barulho da água correndo. Também estava cansada. O dia fora exaustivo. E naquela noite o cliente falara mais do que de costume, enquanto ela se apoiava nele, tentando dormir, sem escutar, compreendendo apenas uma palavra aqui e ali, mas satisfeita em deixá-lo falar. Sabia, por longa experiência, que aquela era uma forma de alívio, especialmente para um bárbaro velho. "Que coisa estranha", pensou, "toda essa trabalheira, barulho, lágrimas e dinheiro para conseguir apenas mais dor, mais conversa e mais lágrimas. "

— Não se incomode se o yang for fraco ou se eles falarem, resmungarem, murmurarem no seu idioma pavoroso ou chorarem nos seus braços. Os bárbaros agem assim — explicara-lhe a mama-san. — Feche os ouvidos. E feche as narinas ao cheiro de demônio estrangeiro e ao cheiro de velho, e ajude-o a curtir um momento de prazer. Ele é yan de Hong Kong, um velho amigo, e também paga bem, pontualmente. Está rapidamente conseguindo que você liquide as suas dívidas, e dá muito prestígio ter um companheiro de cama desses. Portanto, mostre entusiasmo, finja que ele é viril, e faça jus ao dinheiro que ele lhe paga.

Lily Su sabia que fazia jus ao dinheiro recebido. "É, minha sorte é muito boa, melhor do que a da minha pobre irmã e do seu protetor. Pobre Flor Fragrante e seu Filho Número Um do Chen da Casa Nobre! Que tragédia! Que crueldade!"

Estremeceu. "Ah, aqueles terríveis Lobisomens! É terrível cortar-lhe fora a orelha, terrível assassiná-lo e ameaçar toda a Hong Kong, terrível para a minha pobre irmã mais velha ser esmagada até a morte por aqueles pescadores nojentos e fedidos de Aberdeen. Ah, que triste sina!"

Somente naquela manhã lera no jornal uma cópia da carta de amor de John Chen, reconhecendo-a imediatamente. Durante semanas as duas haviam rido da carta, ela e Flor Fragrante, daquela e das duas outras cartas que Flor Fragrante lhe entregara para guardar.

— Um homem tão engraçado, quase sem nenhum yang, e quase sempre nem um pouquinho duro — contara-lhe a irmã mais velha. — Ele me paga só para ficar deitada, para ele beijar, às vezes para dançar sem roupa, e sempre me faz prometer contar aos outros como ele é forte! Eeeee, ele me dá dinheiro como se fosse água! Há onze semanas que sou o "seu verdadeiro amor"! Se isso continuar por mais onze semanas... quem sabe um apartamento todo pago!

Naquela tarde, temerosa, fora com o pai à delegacia de Aberdeen Leste para identificar o corpo. Não disseram que sabiam quem era o protetor dela. Sabiamente, o pai mandara que guardasse segredo.

— Sem dúvida, o Chen da Casa Nobre vai preferir que isto fique em segredo. Seu prestígio também está envolvido, e o prestígio do novo herdeiro. Como se chama? O tal com o nome de demônio estrangeiro? Daqui a um ou dois dias telefonarei para o Chen da Casa Nobre, para sondá-lo. Temos que esperar um pouco. Depois das notícias de hoje, depois de saber o que os Lobisomens fizeram com o Filho Número Um, pai algum vai querer negociar.

"É, o pai é esperto", pensou. "Não é à toa que seus companheiros de trabalho chamam-no de Chu Nove Quilates. Graças a todos os deuses que tenho as duas outras cartas.”

Depois que haviam identificado o corpo da irmã, preencheram formulários com seus nomes verdadeiros e o nome verdadeiro da família, Chu, para reclamar o dinheiro dela: quatro mil trezentos e sessenta HK no nome de Glicínia Su, e três mil HK no nome de Flor Fragrante Tak, dinheiro ganho fora do Cabaré Boa Sorte. Mas o sargento da polícia fora inflexível.

— Lamento, mas agora que sabemos o seu nome verdadeiro temos que anunciá-lo, para que todos os seus credores possam reclamar sua parte do espólio.

Nem mesmo uma oferta muito generosa de vinte e cinco por cento do dinheiro em troca da posse imediata não conseguira demovê-lo. Então, tinham ido embora.

"Aquele carne de cachorro nojento, escravo dos demônios estrangeiros", pensou ela, enojada. "Nada sobrará depois que o cabaré cobrar suas dívidas. Nada. Ayeeyah!

"Mas, tudo bem", disse com seus botões, ao se deitar na banheira, numa satisfação gloriosa. "Tudo bem. O segredo das cartas vai valer uma fortuna para o Chen da Casa Nobre.

"E o Chen da Casa Nobre tem mais notas vermelhas do que um gato tem pêlos. "

Casey estava enroscada junto à janela do quarto de dormir, todas as luzes apagadas, exceto uma pequena lâmpada de leitura, junto à cama. Fitava melancolicamente a rua, cinco andares abaixo. Mesmo àquela hora tardia, quase uma e meia da madrugada, a rua ainda estava congestionada pelo tráfego. Não havia lua no céu, e as nuvens estavam baixas, pesadas, tornando as luzes vermelhas, verdes e azuis dos imensos cartazes de neon e colunas de caracteres chineses que se refletiam nas poças d'água ainda mais ofuscantes e transformando a feiúra da cidade num país encantado. A janela estava aberta, o ar, fresco, e ela podia ver casais correndo entre os ônibus, caminhões e táxis. Muitos dos casais dirigiam-se para o saguão do novo Royal Netherlands Hotel para fazerem uma "boquinha" no novo café europeu, onde ela tomara o último café da noite com o comandante Jannelli, o piloto deles.

"Todo mundo aqui come tanto!", pensou, vagamente. "Meu Deus!, e tanta gente precisando de trabalho, tão poucos empregos, tão poucos Iá no topo, um no topo de cada pilha, sempre um homem, todos lutando para se manter ali, para continuar ali... mas para quê? Um carro novo, uma casa nova, uma nova geladeira, a última novidade, ou seja Iá o que for.

"A vida é uma conta sem fim. Nunca há grana suficiente para se pagar todas as contas do dia-a-dia, que dirá um iate particular ou um condomínio particular nas praias de Acapulco ou da Cote d'Azur e os meios para se chegar Iá... mesmo como turista.

"Detesto viajar na classe turística. A primeira classe é o que vale, para mim. O jato particular ainda é melhor, muito melhor. Mas não vou ficar pensando no Linc... "

Jantara com Seymour Steigler no restaurante do hotel, e haviam acertado todos os seus assuntos comerciais, na sua maioria problemas legais que ele estava levantando.

— Temos que deixar tudo impecável, sem uma brecha. Todo o cuidado é pouco com os estrangeiros, Casey — repetia. — Eles não jogam segundo as boas regras ianques.

Logo que o jantar acabou, ela fingiu ter um monte de trabalho a esperá-la, e deixou-o. Já tinha acabado tudo o que precisava fazer. Assim, enroscou-se numa poltrona e começou a ler, leitura dinâmica. Fortune, Business Week, The Wall Street Journal e várias revistas comerciais especializadas. Depois, estudou mais uma lição de cantonense, deixando o livro para o fim. Era o romance de Peter Marlowe, Changi. Encontrara o exemplar muito manuseado numa das dúzias de bancas de livros de rua num beco ao norte do hotel, na manhã do dia anterior. Tivera um grande prazer em pechinchar para adquiri-lo. O primeiro preço pedido fora vinte e dois HK. Casey pechinchara até comprá-lo por sete HK e cinqüenta e cinco cents, cerca de um dólar e meio, em moeda americana. Encantada consigo mesma e com sua descoberta, continuou a ver vitrines. Ali perto ficava uma livraria moderna, as vitrines cheias de livros ilustrados sobre Hong Kong e a China. Lá dentro, numa prateleira, viu mais três brochuras de Changi. Novas, custavam cinco HK e setenta e cinco cents.

Imediatamente, Casey xingou a velha vendedora de rua por tê-la enganado. "Mas", lembrou a si mesma, "a bruxa velha não trapaceou com você. Simplesmente foi melhor comerciante. Afinal de contas, há pouco você estava se vangloriando por ter reduzido o lucro dela a zero, e Deus sabe que essa gente precisa de lucro. "

Casey ficou olhando a rua e o tráfego na Nathan Road, Iá embaixo. Pela manhã, subira a Nathan Road até a Boundary Road, cerca de dois quilômetros adiante. Fazia parte da sua lista de coisas a ver. Era uma rua como outra qualquer, congestionada, movimentada, cheia de cartazes espalhafatosos, só que tudo ao norte da Boundary Road, até a fronteira, reverteria para a China em 1997. Tudo. Em 1898, os britânicos haviam arrendado por noventa e nove anos a terra que se estendia da Boundary Road até o rio Sham Chun, onde ficaria a nova fronteira, juntamente com várias ilhas próximas.

— Não foi uma burrice, Peter? — perguntara a Marlowe, encontrando-o por acaso no saguão do hotel, à hora do chá.

— Agora é — replicou, pensativo. — Naquela época? Bem, quem sabe? Devia ser uma coisa sensata. Caso contrário não o teriam feito.

— Eu sei, Peter, mas, meu Deus, noventa e nove anos é tão pouco tempo! O que deu neles para arrendarem por tão pouco tempo? Deviam estar com a cabeça... noutro lugar.

— É. Pode-se pensar assim. Hoje. Mas naquela época, quando bastava o primeiro-ministro britânico arrotar para causar uma onda de choque no mundo todo? O poder mundial é que faz toda a diferença. Naquela época, o Leão Britânico ainda era o Leão. O que significava um pedacinho de terra para os donos de um quarto do globo? — Lembrava-se de como ele sorrira. — Mesmo assim, nos Novos Territórios, houve oposição armada do pessoal local. Naturalmente, não deu em nada. O governador de então, Sir Henry Blake, cuidou de tudo: não guerreou com eles, apenas conversou. Os chefes da aldeia acabaram por concordar em dar a outra face, desde que suas leis e costumes continuassem em vigor, desde que pudessem ser julgados segundo as leis chinesas, se quisessem, e desde que Kowloon City continuasse chinesa.

— O pessoal local ainda é julgado segundo as leis chinesas?

— É, lei histórica, não da RPC. Portanto, é preciso ter magistrados britânicos versados na lei de Confúcio. É bastante diferente. Por exemplo, a lei chinesa presume que todas as testemunhas naturalmente mintam, que é seu dever mentir e encobrir as coisas, e cabe ao magistrado descobrir a verdade. Ele tem que ser uma espécie de Charlie Chan legal. Gente civilizada não costuma jurar dizer a verdade, toda essa espécie de barbarismo... acham que somos malucos por agir assim, e não tenho certeza de que estejam errados. Os chineses têm todo tipo de costumes, loucos ou sensatos, dependendo do ponto de vista da gente. Sabe que é perfeitamente legal, em toda a colônia, ter mais de uma mulher... se se for chinês.

— Ora vejam só!

— Ter mais de uma mulher realmente tem Iá as suas vantagens.

— Escute aqui, Peter — começou, veementemente, depois se deu conta de que ele estava simplesmente implicando com ela. — Você não precisa de mais de uma. Tem a Fleur. Como vão indo os dois? E a pesquisa? Quem sabe ela não gostaria de almoçar comigo amanhã, se você estiver ocupado.

— Desculpe, mas ela está no hospital.

— Meu Deus, o que houve?

Ele lhe contou sobre o que se passara de manhã, e sobre o dr. Tooley.

— Acabo de vê-la. Ela... não está passando muito bem.

— Ah, sinto muito. Há alguma coisa que eu possa fazer?

— Não, obrigado. Acho que não.

— Basta pedir, se houver. Certo?

— Obrigado.

— Linc agiu certo ao saltar com ela dentro d'água, Peter. Juro.

— Mas é claro, Casey. Por favor, não pense por um momento que... Linc fez o que eu... fez melhor do que eu faria. E você também. E acho que vocês dois também salvaram aquela outra moça de um bocado de encrenca. Orlanda. Orlanda Ramos.

— Sei.

— Ela deve ser eternamente grata a você. A vocês dois. Estava em pânico... já vi gente demais assim, eu sei. Uma gata espetacular, ela, não é?

— É. Como vai indo a pesquisa?

— Bem, obrigado.

— Às vezes gostaria de trocar impressões com você. Ei, a propósito... achei seu livro e comprei-o. Ainda não li, mas está no topo da lista.

— Ah! — Casey lembrava-se de como ele tentara parecer natural. — Ah! Espero que goste. Bem, tenho que ir andando. Está na hora do chá das meninas.

— Lembre-se, Peter, se houver alguma coisa, pode me chamar. Obrigada pelo chá, e dê um beijo na Fleur...

Casey espreguiçou-se, sentindo agora uma dor nas costas. Saiu do banco junto à janela e foi para a cama, O quarto era pequeno, e não tinha a elegância da suíte deles... da suíte dele, agora. Ele resolvera ficar com o segundo quarto.

— Sempre podemos usá-lo como escritório — dissera-lhe —, ou guardá-lo de reserva. Não se preocupe, Casey, tudo é deduzível do imposto de renda, e nunca se sabe quando se pode precisar de um quarto de reserva.

Orlanda? Não, ela não precisaria daquela cama!

"Casey", ordenou a si mesma, "não seja tão ferina, ou burra. Ou ciumenta. Você nunca foi ciumenta, tão ciumenta antes. Foi você que estabeleceu as regras. É, mas ainda bem que me mudei. Aquela noite foi dureza, dureza para Linc e para mim, pior para ele. Orlanda vai fazer bem a ele... ora, Orlanda que vá à merda!"

Sentiu a boca seca. Foi até a geladeira e pegou uma garrafa de Perrier gelada, e o gostinho picante fê-la sentir-se melhor. "Como será que a terra produz essas bolhas?", pensou preguiçosamente, deitando-se na cama. Um pouco antes, tentara dormir, mas sua cabeça estava confusa, não parava de funcionar, novidades demais... "Novas comidas, novos cheiros, ar, costumes, ameaças, gente, hábitos, culturas. Dunross. Gornt, Dunross e Gornt. Dunross, Gornt e Linc. Um novo Linc. Uma nova Casey, assustada por causa de uma piranhazinha bonita... é, se quer ser vulgar, e isso também é novidade em você. Antes de vir para cá você era confiante, dinâmica, dominava o seu mundo, e agora não é mais assim. Tudo por causa dela. Não apenas por causa dela. Por causa daquela vaca da Lady Joanna também, com o seu sotaque inglês tão 'classe alta': 'Não se lembra, querida? Hoje é o dia do nosso almoço do Clube das Mais de Trinta. Falei nele no jantar do tai-pan... '

"Maldita vaca velha! Mais de trinta! Nem tenho vinte e sete ainda...

"É isso aí, Casey. Mas você está toda eriçada, feito uma gata assustada, e não é só por causa dela, ou da Orlanda. É também por causa do Linc e das centenas de garotas disponíveis que você já viu, e ainda nem foi espiar nos cabarés, bares e casas onde elas se especializam. O Jannelli também não atiçou você?"

— Pombas, Casey — exclamara ele, com um amplo sorriso —, é como estar de licença na minha época da Guerra da Coréia. Ainda são só vinte mangos, e você é o maioral!

Naquela noite, por volta das dez, Jannelli ligara para perguntar se ela gostaria de se reunir a ele e ao resto da tripulação no Royal Netherlands, para fazer a última "boquinha" da noite. Seu coração dera uma reviravolta dentro do peito quando o telefone tocou, pensando que era Linc, e quando viu que não era, fingiu que ainda tinha um monte de coisas para fazer, mas deixou-se ser persuadida, agradecida. Quando chegou Iá, pediu uma porção dupla de ovos mexidos com bacon, torrada e café, embora estivesse sem apetite.

Como protesto. Protesto contra a Ásia, Hong Kong, Joanna e Orlanda. "Ah, meu Deus! Quem dera eu nunca me tivesse interessado pela Ásia, nunca tivesse sugerido ao Linc que nos tornássemos uma companhia internacional.

"Por que o fiz?

"Porque é o único meio para o progresso das empresas americanas — o único meio —, o único meio para a Par-Con. Exportar. Multinacional, mas exportando. E a Ásia é o maior, o mais fervilhante mercado inexplorado da terra, e este é o século da Ásia. É. E os Dunrosses e os Gornts estarão numa boa (se nos acompanharem), porque temos o maior mercado do mundo a nos dar apoio, todo o dinheiro, tecnologia, crescimento e especialistas para fazê-lo.

"Mas por que busquei Hong Kong com tanta fúria?

"Para arranjar o meu dinheiro do dane-se e encher o tempo até o meu aniversário... o fim do sétimo ano.

"Do jeito que as coisas vão", disse com seus botões, "logo não terá emprego, nem futuro, nem Linc para quem dizer sim ou não. " Soltou um grande suspiro. Um pouco antes, fora até a suíte principal e deixara uma pilha de cartas e telex para Bartlett assinar, acompanhados de um bilhete, que dizia: "Espero que tenha se divertido". Quando voltara do encontro com Jannelli, fora até o quarto e trouxera de volta tudo o que havia deixado Iá.

— É Orlanda que está ouriçando você. Não queira se enganar — disse em voz alta.

"Não faz mal, amanhã é outro dia. Você pode derrubar a Orlanda com facilidade", disse consigo mesma, sombriamente. E, tendo se concentrado em sua inimiga, sentiu-se melhor.

A brochura muito manuseada de Peter Marlowe chamou-lhe a atenção. Apanhou-a, afofou os travesseiros mais confortavelmente e começou a ler. Foi devorando as páginas. De repente, o telefone tocou. Estava tão entretida que deu um salto, sentindo-se inundada por uma felicidade vasta e repentina.

— Oi, Linc, divertiu-se?

— Casey, sou eu. Peter Marlowe. Mil desculpas por ligar tão tarde, mas pedi a seu camareiro que verificasse e ele me disse que a luz ainda estava acesa... Espero não a ter acordado.

— Ah, não, Peter. — Casey sentia-se doente de desapontamento. — O que houve?

— Desculpe ligar tão tarde, mas há uma ligeira emergência. Tenho que ir para o hospital e... você disse para chamá-la. Sim...

— O que foi? — perguntou Casey, agora completamente ligada.

— Não sei. Pediram que eu fosse imediatamente. Liguei para você por causa das meninas. Um camareiro vai dar uma espiada nelas de vez em quando, mas eu queria deixar um bilhete para elas com o seu telefone, para o caso de acordarem, só para o caso de acordarem, um rosto amigo a quem chamar, digamos assim. Quando nos encontramos no saguão, ontem, elas acharam você um estouro. Provavelmente não acordarão, mas por via das dúvidas... Podem ligar para você? Desculpe...

— Claro. Mas é melhor eu ir para aí.

— Ah, não, de modo algum. Basta...

— Não estou com sono, e você mora pertinho. Não é trabalho nenhum, Peter, já estou indo. Pode ir saindo para o hospital.

Levou apenas um minuto para vestir umas calças, uma blusa e um suéter de caxemira. Mesmo antes de apertar o botão do elevador, Song Noturno já aparecia, de olhos arregalados e indagadores. Ela ficou calada.

No andar térreo, cruzou o saguão, saiu para a Nathan Road, atravessou a rua lateral e entrou no saguão do Anexo. Peter Marlowe já estava à sua espera.

— Esta é a srta. Tcholok — disse apressadamente ao porteiro da noite. — Ficará com as meninas até eu voltar.

— Sim, senhor — replicou o eurasiano, também de olhos arregalados. — O garoto a levará até o quarto, senhorita.

— Espero que tudo esteja bem, Peter... — Interrompeu-se. Ele já ia porta afora, tentando chamar um táxi.

O apartamento era pequeno, no sexto andar. A porta da frente estava entreaberta. O encarregado do andar, Po Noturno, deu de ombros e foi embora resmungando, xingando os bárbaros... como se ele não fosse capaz de cuidar de duas crianças adormecidas que brincavam de esconder com ele todas as noites.

Casey fechou a porta e foi dar uma espiada no pequenino segundo dormitório. As duas crianças dormiam a sono solto no beliche; Jane, a pequenina, na cama de cima, e Alexandra, toda largada, na de baixo. Comoveu-se ao vê-las. Louras, despentea-das, angelicais, agarradas a ursinhos de pelúcia. "Ah, como adoraria ter filhos", pensou, "filhos de Linc.

"Adoraria mesmo? As fraldas, sempre presa em casa, as noites insones e nenhuma liberdade.

"Não sei. Acho que sim. Ah, sim, por duas coisinhas como estas, sim!"

Casey não sabia se devia cobri-las ou não. O ar estava quente, por isso resolveu não fazer nada, para evitar acordá-las. Na geladeira encontrou água engarrafada. Depois de bebê-la, sentiu-se mais refrescada e com o coração mais calmo. A seguir, sentou-se na poltrona. Dali a um momento tirou o livro de Peter da bolsa e, mais uma vez, começou a ler.

Duas horas depois, ele voltou. Ela nem sentira o tempo passar.

— Ah — exclamou, vendo o rosto dele. — Ela perdeu o bebê?

Ele fez que sim, entorpecido.

— Desculpe ter demorado tanto. Quer um pouco de chá?

— Claro, Peter, deixe que...

— Não. Não, obrigado, eu sei onde ficam as coisas. Desculpe ter-lhe dado tanto trabalho.

— Não é trabalho nenhum. Mas ela está passando bem? A Fleur?

— Eles, eles acham que sim. Foram as cólicas as responsáveis, e a disenteria. É cedo demais para saber, mas parece não haver perigo de verdade, é o que dizem. O... o aborto, disseram que é sempre um tanto difícil, física e emocional-mente.

— Sinto tanto!

Ele a olhou, e ela notou o rosto forte, castigado, vivido.

— Não se preocupe, Casey, Fleur está bem — disse ele, mantendo a voz firme. — Os japoneses acreditam que nada existe até o nascimento, até trinta dias depois do nascimento, trinta se for menino, trinta e um se for menina. Não existe nada resolvido, nem alma, nem personalidade, nem pessoa... até essa data não existe a pessoa. — Virou-se para a minúscula cozinha e pôs a chaleira para ferver, tentando ser convincente. — É melhor acreditar nisso, não acha? Como ele podia ser outra coisa senão... uma coisa? Não existe uma pessoa até então, até uns trinta dias depois do nascimento. Assim a coisa não fica tão ruim. Ainda é pavoroso para a mãe, mas não tão ruim. Desculpe, acho que o que estou dizendo não tem muito sentido.

— Ah, mas tem. Espero que ela agora fique boa — disse Casey, com vontade de tocá-lo, sem saber se devia fazê-lo ou não. Ele parecia tão digno no seu sofrimento, tentando parecer calmo, apesar disso apenas um garotinho para ela.

— Os chineses e os japoneses são pessoas muito sensatas, Casey. As... as suas superstições tornam a vida mais fácil. Suponho que a taxa de mortalidade infantil fosse tão alta no passado, que fez com que algum pai sábio tenha inventado essa história para aliviar o sofrimento de uma mãe. — Soltou um suspiro. — Ou, o que é mais provável, alguma mãe mais sábia ainda a tenha inventado para ajudar um pai desolado. Não é?

— Provavelmente — disse ela, deslocada, vendo as mãos dele prepararem o chá. Primeiro a água fervente na chaleira, o bule escaldado com cuidado, a água jogada fora. Três Colheres de chá e uma para o bule, a água fervente levada até o bule.

— Desculpe, não temos chá em saquinho. Não consigo me acostumar com isso, embora Fleur diga que é igualmente bom, e mais limpo. Desculpe, o chá é a única coisa que temos. — Trouxe a bandeja de chá para a sala e pousou-a na mesa de jantar. — Leite e açúcar? — perguntou.

— Está ótimo — replicou ela, que nunca o tomara daquele jeito.

Tinha um gosto estranho. Mas forte e revigorante. Beberam em silêncio. Ele deu um leve sorriso.

— Puxa, como é bom um chazinho, hem?

— É formidável.

Os olhos dele notaram o livro entreaberto.

— Ah! — exclamou.

— Gostei do que li até agora, Peter. O quanto há de verdade nele?

Distraidamente, ele se serviu de outra xícara.

— O quanto pode haver de verdade em qualquer coisa contada quinze anos depois de acontecida! Ao que me lembre, os incidentes são exatos. As pessoas no livro não viveram, embora pessoas iguais a elas tenham vivido, dito e feito aquele tipo de coisas.

— É inacreditável. Inacreditável que pessoas, jovens, pudessem sobreviver àquilo. Quantos anos você tinha, na época?

— Changi começou quando eu tinha dezoito anos, e acabou quando tinha vinte e um... pouco mais de vinte e um.

— Quem é você, no livro?

— Talvez eu nem esteja nele.

Casey resolveu abandonar a questão. Por enquanto. Até acabar o livro.

— É melhor eu ir andando. Você deve estar exausto.

— Não, não estou. Na verdade, não estou cansado. Tenho algumas anotações a fazer... dormirei quando as crianças estiverem na escola. Mas você, você deve estar. Nem sei como lhe agradecer, Casey. Fico lhe devendo um favor.

Ela sorriu e balançou a cabeça. Depois de uma pausa, disse:

— Peter, você, que conhece tanto sobre este lugar, a quem se ligaria, Dunross ou Gornt?

— Comercialmente, ao Gornt. Com vistas ao futuro, Dunross, se conseguir superar essa crise. Porém, pelo que tenho ouvido, isso não é provável.

— Por que Dunross para o futuro?

— Prestígio. Gornt não tem classe para ser o tai-pan... nem os antecedentes necessários.

— E isso é assim tão importante?

— Aqui, totalmente. Se a Par-Con quiser centenas de anos de crescimento, Dunross. Se estão aqui só para obter um lucro fácil, uma incursão sem maiores vistas ao futuro, liguem-se ao Gornt.

Ela acabou de tomar o seu chá, pensativa.

— O que sabe sobre Orlanda?

— Muita coisa — disse ele, prontamente. — Mas saber de escândalos ou fofocas sobre uma pessoa viva não é a mesma coisa que conhecer as lendas ou as fofocas referentes a épocas passadas. Não é?

Ela lhe devolveu o olhar.

— Nem mesmo como um favor?

— Isso é diferente. — Os olhos dele se estreitaram ligeiramente. — Está me pedindo um favor?

Ela largou a xícara de chá e sacudiu a cabeça.

— Não, Peter, agora não. Pode ser que mais tarde peça, mas agora não. — Notou que o cenho dele estava franzido. — O que foi? — perguntou.

— Estava me perguntando por que Orlanda representa uma ameaça para você. Por que esta noite? Obviamente, isso leva ao Linc, o que leva inevitavelmente à hipótese de que ela tenha saído com ele hoje, esteja com ele agora, o que explica por que sua voz estava horrível quando telefonei.

— Estava?

— Estava. Ora, naturalmente eu notei o Linc olhando para ela em Aberdeen, e você olhando para ele, e ela olhando para você. — Sorveu um pouco de chá, a fisionomia mais dura. — Uma festa e tanto, aquela! Muitos começos na festa, grandes tensões, muito drama. Fascinante, se você pode se dissociar da coisa. Mas você não pode, pode?

— Você sempre observa e escuta?

— Tento treinar-me para ser um observador. Tento usar ouvidos, olhos e outros sentidos, adequadamente, como devem ser usados. Você também. Não há muita coisa que lhe escape.

— Talvez sim, talvez não.

— Orlanda é treinada em Hong Kong, e treinada por Gornt. Se está planejando entrar em luta com ela por causa do Linc, pode ir se preparando para uma batalha e tanto... se é que ela está resolvida a agarrá-lo, o que ainda não sei.

— Gornt a estaria usando? Depois de uma pausa, ele disse:

— Imagino que Orlanda seja a dona de Orlanda. Não é assim com a maioria das damas?

— A maioria das damas atrela sua vida a um homem, quer queira, quer não.

— Pelo que sei a seu respeito, sabe cuidar da concorrência.

— E o que sabe a meu respeito?

— Muita coisa. — Novamente o sorriso leve, sereno, gentil. — Entre elas, que é inteligente, corajosa, tem muito prestígio e sabe manter a sua fachada.

— Estou tão cansada de fachada, Peter. No futuro... — O sorriso dela era igualmente carinhoso. — De agora em diante, para mim, as pessoas não vão ganhar prestígio, fachada... e sim "traseiro"... vão ganhar ou perder "traseiro".

Ele riu junto com ela.

— Do jeito que você fala parece mais refinado, mais próprio de uma dama.

— Não sou nenhuma dama.

— Ah, mas é, sim. — E acrescentou, mais suavemente: — Vi o jeito como o Linc olhava para você na festa de Dunross, também. Ele a ama. E seria um idiota de trocá-la por ela.

— Obrigada, Peter.

Levantou-se, beijou-o e saiu, em paz. Quando saltou do elevador no seu andar, Song Noturno estava Iá. Foi andando na frente dela, e abriu a porta do quarto com um floreio. Ele notou que os olhos dela se dirigiram para a porta no fim do corredor.

— Patrão não em casa — falou, por conta própria. — Não voltou ainda.

Casey soltou um suspiro.

— Você acaba de perder mais "traseiro", meu chapa.

— Hem?

Fechou a porta, sentindo-se satisfeita consigo mesma. Na cama, recomeçou a ler. Terminou o livro ao alvorecer. Depois, dormiu.


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