18

0h36m

— É claro que Dunross podia ter mexido nos meus freios, Jason! — disse Gornt.

— Ora, qual é, pelo amor de Deus! Meter-se debaixo do seu carro durante uma festa com duzentos convidados à solta? Ian não é assim tão burro.

Estavam na cobertura de Jason Plumm, acima de Happy Valley, o ar da meia-noite gostoso, embora a umidade houvesse aumentado de novo. Plumm levantou-se e jogou fora a guimba do charuto, pegou um novo e acendeu-o. O tai-pan das Propriedades Asiáticas, a terceira maior hong, era mais alto do que Gornt, estava com cinqüenta e muitos anos, tinha rosto magro e elegante e usava um paletó caseiro de veludo vermelho.

— Até mesmo o maldito Ian Dunross não é um idiota tão chapado — repetiu.

— Errado. Apesar de toda a sua astúcia de escocês, é um animal impulsivo, e esta é a sua falha. Acho que foi ele.

Plumm formou um triângulo com os dedos, pensativo.

— O que foi que a polícia disse?

— Tudo o que lhes disse foi que meus freios haviam pifado. Não havia necessidade de envolver esses sacanas abelhudos, pelo menos não por enquanto. Mas os freios de um Rolls não pifam assim sozinhos, sem mais nem menos, pelo amor de Deus. Bem, deixe para lá. Amanhã farei com que Tom Nikklin me dê uma resposta, uma resposta definitiva, se houver uma. Tempo bastante para se chamar a polícia, então.

— Concordo. — Plumm deu um sorriso seco. — Não precisamos da polícia para lavar a nossa roupa suja... não importa o quão estranha seja... não é?

— É.

Os dois homens riram.

— Você teve muita sorte. A Peak Road não é uma estrada boa para se descer sem freios. Deve ter sido muito desagradável.

— Foi, por um momento, Jason, mas depois não houve problema, após passado o choque inicial. — Gornt floreou a verdade e bebeu o seu uísque com soda. Haviam saboreado um elegante jantar no terraço que dava para o Happy Valley, a pista de corridas, a cidade e o mar logo além, os dois sozinhos — a mulher de Plumm estava de férias na Inglaterra, e seus filhos já estavam crescidos e não moravam mais em Hong Kong. Agora, fumavam charutos sentados em amplas poltronas no escritório cheio de livros de Plumm, a sala luxuosa mas discreta, de muito bom gosto, como o resto da cobertura de dez cômodos. — Se há alguém que poderá descobrir se mexeram no meu carro, é Tom Nikklin — disse, resolutamente.

— É. — Plumm bebia um copo de Perrier gelada. — Vai dar corda de novo no jovem Nikklin sobre Macau?

— Eu? Deve estar brincando!

— Não. Para falar a verdade, não estou — replicou Plumm, com sua risadinha zombeteira e bem-educada. — O motor de Dunross não explodiu durante a corrida, faz três anos, e ele quase bateu as botas?

— Sempre acontecem coisas com os carros de corrida.

— É, é verdade, embora nem sempre a oposição dê uma mãozinha.

Plumm sorriu.

Gornt conservou o seu sorriso, mas intimamente não sorria.

— O que isso significa?

— Nada, meu rapaz. Só boatos. — O homem mais velho se inclinou e serviu mais uísque para Gornt, depois usou o sifão de soda. — O boato é que um certo mecânico chinês, por uma pequena quantia, usou... digamos, usou uma chave de parafuso onde não devia.

— Duvido que seja verdade.

— Duvido que possa ser provado. De uma maneira ou de outra. É revoltante, mas certas pessoas fazem qualquer coisa por uma quantia bem pequena.

— É. Felizmente estamos no mercado das quantias grandes.

— Exatamente o que eu queria dizer, meu rapaz. Bem.

— Plumm deu uma batidinha e soltou a cinza do charuto. — Qual é o plano?

— E muito simples: desde que Bartlett não assine contrato com a Struan nos próximos dez dias, poderemos depenar a Casa Nobre como um pato morto.

— Muita gente já pensou assim antes, e a Struan ainda é a Casa Nobre.

— É. Mas, no momento, estão vulneráveis.

— Como?

— As promissórias das Indústrias de Navegação Toda, e a prestação do Orlin.

— Não é verdade. O crédito da Struan é excelente... claro, eles ultrapassaram o limite, mas não mais que outro qualquer. Apenas aumentarão a sua linha de crédito... Ian se dirigirá a Richard Kwang, ou ao Blacs.

— Digamos que o Blacs não ajude, e não ajudará, e digamos que Richard Kwang esteja neutralizado. Isso lhe deixa apenas o Victoria.

— Então Dunross pedirá mais crédito ao banco, e teremos que dá-lo. Paul Havergill levará o pedido à votação da diretoria. Todos sabemos que não podemos derrotar o bloco da Struan, portanto concordaremos, para não perder prestígio, fingindo que estamos muito contentes em conceder o crédito, como sempre.

— É. Mas, desta feita, folgo em dizer que Richard Kwang votará contra a Struan. Haverá empate, o pedido de crédito será adiado... ele não conseguirá fazer seus pagamentos, e Dunross afundará.

— Pelo amor de Deus, Richard Kwang nem faz parte da diretoria! Você ficou maluco?

Gornt fumava o seu charuto.

— Não. Você esqueceu o meu plano de jogo. Aquele chamado Competição. Começou faz dois dias.

— Contra Richard?

— É.

— Pobre do velho Richard!

— É. Ele será o nosso voto decisivo. E Dunross jamais esperará um ataque vindo desse lado.

Plumm fitou-o.

— Richard e Dunross são grandes amigos.

— Mas Richard está encrencado. A derrocada do Ho-Pak já começou. Ele fará qualquer coisa para se salvar.

— Entendo. Quantas ações do Ho-Pak você vendeu a descoberto?

— Muitas.

— Tem certeza de que Richard não tem recursos para deter a corrida... que não pode arranjar fundos extras?

— Se conseguir, sempre podemos fazer abortar, você e eu.

— É, podemos, sim. — Jason Plumm ficou olhando a fumaça em espiral do seu charuto. — Mas mesmo que Dunross não consiga fazer os pagamentos dentro do prazo, isso não quer dizer que estará acabado.

— Concordo. Mas depois do "desastre" do Ho-Pak, a notícia de que a Struan não cumpriu seus compromissos fará suas ações caírem verticalmente. O mercado estará muito nervoso, haverá todos os sinais de uma queda da Bolsa no horizonte, e nós atiçaremos o fogo vendendo a descoberto. Não há nenhuma reunião de diretoria marcada para dentro de duas semanas, a não ser que Paul Havergill convoque uma reunião especial. E não o fará. Por que o faria? Quer sua fatia de ações de volta, mais do que qualquer outra coisa no mundo. Portanto, tudo será combinado com antecedência. Ele estabelecerá as regras para salvar Richard Kwang, e votar conforme os desejos de Paul será uma delas. Portanto, a diretoria deixa Ian em banho-maria por alguns dias, depois se oferece para aumentar o crédito e restaurar a confiança... em troca das ações do banco que a Struan possui... que já estão empenhadas como garantia do crédito, de qualquer forma.

— Dunross jamais concordará... nem ele, nem Phillip Chen, nem Tsu-yan.

— Ou isso, ou a Struan soçobra... desde que você fique firme e tenha o controle da votação. Uma vez que o banco retire dele o seu bloco de ações... se você controla a junta diretora, e portanto o Victoria Bank, então ele está acabado.

— É. Mas digamos que ele consiga uma nova linha de crédito.

— Então ficará apenas muito machucado, quem sabe permanentemente enfraquecido, Jason, mas nós teremos um lucro, de uma forma ou de outra. É tudo uma questão de agir na hora certa, sabe disso.

— E Bartlett?

— Bartlett e a Par-Con são meus. Ele jamais entrará no navio da Struan, que está indo a pique. Eu me encarrego disso.

Depois de uma pausa, Plumm disse:

— É possível, sim, é possível.

— Você topa, então?

— Depois de Struan, como vai engolir a Par-Con?

— Eu não vou. Mas nós talvez pudéssemos. — Gornt apagou o charuto. — A Par-Con é um trabalho a longo prazo, e um grupo de problemas totalmente diferentes. Primeiro a Struan. E então?

— Se eu ficar com a divisão de propriedades de Hong Kong da Struan... trinta e cinco por cento de suas terras na Tailândia e em Cingapura, e mais meio a meio da operação deles de Kai Tak?

— Sim, tudo exceto Kai Tak... preciso dela para rematar a Ail Ásia Airways. Estou certo de que compreende, meu velho. Mas você tem lugar garantido na nova diretoria, dez por cento das ações ao valor nominal, lugares na junta diretora da Struan, é claro, e de todas as suas subsidiárias.

— Quinze por cento. E a presidência da junta da Struan, em anos alternados. Um ano eu, outro você.

— De acordo, mas eu serei o primeiro. — Gornt acendeu um cigarro. "Por que não?", pensou, expansivamente. "A essa altura, no ano que vem, a Struan já estará desmembrada, portanto sua posição de presidência é uma mera questão acadêmica, Jason, meu velho." — Então, tudo acertado? Podemos fazer um memorando conjunto, se você quiser, uma cópia para cada um.

Plumm sacudiu a cabeça, e sorriu.

— Nada por escrito, Deus nos livre! Tome. — Estendeu a mão. — De acordo.

Os dois homens trocaram um firme aperto de mão.

— Abaixo a Casa Nobre!

Os dois riram, muito satisfeitos com a transação combinada. A aquisição das terras que a Struan possuía faria das Propriedades Asiáticas a maior companhia imobiliária de Hong Kong. Gornt adquiriria o monopólio quase total de todo o transporte de carga aérea, marítima e das fábricas de Hong Kong... e a primazia na Ásia.

"Ótimo", pensou Gornt. "Agora, vou tratar de Wu Quatro Dedos."

— Se puder me chamar um táxi, já vou indo.

— Leve meu carro, meu chofer o...

— Não, obrigado, prefiro ir de táxi. Mas, de qualquer modo, obrigado, Jason.

Então Plumm telefonou para a zeladora do prédio de vinte andares que as Propriedades Asiáticas possuíam e administravam. Enquanto esperavam, brindaram um ao outro, à destruição da Struan e aos lucros que iam obter. Um telefone tocou no quarto ao lado.

— Dê-me licença um momentinho, meu velho.

Plumm cruzou a porta e deixou-a meio aberta às suas costas. Aquele era seu dormitório particular, que às vezes usava quando trabalhava até tarde. Era um quarto pequeno e impecável, à prova de som, decorado como se fosse uma cabine de navio, com um beliche embutido, alto-falantes que transmitiam música, um pequeno fogareiro e geladeira. E, num dos lados, um imenso e complicado equipamento de ondas curtas de radioamador, que fora o hobby permanente de Jason desde criança.

Ele atendeu ao telefone.

— Sim?

— O Sr. Lop-sing, por favor — disse uma voz feminina.

— Aqui não há nenhum Sr. Lop-ting — retrucou, com naturalidade___Lamento, é engano.

— Quero deixar um recado.

— Discou o número errado. Olhe no catálogo.

— Um recado urgente para Arthur: o Centro avisou por rádio que a reunião foi adiada até depois de amanhã. Fique a postos para instruções urgentes às seis horas.

Desligaram. Ouviu-se de novo o ruído de discar. Plumm franziu o cenho ao recolocar o aparelho no gancho.

Wu Quatro Dedos estava à amurada do seu junco com Poon Bom Tempo, vendo Gornt entrar na sampana que havia enviado para apanhá-lo.

— Não mudou muito nesse tempo todo, não é? — falou Wu, descuidadamente, os olhos apertados brilhando.

— Os demônios estrangeiros me parecem todos iguais, de qualquer modo. Quantos anos faz? Dez? — perguntou Poon, coçando as hemorróidas.

— Não, faz quase doze. Bons tempos aqueles, heya — disse Wu. — Grandes lucros. Muito bom subir rio acima na direção de Cantão, driblando os demônios estrangeiros e seus lacaios, o povo do presidente Mao nos dando as boas-vindas. É. O nosso povo no comando, e nem um só demônio estrangeiro à vista... tampouco algum funcionário gordo estendendo a mão para a graxa fragrante. A gente podia visitar toda a família e os amigos, então, sem problemas, heya? Não como agora, heya?

— Os vermelhos estão ficando durões, muito espertos e muito durões... piores do que os mandarins.

Wu voltou-se quando seu sétimo filho apareceu no convés. Agora, o rapaz usava uma camisa branca limpa, calças cinzentas e bons sapatos.

— Tenha cuidado — falou, com brusquidão. — Está certo de que sabe o que tem que fazer?

— Sim, Pai.

— Ótimo — disse Quatro Dedos, disfarçando o orgulho. — Não quero nenhum erro.

Ficou olhando enquanto ele se dirigia, desajeitadamente, para a prancha desconjuntada de tábuas que unia o seu junco ao seguinte, e daí para outros juncos, até chegar a um cais improvisado a oito barcos de distância.

— O Sétimo Filho já está sabendo de alguma coisa? — perguntou Poon, suavemente.

— Não, não, ainda não — falou Wu, com azedume. — Aqueles idiotas de merda, serem apanhados com as minhas armas! Sem as armas, todo o nosso trabalho será em vão.

— Boa noite, Sr. Gornt. Sou Paul Choy... meu tio Wu mandou-me vir lhe mostrar o caminho — disse o jovem, num inglês perfeito, repetindo a mentira que agora era quase verdade para ele.

Gornt parou, espantado. Depois continuou a subir as escadas desconjuntadas, com mais equilíbrio do que o rapaz.

— Boa noite — respondeu. — É americano? Ou apenas estudou lá, Sr. Choy?

— As duas coisas. — Paul Choy sorriu. — Sabe como é. Cuidado com a cabeça nas cordas... e está escorregadio como o diabo.

Virou-se e começou a mostrar o caminho de volta. Seu nome verdadeiro era Wu Fang Choi, e era o sétimo filho de seu pai com a terceira mulher, mas, quando nasceu, seu pai, Wu Quatro Dedos, lhe arranjara uma certidão de nascimento de Hong Kong, um gesto incomum para os moradores dos barcos, pusera o nome de solteira da mãe na certidão, acrescentara "Paul" e arrumara um dos seus primos para fazer o papel do pai de verdade.

— Ouça, meu filho — dissera Wu Quatro Dedos, tão logo Paul pôde compreendê-lo —, quando estiver falando em haklo no meu navio, pode me chamar de pai... mas jamais na frente de um demônio estrangeiro, mesmo em haklo. Todas as outras vezes, sou seu tio, somente um dos muitos tios. Compreendeu?

— Compreendi. Mas por quê, Pai? Fiz alguma coisa errada? Desculpe se o ofendi.

— Não ofendeu. É um bom menino, e dá duro no trabalho. Só que é melhor para a família que tenha outro nome.

— Mas por quê, Pai?

— Quando chegar a hora, saberá. — Então, quando estava com doze anos, e treinado, e provara o seu valor, o pai o mandara para os Estados Unidos. — Agora vai aprender os costumes dos demônios estrangeiros. Deve começar a falar como se fosse um deles, dormir como se fosse um deles, tornar-se externamente um deles, mas nunca se esquecer de quem é, de quem é o seu povo, ou de que todos os demônios estrangeiros são inferiores, mal são seres humanos e não são civilizados porra nenhuma.

Paul Choy riu consigo mesmo. "Se os americanos soubessem — desde os tai-pans até a escória —, se os britânicos, iranianos, alemães, russos, gente de todas as raças e cores, se todos eles soubessem realmente o que até o mais ínfimo cule pensa deles, teriam um derrame", disse para si mesmo pela milionésima vez. "Não é que todos os povos da China desprezem os estrangeiros. É só que os estrangeiros estão abaixo de qualquer consideração. Claro que estamos errados", disse consigo mesmo. "Os estrangeiros são humanos, e alguns são civilizados (à moda deles), e muito à nossa frente, tecnicamente. Mas nós somos melhores..."

— Do que está sorrindo? — perguntou Gornt, abaixando a cabeça para não tocar nas cordas, desviando-se do lixo espalhado por todos os tombadilhos.

— Ah, estava só pensando como esta vida é maluca. No mês passado, nesta época, eu estava fazendo surfe em Malibu Colony, Califórnia. Pombas, Aberdeen é bem diferente, não é?

— Está se referindo ao cheiro?

— Claro.

— É mesmo.

— Não é muito melhor na maré alta. Parece que só eu sinto o fedor!

— Quando esteve aqui pela última vez?

— Faz uns dois anos... durante dez dias... depois que me formei em administração de empresas, mas não me acostumo com ele. — Choy riu. — Não tem nada a ver com a Nova Inglaterra!

— Onde estudou?

— Primeiro em Seattle. Depois, cursei a Universidade de Washington em Seattle. Depois, fiz mestrado em Harvard, na Escola de Administração de Harvard.

Gornt parou.

— Harvard?

— É isso aí, consegui uma bolsa, como assistente.

— Que beleza! Quando se formou?

— Em junho do ano passado. Foi como sair da prisão! Puxa, eles realmente fazem você cortar um dobrado, se não tira notas altas. Dois anos de inferno! Quando saí de lá, me mandei para a Califórnia com um amigo, fazendo biscates aqui e ali, ganhando o bastante para sustentar o nosso surfe, divertindo-nos um bocado para compensar o sufoco da escola. Então... — Choy abriu um sorriso — então há dois meses o Tio Wu me procurou e disse: "Chegou a hora de trabalhar", e cá estou eu! Afinal, foi ele quem pagou os meus estudos. Meus pais morreram há anos.

— Você foi o primeiro da turma em Harvard?

— Fui o terceiro.

— Que beleza!

— Obrigado. Não falta muito, agora. O nosso é o último junco.

Conseguiram atravessar uma prancha precária, enquanto Gornt era observado com desconfiança pelos habitantes dos barcos, em silêncio, quando passavam de casa flutuante para casa flutuante, as famílias cochilando, cozinhando, comendo, ou jogando mah-jong, alguns ainda consertando redes de pescar, algumas crianças fazendo pescaria noturna.

— Este pedaço é escorregadio, Sr. Gornt. — Saltou para o convés pegajoso. — Chegamos! Lar, doce lar! — Despenteou o cabelo do garotinho sonolento que fazia as vezes de vigia, e disse em haklo, que sabia que Gornt não compreendia: — Fique acordado, Irmãozinho, senão os demônios vêm nos pegar.

— Fico, sim — disse logo o menino, os olhos desconfiados fitos em Gornt.

Paul Choy desceu na frente. O velho junco cheirava a piche e teca, peixe podre, maresia e mil tormentas. Sob o convés, a prancha da meia-nau dava para a única grande cabine normal, para vante, que ocupava toda a extensão e a largura do navio, até a proa. Um fogo de carvão aberto queimava numa lareira de tijolos malcuidada, com uma chaleira suja de fuligem fervendo sobre ele. A fumaça se enroscava para o alto, e chegava ao exterior através de um conduto tosco aberto no convés. Umas velhas cadeiras de palhinha, mesas e camadas de beliches toscos ocupavam um dos lados da cabine.

Wu Quatro Dedos estava sozinho; indicou uma das cadeiras e abriu um amplo sorriso.

— Heya, prazer em ver — falou, num inglês incerto, quase incompreensível. — Uísque?

— Obrigado — replicou Gornt. — Prazer em vê-lo, também.

Paul Choy serviu o bom uísque em dois copos semilimpos.

— Quer água, Sr. Gornt? — perguntou.

— Não, puro está ótimo. Apenas um pouco, por favor.

— Certo.

Wu aceitou o copo e brindou a Gornt.

— Prazer ver você, heya?

— É. Saúde!

Observaram-no enquanto Gornt bebia o seu uísque.

— Bom — aprovou Gornt. — Muito bom uísque.

Wu sorriu amplamente de novo, e indicou Paul.

— Ele filho irmã.

— Sei.

— Boa escola... País Dourado.

— É. É, ele me contou. Você deve estar muito orgulhoso.

— Como?

Paul Choy traduziu para o velho.

— Ah, obrigado, obrigado. Ele fala bom, heya?

— É. — Gornt sorriu. — Muito bom.

— Ah, bom, tudo bem. Fuma?

— Obrigado. — Ficaram olhando-o enquanto Gornt aceitava um cigarro. Depois Wu apanhou um, e Paul Choy acendeu ambos. Novo silêncio.

— Tudo bom com velho amigo?

— Tudo. E com você?

— Bom. — Novo silêncio. — Ele filho irmã — falou o velho marujo outra vez, e viu Gornt sacudir a cabeça e ficar calado, esperando. Ficou contente ao ver que Gornt permanecia sentado, esperando pacientemente que ele fosse ao assunto que interessava, como convém a uma pessoa civilizada.

"Alguns desses diabos rosados estão aprendendo, finalmente. É, mas alguns aprenderam bem demais, porra, como o tai-pan, por exemplo, aquele com os olhos azuis de peixe, feios e frios, que a maioria dos demônios estrangeiros tem, e que fitam a gente como um tubarão morto, o tal que até sabe falar um pouquinho do dialeto haklo. É, o tai-pan é astuto e civilizado demais, mas, enfim, teve gerações antes dele, e todos os seus ancestrais tiveram o Mau-Olhado, antes dele. É, mas o velho Demônio de Olhos Verdes, o primeiro da família, que fez um pacto com o meu ancestral, o grande senhor da guerra do mar, Wu Fang Choi, e seu filho, Wu Kwok, o cumpriu e fez com que seus filhos o cumprissem... e os filhos deles. Portanto, este tai-pan atual deve ser considerado um velho amigo, embora seja o mais mortífero de toda a descendência."

O velho conteve um estremecimento, escarrou e cuspiu para afastar o deus mau da saliva que espreitava na garganta de todos os homens. Examinou Gornt. "Eeee", falou consigo, "deve ser terrível ter que olhar para aquele rosto rosado em cada espelho... todo aquele pêlo facial, feito um macaco, e uma pele pálida de barriga de sapo branco no resto do corpo. Arre!”.

Forçou um sorriso para disfarçar o seu embaraço e tentou ler o rosto de Gornt, o que havia por detrás dele, mas não conseguiu. "Não faz mal", disse para si mesmo, alegremente, "foi para isso que se gastou tanto tempo e dinheiro a fim de preparar o Filho Número Sete... ele conseguirá”.

— Poderia pedir favor? — perguntou, testando.

As vigas do navio rangiam agradavelmente, enquanto ele forçava as suas amarras.

— Sim. Que favor, velho amigo?

— Filho irmã... hora trabalhar... dá emprego? — Notou o espanto evidente no rosto de Gornt, e isso o irritou, mas soube disfarçar. — Explique — falou, em inglês. Depois acrescentou para Paul Choy, num haklo gutural: — Explique para esse Comedor de Bosta de Tartaruga o que eu quero. Como lhe ensinei.

— Meu tio pede desculpas por não poder falar-lhe diretamente, por isso pediu-me para explicar, Sr. Gornt — falou Paul Choy, educadamente. — Quer pedir-lhe que me dê um emprego... como uma espécie de estagiário... na sua divisão de aviões e navegação.

Gornt bebericava o seu uísque.

— Por que nessa divisão, Sr. Choy?

— Meu tio possui substanciais interesses em navegação, como o senhor sabe, e deseja que eu modernize a sua operação. Posso dar-lhe todas as informações sobre os meus antecedentes, se resolver me aceitar, senhor... meu segundo ano em Harvard foi dirigido para essas áreas... meu principal interesse era todo tipo de transportes. Já tinha sido aceito na Divisão Internacional do Ohio Bank quando meu tio me arran... mandou me chamar. — Paul Choy hesitou. — Bem, é isso o que ele está pedindo.

— Que dialetos fala, além do haklo?

— Mandarim.

— Quantos caracteres sabe escrever?

— Cerca de quatro mil.

— Sabe taquigrafia?

— Apenas datilografia rápida, senhor. Posso bater oitenta palavras por minuto, mas não perfeitas.

— O quê? — perguntou Wu.

Gornt esperou que Paul Choy traduzisse o que fora dito para o tio, observando-o... e a Wu Quatro Dedos. Finalmente, perguntou:

— Que espécie de estagiário quer ser?

— Ele quer que eu aprenda tudo o que for possível sobre a administração de navios e aviões. Também o negócio de corretagem e fretagem, o funcionamento prático e, é claro, quer que eu seja uma engrenagem lucrativa para o senhor, na sua máquina. Talvez a minha perícia técnica ianque, ao menos teórica, possa lhe ser de alguma ajuda. Estou com vinte e seis anos. Tenho o meu mestrado. Estou por dentro de todas as novas teorias de computadores. Claro que sei programar um. Em Harvard, especializei-me em conglomerados, fluxos de caixa.

— E se não se sair bem, ou se houver, digamos, um conflito de personalidades?

O rapaz disse com firmeza:

— Não haverá, Sr. Gornt. Pelo menos, trabalharei feito um burro de carga para evitar isso.

— O que foi que ele disse exatamente? — Quatro Dedos perguntou vivamente em haklo, notando uma mudança de inflexão, os olhos e os ouvidos ultra-atentos.

O filho explicou, exatamente.

— Ótimo — falou Wu, a voz roufenha. — Diga-lhe, exatamente, que se você não cumprir suas tarefas como for do agrado dele, será escorraçado da família, e a minha ira destruirá os seus dias.

Paul Choy hesitou, ocultando o seu choque, todo o seu treinamento americano gritando que mandasse o pai ir se foder, que era formado por Harvard, que era americano, e tinha um passaporte americano que ele próprio ganhara, não importa de que maldita sampana ou maldita família tivesse vindo. Mas manteve os olhos baixos e não deixou transparecer no rosto a raiva que sentia.

"Não seja ingrato", ordenou a si mesmo. "Você não é americano, americano de verdade. É chinês, e o chefe de sua família tem o direito de mandar. Se não fosse por ele, você provavelmente estaria dirigindo um bordel flutuante, aqui em Aberdeen."

Paul Choy soltou um suspiro. Sabia que era mais afortunado do que os seus onze irmãos. Quatro eram comandantes de juncos em Aberdeen, um morava em Bangkok e navegava no rio Mekong, um tinha uma balsa em Cingapura, outro tinha um negócio de importação e exportação de material de construção naval na Indonésia, dois haviam morrido no mar, um estava na Inglaterra (fazendo o quê, não sabia) e o último, o mais velho, chefiava, no porto de Aberdeen, a dúzia de sampanas auxiliares que eram cozinhas flutuantes... e também três barcos-bordel e oito damas da noite.

Depois de uma pausa, Gornt perguntou:

— O que foi que ele disse? Exatamente?

Paul Choy hesitou, depois resolveu dizer-lhe, exatamente.

— Obrigado por ter sido franco comigo, Sr. Choy. Foi muito sensato da sua parte. É um rapaz realmente notável. — falou Gornt. — Compreendo perfeitamente. — Agora, pela primeira vez desde que Wu fizera a pergunta original, voltou o olhar para o velho marujo e sorriu. — Mas, claro. Prazer em dar emprego sobrinho.

Wu sorriu de orelha a orelha, e Paul Choy tentou não demonstrar na fisionomia o seu alívio.

— Não o desapontarei, Sr. Gornt.

— É, sei que não. Wu indicou a garrafa.

— Uísque?

— Não, obrigado. Já chega — disse Gornt.

— Quando começa emprego? Gornt olhou para Paul Choy.

— Quando gostaria de começar?

— Amanhã? Quando for conveniente para o senhor.

— Amanhã. Quarta-feira.

— Puxa, obrigado. Oito horas?

— Nove; do dia seguinte em diante, às oito. Semana de seis dias. Trabalhará muitas horas, e eu ficarei em cima de você. Dependerá de você o quanto poderá aprender, e a presteza com que poderei aumentar suas responsabilidades.

— Obrigado, Sr. Gornt.

Muito contente, Paul Choy traduziu para o pai. Wu tomou goles do seu uísque, sem se apressar.

— Qual dinheiro? — perguntou.

Gornt hesitou. Sabia que tinha que ser a quantia certa, nem de mais nem de menos, para não desprestigiar nem Paul Choy nem o tio.

— Mil HK por mês, nos três primeiros meses, depois revejo a quantia.

O rapaz não demonstrou na fisionomia o seu aborrecimento. Mal chegava a duzentos dólares americanos, mas traduziu para o haklo.

— Quem sabe dois mil? — falou Wu, disfarçando o seu prazer. Mil era a quantia perfeita, mas estava barganhando meramente para não desprestigiar o demônio estrangeiro, nem o filho.

— Se vai ser treinado, muitos gerentes valiosos terão que perder tempo, afastando-se de suas outras obrigações — Gornt disse, cortesmente. — Sai caro treinar uma pessoa.

— Muito dinheiro Montanha Dourada — Wu falou, com firmeza. — Dois?

— Mil no primeiro mês, mil duzentos e cinqüenta nos dois meses seguintes?

Wu franziu o cenho, e acrescentou:

— Mês três, mil e quinhentos?

— Pois bem, mil e quinhentos no terceiro e quarto meses. E reexaminarei o salário dele depois de quatro meses. E Paul Choy se compromete a trabalhar para a Rothwell-Gornt durante pelo menos dois anos.

— Hem?

Paul Choy traduziu de novo. "Merda", pensava, "como vou poder tirar férias nos Estados Unidos com cinqüenta mangos por mês, ou mesmo sessenta? Merda! E onde vou morar, porra? Numa bosta duma sampana?" Então ouviu Gornt dizer algo que o desnorteou inteiramente.

— Senhor?

— Falei que, como você foi muito honesto comigo, dar-lhe-emos acomodações grátis numa das casas da nossa companhia: The Gables. É onde colocamos todos os nossos gerentes estagiários que vêm da Inglaterra. Se vai fazer parte de uma hong de demônios estrangeiros, então é melhor se misturar aos seus futuros líderes.

— Sim, senhor! — Paul Choy não conseguiu conter o amplo sorriso. — Sim, senhor, obrigado, senhor.

Wu Quatro Dedos perguntou alguma coisa em haklo.

— Ele está perguntando onde fica a casa, senhor.

— Fica no Pico. É realmente muito simpática, Sr. Choy. Estou certo de que ficará mais do que satisfeito.

— Pode apostar que... sim, senhor.

— Esteja preparado para mudar-se amanhã à noite.

— Sim, senhor.

Depois que Wu compreendeu o que Gornt dissera, concordou com um aceno de cabeça.

— Tudo concordado. Dois anos, depois ver. Quem sabe mais, heya?

— É.

— Bom. Obrigado, velho amigo. — Depois, em haklo: — Agora pergunte a ele o que queria saber... sobre o banco.

Gornt preparava-se para se levantar quando Paul Choy disse:

— Há mais uma coisinha que meu tio queria perguntar-lhe, senhor, se dispuser de tempo.

— Claro.

Gornt acomodou-se na cadeira, e Paul Choy notou que o homem parecia mais atento agora, mais cauteloso.

— Meu tio gostaria de saber sua opinião sobre a corrida à agência do Ho-Pak Bank de Aberdeen, hoje.

Gornt fitou-o, olhar firme.

— O que é que tem?

— Corre todo tipo de boatos — dizia Paul Choy. — Meu tio tem muito dinheiro lá, a maioria dos amigos dele também. Uma corrida àquele banco seria uma péssima notícia.

— Acho que seria uma boa idéia sacar o dinheiro dele — disse Gornt, radiante com a oportunidade inesperada de alimentar o fogo.

— Deus — murmurou Paul Choy, estupefato. Estivera sondando Gornt com muito cuidado, e percebera a súbita tensão, e agora um prazer igualmente súbito o surpreendera. Pensou por um momento, depois decidiu mudar de tática e mostrar as cartas. — Ele queria saber se o senhor estava vendendo a descoberto.

Gornt falou, ironicamente:

— Ele ou o senhor, Sr. Choy?

— Nós dois, senhor. Ele tem uma grande carteira de ações que quer que eu administre, no futuro — falou o jovem, o que era um exagero completo. — Estive lhe explicando a mecânica da operação moderna dos bancos e da Bolsa de Valores... como funcionam, e como Hong Kong é diferente dos Estados Unidos. Ele entendeu facilmente, senhor. — Novo exagero. Paul Choy descobrira ser impossível derrubar os preconceitos do pai. — Pergunta se deve vender a descoberto.

— Sim, acho que deve. Tem havido muitos boatos de que o Ho-Pak ultrapassou seus limites... pedindo emprestado a curto prazo e juros baixos, emprestando a longo prazo e juros altos, especialmente com propriedades, o meio clássico de qualquer banco se meter em sérias dificuldades. Por medida de segurança, ele devia retirar todo o seu dinheiro e vender a descoberto.

— Próxima pergunta, senhor: o Blacs ou o Victoria Bank salvarão o Ho-Pak?

Foi com esforço que Gornt manteve a fisionomia impassível. O velho junco inclinou-se de leve quando as ondas formadas por outro junco que passava lamberam seus flancos.

— Por que outros bancos fariam tal coisa?

"Estou encurralado", pensava Gornt, estupefato. "Não posso contar-lhes a verdade... é impossível saber quem mais obterá a informação. Ao mesmo tempo, não ouso não contar ao velho sacana e ao seu maldito pirralho. Ele está pedindo a retribuição do favor, e eu tenho que pagar, é uma questão de prestígio."

Paul Choy inclinou-se para a frente, na cadeira, com excitação evidente:

— A minha teoria é que, se houver mesmo uma corrida de verdade ao Ho-Pak, os outros não deixarão que entre em colapso... não como o desastre do East índia and Canton Bank no ano passado, porque isso criaria ondas de choque que o mercado, os grandes operadores do mercado, não apreciariam. Todo mundo aqui está à espera de uma alta repentina, e aposto que os figurões não vão deixar que uma catástrofe destrua esta chance. Como o Blacs e o Victoria são os bancos da pesada, é lógico imaginar que eles salvarão o outro.

— Aonde quer chegar, Sr. Choy?

— Se alguém soubesse antecipadamente quando as ações do Ho-Pak chegariam ao fundo do poço, e quando um dos bancos, ou os dois, começariam a operação para tirá-lo do buraco, essa pessoa poderia ganhar uma fortuna.

Gornt estava tentando decidir o que fazer, mas agora estava cansado, sua mente não estava tão aguçada quanto deveria. "O acidente deve ter me esgotado mais do que imaginei", disse consigo mesmo. "Será que foi Dunross? O filho da mãe estaria tentando acertar as contas, me fazer pagar por aquela noite de Natal, ou pela vitória do Pacific Orient, ou cinqüenta outras vitórias... talvez até mesmo a velha ferida de Macau."

Gornt sentiu uma súbita animação ao recordar-se da excitação febril que sentira ao assistir à corrida, sabendo que a qualquer momento o motor do tai-pan pifaria... vendo os carros passarem roncando, volta após volta, e então, Dunross, o líder, não mais apareceria... depois a espera da torcida, e depois a notícia de que ele saíra fora da pista na curva Melco, superfechada, numa batida ruidosíssima, quando seu motor pifara. Nova espera, o estômago dando voltas. Depois, a notícia de que o carro de corrida explodira numa bola de fogo, mas que Dunross tivera tempo de pular fora, incólume. Ficara a um só tempo muito triste e muito feliz.

Não queria que Dunross morresse. Queria-o vivo e destruído; queria-o vivo para dar-se conta da sua destruição.

Riu baixinho, consigo mesmo. "Ora, não fui eu que apertei o botão que deu início à operação. Claro que dei um empurrãozinho no jovem Donald Nikklin, sugerindo-lhe todos os meios e modos pelos quais um pouquinho de h'eung yau nas mãos apropriadas..."

Percebeu que Paul Choy e o velho marujo esperavam, fitando-o, e todo o seu bom humor desapareceu. Afastou os pensamentos errantes e concentrou-se.

— É, claro que tem razão, Sr. Choy. Mas está partindo da premissa errada. Claro que isso tudo não passa de teoria, o Ho-Pak ainda não entrou em colapso. Talvez nem entre. Mas não há motivo para que qualquer banco fizesse o que sugeriu, nenhum o fez no passado. Cada banco fica de pé ou cai graças aos seus próprios méritos. Essa é a glória do nosso sistema de livre empresa. Um plano como o que o senhor propõe abriria um precedente perigoso. Seria certamente impossível sustentar cada banco que fosse mal administrado. Nenhum desses bancos precisa do Ho-Pak, Sr. Choy. Ambos têm um número mais do que suficiente de clientes próprios. Nenhum deles jamais adquiriu outros interesses bancários aqui, e duvido que algum deles jamais precise fazê-lo.

"Papo furado", pensava Paul Choy. "Um banco tem o compromisso de crescer, como qualquer outro negócio, e o Blacs e o Victoria são os mais rapaces de todos... exceto a Struan e a Rothwell-Gornt. Merda, e as Propriedades Asiáticas, e todas as outras hongs."

— Estou certo de que tem razão, senhor. Mas meu tio Wu agradeceria se o senhor soubesse algo, fosse o que fosse.

Virou-se para o pai e disse em haklo:

— Terminei agora, Honrado Tio. Este bárbaro concorda que o banco possa estar em dificuldades.

O rosto de Wu ficou sem cor.

— Hem? A coisa é ruim?

— Serei o primeiro da fila, amanhã. O senhor deve sacar todo o seu dinheiro, e depressa.

— Ayeeyah! Por todos os deuses! — disse Wu, a voz áspera. — Eu pessoalmente cortarei a garganta do Banqueiro Kwang se perder uma só moeda de merda, mesmo sendo meu sobrinho!

Paul Choy não tirou os olhos dele.

— Ele é?

— Os bancos são invenções de merda dos demônios estrangeiros para roubar a fortuna das pessoas honestas — esbravejava Wu. — Eu vou recuperar cada moeda de cobre, caso contrário o sangue dele vai correr! Conte-me o que ele falou do banco.

— Por favor, seja paciente, Honrado Tio. É cortês, segundo o costume dos bárbaros, não deixar este bárbaro esperando.

Wu guardou a sua ira, e disse para Gornt, num inglês execrável:

— Banco ruim, heya? Obrigado diz verdade. Banco mau costume, heya?

— Às vezes — falou Gornt, cautelosamente.

Wu Quatro Dedos abriu os punhos ossudos e procurou acalmar-se.

— Obrigado por favor... sim... também quero como filho irmã diz, heya?

— Desculpe, não estou entendendo. O que seu tio quer dizer, Sr. Choy?

Depois de falar um pouquinho com o pai, para manter ás aparências, o rapaz disse:

— Meu tio consideraria um grande favor se pudesse saber, em particular, adiantadamente, de qualquer incursão, tentativa de compra de controle ou de salvação do banco... naturalmente, isso seria estritamente confidencial.

Wu balançou a cabeça, e apenas a sua boca sorria, agora.

— Sim. Favor.

Estendeu a mão e apertou a de Gornt amistosamente, sabendo que os bárbaros apreciavam tal costume, embora ele o achasse de mau gosto e incivilizado, e contrário às boas maneiras, desde tempos imemoriais. Mas queria o filho treinado rapidamente, e tinha que ser com a Segunda Grande Companhia, e precisava da informação de Gornt. Sabia bem da importância do conhecimento antecipado. "Eee", pensou, "sem meus amigos nas forças da Polícia Marítima da Ásia, minhas frotas seriam impotentes."

— Vá para terra com ele, sobrinho. Ponha-o num táxi e depois me espere. Vá buscar Tok Duas Machadinhas e espere por mim, lá junto ao ponto de táxis.

Agradeceu a Gornt de novo, depois acompanhou-os até o convés e ficou vendo enquanto se afastavam. Sua balsa-sampana estava esperando, e eles entraram nela e dirigiram-se para terra.

Era uma noite gostosa, e ele sentiu o gosto do vento. Havia umidade nele. Chuva? Prontamente examinou as estrelas e o céu noturno, todos os seus anos de experiência se concentrando. A chuva só viria com a tempestade. Tempestade poderia significar tufão. Já estava no fim da estação, para chuvas de verão, mas as chuvas podiam chegar tarde e ser repentinas e muito fortes, e o tufão podia vir até novembro, ou começar em maio, e, se fosse a vontade dos deuses, chegar em qualquer estação do ano.

A chuva seria bem-vinda, pensou. Mas não o tufão.

Estremeceu. Estavam quase entrando no nono mês.

O nono mês lhe trazia más lembranças. Durante os anos da sua vida, o tufão o atingira dezenove vezes nesse mês, sete vezes desde que o pai morrera e ele se tornara chefe da Casa dos Wus Marítimos e Comandantes das Frotas.

Dessas sete vezes, a primeira fora naquele mesmo ano. Ventos de cento e quinze nós sopraram violentamente do nor-noroeste e afundaram uma frota inteira de cem juncos no estuário do rio Pearl. Mais de mil pessoas morreram afogadas, daquela vez... o filho mais velho dele e toda a sua família. Em 1949, quando ordenara a toda a sua armada sediada no rio Pearl que fugisse do continente comunista e se radicasse per-manentetnente nas águas de Hong Kong, fora apanhado no mar e afundado junto com noventa juncos e trezentas sampanas. Ele e a família foram salvos, mas perdera oitocentos e dezessete do seu povo. Aqueles ventos tinham vindo do leste. Doze anos atrás, novamente do leste-nordeste, e setenta juncos perdidos. Dez anos atrás, o tufão Susan, com suas rajadas de vento e chuva de oitenta nós, vindas do nordeste, mudando de direção para o leste-sudeste, dizimara a sua frota sediada em Formosa, e custara-lhe outras quinhentas vidas ali, e mais duzentas para o sul, até Cingapura, e outro filho com toda a família. O tufão Glória, em 57, rajadas de vento de chuva de cem nós, outra multidão afogada. No ano passado viera o tufão Wandâ, que destruíra Aberdeen e a maioria das aldeias marítimas haklo nos Novos Territórios. Aqueles ventos tinham vindo do nor-noroeste, voltado para o noroeste, depois mudado de direção e ido para o sul.

Wu conhecia bem os ventos, e o número dos dias também: 2, 8, 2 de novo, 18, 22, 10 de setembro, e o tufão Wanda no dia 1.°. "Ê", pensou, "e esses números somam 63, que é divisível pelo algarismo mágico 3, que dá 21, que dá 3 de novo. Será que o tufão virá no terceiro dia do nono mês, este ano? Nunca veio antes, nunca, ao que me conste, mas virá este ano? O número 63 também dá 9. Virá no nono dia?"

Provou o vento de novo. Continha umidade. Vinha chuva. O vento refrescara ligeiramente. Agora vinha do nor-nordeste.

O velho marinheiro escarrou e cuspiu. "Joss! Seja no terceiro, ou nono, ou segundo, só depende dos fados. A única coisa certa é que o tufão virá de um canto ou de outro, e virá no nono mês... ou neste mês, o que é igualmente ruim."

Observava agora a sampana, e via o filho sentado na meia-nau, ao lado do bárbaro, e ficou pensando até onde poderia confiar nele. "O rapaz é esperto, e conhece muito bem os costumes dos demônios estrangeiros", pensou, cheio de orgulho. "É, mas até onde converteu-se aos seus hábitos daninhos? Bem, logo vou descobrir. Uma vez que o rapaz passe a fazer parte da cadeia, será obediente. Ou morrerá. No passado, a Casa de Wu sempre comerciou com ópio, com ou para a Casa Nobre, e às vezes para nós mesmos. Antigamente, o ópio era honroso.

"Ainda é, para alguns. Eu, Mo Contrabandista, Lee Pó Branco, ah, e quanto a eles? Devemos formar uma irmandade ou não?

"Mas os Pós Brancos? São assim tão diferentes? Não são apenas um ópio mais forte... como a bebida alcooólica comparada à cerveja?

"Qual a diferença comercial entre os Pós Brancos e o sal? Nenhuma. Só que agora a lei cretina dos demônios estrangeiros diz que um é contrabando, e o outro não! Ayeeyah, até vinte e tantos anos atrás, quando os bárbaros perderam a sua bosta de guerra para os monstros do mar do Leste, o governo monopolizava o comércio aqui.

"O comércio de Hong Kong com a China não se baseou no ópio, alimentado apenas pelo ópio produzido na índia bárbara?

"Mas agora que destruíram seus próprios campos produtores, estão tentando fingir que o comércio nunca existiu, que é imoral e um crime terrível, passível de vinte anos de cadeia!

"Ayeeyah, como pode uma pessoa civilizada compreender um bárbaro?"

Enojado, voltou para baixo.

"Eeee", pensou, cansado, "que dia difícil! Primeiro, John Chen some. Depois aqueles dois cantonenses filhos da puta são presos no aeroporto, e meu carregamento de armas é roubado pela merda da polícia. Então, hoje à tarde, chegou a carta do tai-pan, entregue em mãos."

"Saudações, Honrado Velho Amigo. Pensando bem, sugiro que ponha o Filho Número Sete com o inimigo — melhor para ele, melhor para nós. Peça ao Barba Negra para vê-lo hoje à noite. Telefone-me depois." Estava assinada "Velho Amigo" e trazia o carimbo oficial do tai-pan.

"Velho Amigo", para um chinês, era uma pessoa ou uma companhia que lhe havia feito um favor extremo no passado, ou alguém no setor comercial que provara ser digno de confiança e lucrativo, ao longo dos anos. Às vezes, os anos abrangiam gerações.

"É", pensou Wu, "este tai-pan é um Velho Amigo." Fora ele que sugerira a certidão de nascimento e o novo nome para o Sétimo Filho, que sugerira mandá-lo para o País Dourado, e que aplainara o terreno por lá, e o terreno que levava à grande universidade, e cuidara dele lá sem que ele soubesse... o subterfúgio resolvendo o dilema de como conseguir que um de seus filhos fosse treinado nos Estados Unidos sem a mácula da ligação com o ópio.

"Que tolos são os bárbaros! É, mas mesmo assim, este tai-pan não é. Ele é verdadeiramente um Velho Amigo... e a Casa Nobre também."

Wu lembrou-se de todos os lucros que ele e a família haviam ganho secretamente durante gerações, com ou sem a ajuda da Casa Nobre, na paz e na guerra, comerciando onde os navios bárbaros não podiam: contrabando, ouro, gasolina, ópio, borracha, maquinaria, remédios, toda e qualquer coisa que estivesse em escassez. Até mesmo gente. Ajudando as pessoas a fugir do ou para o continente, sendo considerável o dinheiro da passagem. Com ou sem, mas principalmente com a assistência da Casa Nobre, com esse tai-pan e seu antecessor, o Velho Nariz Aquilino, seu velho primo, e antes dele, Cão Danado, seu pai, e antes dele o pai do primo, o clã dos Wus prosperara.

Agora, Wu Quatro Dedos possuía seis por cento da Casa Nobre, adquiridos ao longo dos anos, e escondidos com a ajuda deles num labirinto de representantes, mas mesmo assim sob seu controle exclusivo, a maior parte do seu negócio de transmissão de ouro, juntamente com grandes investimentos aqui, em Macau, Cingapura e Indonésia, e em propriedades, navegação, operações bancárias.

"Operações bancárias", pensou, com azedume. "Vou cortar a garganta do meu sobrinho, depois de fazê-lo comer o seu Saco Secreto, se perder uma moeda de cobre!"

Já estava sob o convés, e entrou na cabine principal desarrumada e nada atraente onde ele e a mulher dormiam. Ela estava deitada no grande beliche cheio de palha, e virou-se, semi-adormecida.

— Já acabou? Já vem para a cama?

— Não. Vá dormir — disse ele, bondosamente. — Tenho trabalho para fazer.

Obedientemente, ela fez o que ele mandou. Era a tai-tai dele, a sua mulher principal, e estavam casados há quarenta e sete anos.

Ele tirou as roupas, e vestiu outras: uma camisa branca limpa, meias e sapatos limpos, e as calças cinzentas estavam bem vincadas. Fechou a porta da cabine às suas costas e subiu agilmente ao convés, sentindo-se muito desconfortável e constrangido dentro das roupas.

— Volto antes do alvorecer, Quarto Neto — disse.

— Sim, Avô.

— Trate de ficar acordado!

— Sim, Avô.

Ele deu um cascudo de leve no garoto. Depois cruzou as pranchas e parou no terceiro junco.

— Poon Bom Tempo? — chamou.

— Sim... sim? — retrucou a voz sonolenta. O velho estava enrascado sobre um saco velho, cochilando.

— Reúna todos os comandantes. Volto dentro de duas horas.

Poon ficou imediatamente alerta.

— Vamos zarpar? — indagou.

— Não. Volto daqui as duas horas, reúna os comandantes! Wu continuou o seu caminho, e entrou na sua balsa-sampana pessoal, sob as reverências da tripulação. Olhou para terra. O filho estava de pé, ao lado do seu grande Rolls preto com a chapa do número da sorte — um único algarismo 8 — que comprara por cento e cinqüenta mil HK no leilão do governo, seu chofer uniformizado e seu guarda-costas, Tok Duas Machadinhas, esperando deferentemente ao lado dele. Como sempre, sentiu prazer ao ver seu grande automóvel, e isso sobrepujou sua preocupação crescente. Naturalmente, não era o único morador das aldeias marítimas que possuía um Rolls. Mas, por costume, o dele era sempre o maior e o mais novo. Oito, baat, era o número de maior sorte, porque rimava com faat, que queria dizer "prosperidade em expansão".

Sentiu o vento mudar de posição um ponto, e sua ansiedade aumentou. "Eeee, hoje foi um dia ruim, mas amanhã será pior.

"Aquele bolo de carne de cachorro, John Chen, fugiu para o País Dourado ou foi realmente seqüestrado? Sem aquele pedaço de bosta ainda sou o menino de recados do tai-pan. Estou cansado de ser um menino de recados. A recompensa de cem mil por John Chen é dinheiro bem investido. Eu pagaria doze vezes essa quantia por John Chen e sua merda de moeda. Graças a todos os deuses que coloquei espiões na casa do Chen da Casa Nobre."

Fez um sinal firme com a mão, na direção da terra.

— Ande ligeiro, velho — ordenou ao barqueiro, o rosto sombrio. — Tenho muito o que fazer antes do alvorecer!


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