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20h32m
Brian Kwok acordou sobressaltado. Num momento estava tendo um pesadelo, no outro já acordara, mas de alguma forma ainda estava na cova funda e escura do sono, o coração batendo, a mente desordenada, e não havia diferença entre o sono e a vigília. Ficou tomado de pânico. Depois, percebeu que estava nu, e ainda na mesma escuridão morna da cela, e lembrou-se de quem era, e onde estava.
"Eles devem ter me drogado", pensou. Tinha a boca seca, a cabeça lhe doía. Recostou-se no colchão pegajoso, tentando pôr as idéias em ordem. Lembrava-se vagamente de ter estado na sala de Armstrong, e antes disso com Crosse, discutindo o 16/2, mas não por muito tempo. Depois disso, lembrava-se apenas de ter acordado naquela escuridão, tateando em busca das paredes, para se orientar, sentindo-as bem perto, abafando o terror de saber que fora traído e estava indefeso nas entranhas do qg da polícia, dentro de uma caixa sem janelas e com uma porta em algum lugar. "Depois, adormeci, exausto, e acordei com vozes iradas... ou será que sonhei isso?... e depois adormeci de novo e... não, comi primeiro. Não comi primeiro? ... foi, uma lavagem a que chamaram de jantar, e chá frio... Vamos, pense, é importante pensar e se lembrar... É, eu me lembro, um ensopado horrível e chá frio. Depois, mais tarde, o desjejum. Ovos. Será que foram os ovos primeiro, depois o ensopado, ou vice-versa? É, as luzes se acenderam por um momento enquanto eu comia, o tempo suficiente para eu comer... Não, as luzes se apagaram e lembro-me de ter ficado no escuro, e detestei comer na escuridão. E depois mijei no balde, na escuridão, voltei para o colchão e me deitei de novo.
"Há quanto tempo estou aqui? Preciso contar os dias. "
Exausto, girou as pernas para fora do catre e foi tropeçando até uma parede, os membros doendo tanto quanto a cabeça. "Preciso me exercitar", pensou, "tenho que limpar meu organismo das drogas e ficar com a cabeça desanuviada e pronta para o interrogatório. Preciso preparar minha cabeça para quando eles me atacarem, quando começarem de verdade... quando pensarem que amoleci... aí eles me manterão acordado até me dobrarem.
"Não, não vão me dobrar. Sou forte, estou preparado, e conheço algumas das armadilhas.
"Quem me denunciou?"
O esforço para solucionar esse problema era demasiado. Portanto, reuniu suas forças e tentou alguns débeis movimentos de ginástica, flexionando os joelhos. A seguir, ouviu passos abafados que se aproximavam. Apressadamente, tateou em busca do catre e voltou a deitar-se, fingindo que dormia, sentindo o coração doendo dentro do peito enquanto sufocava o seu terror.
Os passos se detiveram. Ouviu-se o barulho de um ferrolho correndo, e um alçapão se abriu. Um raio de luz penetrou na cela, e uma mão que mal se via pousou um prato e uma xícara de metal.
— Coma o desjejum, e depressa! — disse a voz, em cantonense. — Vai ser interrogado dentro em breve.
— Escute, quero... — chamou Brian Kwok, mas o alçapão já se fechara, o ferrolho já fora corrido, e ele estava sozinho no escuro, com o eco das próprias palavras.
"Fique calmo", ordenou a si mesmo. "Acalme-se e pense. "
Abruptamente, a cela se inundou de luz. A luz lhe doía nos olhos. Quando sua vista se adaptou à claridade, Brian viu que a luz vinha de apliques no teto, e lembrou-se de já tê-los visto antes. As paredes eram escuras, quase negras, e pareciam fechar-se sobre ele. "Não se preocupe com elas", pensou. "Já viu celas escuras antes, e, embora nunca tenha tomado parte em um interrogatório, conhece os princípios e alguns dos macetes. "
Sentiu uma onda de náusea subir-lhe à boca ao pensar no que o esperava.
Mal se distinguia a porta, e o alçapão ficava igualmente oculto. Podia sentir os olhares, embora não pudesse ver nenhum visor. No prato havia dois ovos fritos e um pedaço grosso de pão. O pão estava levemente torrado. Os ovos estavam frios, engordurados e inapetecíveis. Na xícara havia chá frio. Não havia talheres.
Bebeu o chá sofregamente, tentando sorvê-lo devagar. Mas num instante acabou, e a pequena quantidade não havia saciado a sua sede. "Dew neh loh moh, o que eu não daria por uma escova de dentes, uma garrafa de cerveja e... "
As luzes se apagaram da mesma maneira inesperada com que tinham sido acesas. Ele levou muito tempo para se adaptar de novo à escuridão. "Fique calmo, é só escuridão e luz, luz e escuridão. É só para confundir e desorientar. Fique calmo. Aceite cada dia por vez, cada interrogatório por vez. "
O terror voltou. Tinha consciência de que não estava realmente preparado, que não tinha experiência suficiente, que não sabia o que fazer se o inimigo o capturasse, o inimigo comunista da RPC, embora tivesse recebido algum treinamento de sobrevivência contra captura. "Mas a RPC não é o inimigo. O inimigo real são os britânicos e os canadenses, que fingiram ser amigos e mestres. Eles é que são o inimigo real.
"Não pense nisso. Não tente convencer-se. Tente apenas convencê-los.
"Preciso agüentar firme. Preciso fingir que é um engano durante o máximo de tempo que puder, e depois... depois contar a história que inventei ao longo dos anos, e confundi-los. É o meu dever. "
A sede era alucinante. E a fome.
Brian Kwok tinha vontade de jogar a xícara vazia e o prato contra a parede, gritar e pedir socorro, mas isso seria um erro. Sabia que era preciso controlar-se e conservar cada partícula de força disponível, para poder lutar.
"Use a cabeça. Use o seu treinamento. Ponha a teoria em prática. Pense no curso de sobrevivência na Inglaterra, no ano passado. Agora, o que faço?"
Lembrou-se que parte da teoria de sobrevivência dizia que era preciso comer, beber e dormir sempre que possível, pois nunca se sabia quando o alimento, a bebida e o sono iam ser cortados. E que se devia usar os olhos, o nariz, o tato e a inteligência para manter a noção do tempo no escuro, e lembrar que os captores sempre cometem algum erro, e que, se se percebe o erro, pode-se ter noção de tempo, e se se tiver noção de tempo, então será possível manter-se equilibrado e engabelá-los, e não divulgar o que não pode ser divulgado — nomes exatos e contatos verdadeiros. "Confronte a sua inteligência com a deles", era a regra. "Mantenha-se ativo, force-se a observar. "
"Será que eles cometeram algum erro? Será que esses demônios bárbaros britânicos já cometeram algum deslize? Só uma vez", pensou, excitado. "Os ovos! Os britânicos estúpidos e os seus ovos no café da manhã!"
Sentindo-se agora melhor e totalmente desperto, saiu do catre, tateou até achar o prato de metal e pousou suavemente a xícara ao lado dele. Os ovos estavam frios, e a gordura, endurecida, mas ele os mastigou, comeu o pão e sentiu-se melhor. Comer com as mãos no escuro era esquisito e desconfortável, especialmente sem ter onde limpar os dedos, a não ser na própria nudez.
Estremeceu. Sentia-se abandonado e sujo. A bexiga estava cheia, e ele foi tateando até chegar ao balde preso à parede. O balde fedia.
Com o dedo indicador, mediu habilmente o nível do balde. Estava parcialmente cheio. Urinou, e mediu o novo nível. Calculou mentalmente a diferença. "Se não acrescentaram nada para me confundir, mijei três ou quatro vezes. Duas vezes por dia? Ou quatro vezes por dia?"
Esfregou o dedo sujo contra o peito, e sentiu-se mais sujo ainda, mas era importante usar toda e qualquer coisa para se manter equilibrado e com noção do tempo. Deitou-se de novo. Não saber se estava claro ou escuro, se era dia ou noite, dava-lhe náuseas. Sentiu um enjôo subir-lhe à boca, mas dominou-o e forçou-se a lembrar do Brian Kwok que eles, os inimigos, pensavam que era Brian Kar-shun Kwok, e não o outro homem, o homem quase esquecido cujo sobrenome era Wu, o nome de família era Pah, e cujo nome adulto era Chu-toy.
Lembrou-se de Ning-tok, do pai e da mãe, e de ter sido mandado para Hong Kong no seu sexto aniversário, para estudar, querendo aprender e crescer para ser um patriota como os pais e o tio, que vira ser açoitado até a morte na praça da aldeia, por ser patriota. Aprendera com os parentes de Hong Kong que "patriota" e "comunista" queriam dizer a mesma coisa, e não "inimigos do Estado". Que os suseranos do Kuomintang eram tão maus quanto os demônios estrangeiros que haviam forçado a China a assinar tratados desiguais, e que o único patriota verdadeiro era aquele que seguia os ensinamentos de Mao Tsé-tung. Lembrava-se de quando entrara para a primeira das muitas fraternidades secretas, trabalhando para ser o melhor pela causa da China e de Mao, que era a causa da China, aprendendo com mestres secretos, sabendo que era parte da nova grande onda de revolução que devolveria o poder à China, tirando-o dos demônios estrangeiros e seus lacaios, jogando-os para sempre ao mar.
Ganhara a bolsa de estudos! Aos doze anos!
Ah, como tinham ficado orgulhosos seus mestres secretos! Depois, a ida para o país dos bárbaros, agora falando perfeitamente a língua deles, e a salvo contra seus pensamentos e costumes nefastos. A ida para Londres, a capital do maior império que o mundo já vira, que ia ser humilhado e destroçado algum dia, mas, naquela época, em 1937, ainda vivia o seu último florescer.
Dois anos lá. Odiando a escola inglesa e os meninos ingleses... "Lig-lig-lé, lá vai o seu China na ponta do pé... ", mas disfarçando, disfarçando as lágrimas, os mestres da sua nova fraternidade ajudando-o, orientando-o, colocando perguntas e respostas dentro do contexto, mostrando-lhe a beleza da dialética, de fazer parte da verdadeira revolução inquestionável. Nunca questionar, nunca haver a necessidade de questionar.
Depois, a guerra com a Alemanha, e a evacuação com todos os outros escolares para a segurança no Canadá, todo aquele período maravilhoso em Vancouver, Colúmbia Britânica, na costa do Pacífico, toda aquela imensidão, as montanhas e o mar, o Bairro Chinês florescente, com boa comida de Ning-tok... e um novo ramo da fraternidade mundial, e mais mestres, sempre alguém sábio com quem conversar, sempre alguém pronto a explicar e aconselhar... sem ser aceito pelos colegas de escola, mas derrotando-os academicamente, no boxe e nos outros esportes, tornando-se monitor, jogando bem críquete e tênis... parte de seu treinamento.
"Sobressaia, Chu-toy, meu filho, sobressaia e seja paciente para a glória do partido, para a glória de Mao Tsé-tung, que é a China", tinham sido as últimas palavras que o pai lhe dissera, palavras secretas gravadas na sua mente desde os seis anos, e repetidas no seu leito de morte.
Entrar para a Real Polícia Montada Canadense fora parte do plano. Fora fácil sobressair na rpmc, designado para o Bairro Chinês, os molhes e os atalhos, falando inglês, mandarim e cantonense (o seu dialeto de Ning-tok enterrado bem fundo). Fora fácil tornar-se um bom policial naquela bela cidade portuária. Logo se tornara único, o perito chinês de Vancouver, de confiança, destacado, lutando implacavelmente contra os crimes que os bandidos tríades do Bairro Chinês exploravam: ópio, morfina, heroína, prostituição e a eterna jogatina ilegal.
Seu trabalho fora elogiado tanto por seus superiores quanto pelos líderes da fraternidade, que eram igualmente contra o domínio das quadrilhas, o tráfico de drogas e o crime, ajudando-o a prender e a descobrir, sendo seu único interesse secreto o funcionamento interno da rpmc: como a rpmc contrata, despede, promove, examina, investiga, vigia, e quem controla o quê, onde e como. Mandado de Vancouver para Ottawa, por seis meses, emprestado por um chefe de polícia agradecido para dar assistência a uma investigação sigilosa de uma quadrilha de tóxicos chinesa, fizera novos e importantes contatos canadenses, e contatos com a fraternidade, aprendendo mais e mais, desbaratando a quadrilha e sendo promovido. Não é difícil controlar o crime e ser promovido quando se trabalha e se tem amigos secretos às centenas, com olhos secretos por toda parte.
Então, viera o fim da guerra, e o pedido de transferência para a polícia de Hong Kong... a parte final do plano.
Mas não queria ir, não queria partir, amando o Canadá e amando-a. Jeannette. Jeannette de Bois. Tinha dezenove anos, era franco-canadense de Montreal, e falava francês e inglês. Os pais dela, franco-canadenses de muitas gerações, gostavam dele, aprovavam-no, não se importavam que ele fosse chinois, como o chamavam, carinhosamente. Ele tinha então vinte e um anos, e em breve seria comandante, com uma grande carreira à frente, casamento à vista, para dali a mais ou menos um ano...
Brian Kwok mudou de posição no colchão, angustiado. Sentia a pele pegajosa, e a escuridão parecia sufocá-lo. Fechou as pálpebras pesadas e deixou o pensamento voltar para ela e para aquela época ruim de sua vida. Lembrava-se de como discutira com a fraternidade, com o líder, dizendo que podia servir melhor no Canadá do que em Hong Kong, onde seria apenas um entre muitos. No Canadá era único. Em alguns anos faria parte da hierarquia da polícia de Vancouver.
Mas todos os seus argumentos tinham fracassado. Com tristeza, reconhecera que eles tinham razão. Sabia que, se tivesse ficado, acabaria por passar para o outro lado, romperia com o partido. Havia então muitas perguntas sem resposta, graças à leitura de documentos oficiais sobre os soviéticos, o KGB, os gulags, e muitos amigos, canadenses e nacionalistas. Hong Kong e a China eram remotas, seu passado era remoto. Jeannette estava ali, ele a amava, e à vida deles, seu carro "envenenado" e o prestígio entre os seus pares, encarando-os agora como iguais, não mais como bárbaros.
O líder lhe recordara o seu passado, que os bárbaros são apenas bárbaros, que precisavam dele em Hong Kong, onde a batalha apenas começava, onde Mao ainda não era o presidente Mao, ainda não era vitorioso, ainda lutava contra Chang Kai-chek.
Amargamente, obedecera, odiando estar sendo forçado, sabendo que estava em poder deles, e que obedecia apenas por causa desse poder. Em seguida, os quatro anos excitantes até 1949, e a vitória total, incrível, inacreditável, de Mao. Depois, entocara-se de novo, usando suas brilhantes habilidades para lutar contra o crime, que para ele era um anátema, uma desgraça para Hong Kong e uma mancha na face da China.
E então a vida tornara-se boa de novo. Fora escolhido para altas promoções, e os britânicos ligados a ele o respeitavam porque vinha de uma excelente escola inglesa, tinha um belo sotaque inglês de "alta classe", e era um desportista inglês como a elite do império o fora, antes dele.
"E agora estamos em 1963, e tenho trinta e nove anos; amanhã... não, amanhã não, no domingo, no domingo vai haver a subida do morro, e no sábado as corridas, e Noble Star... será Noble Star, ou Pilot Fish de Gornt, ou Butter-scotch Lass de Richard Kwok, não, Richard Kwang, ou o azarão de John Chen, Golden Lady? Acho que apostaria meu dinheiro em Golden Lady... cada tostão, é, as economias de toda a vida. E também vou apostar no Porsche, embora seja uma burrice, mas vou. Tenho que fazê-lo, porque o Crosse mandou, e Robert concorda, e os dois disseram que tenho que apostar também a minha vida, mas, meu Deus, agora Golden Lady está mancando no paddock, mas a aposta já foi feita, e foi dada a largada, e eles estão correndo. Vamos, Golden Lady, vamos, pelo amor de Mao, não ligue para as nuvens escuras e para os raios! Vamos, todas as minhas economias e a minha vida dependem da sua amaldiçoada, nojenta, oh, Deus, presidente, não me desampare... "
Estava agora entregue profundamente aos sonhos, sonhos maus, sonhos induzidos por drogas, e o Vale Feliz¹ era o Vale da Morte. Seus olhos não sentiram as luzes se acenderem nem a porta se abrir.
¹ Em inglês, Happy Valley, nome do hipódromo de Hong Kong. (N. do E. )
Estava na hora de recomeçar.
Armstrong olhou para o amigo, apiedado dele. As luzes foram cuidadosamente diminuídas. Ao lado dele estava o agente Malcolm Sun, um guarda e o médico do sei. O dr. Dorn era um especialista, um homem garboso, levemente calvo, com a vivacidade de um passarinho. Tomou o pulso de Brian Kwok, tirou-lhe a pressão e auscultou-lhe o coração.
— Fisicamente o cliente está bem, superintendente — disse, com um leve sorriso. — A pressão e os batimentos do coração estão um pouco alterados, mas isso era de se esperar.
Fez as anotações no gráfico e entregou-o a Armstrong, que lançou um olhar ao relógio, anotou a hora e também assinou o gráfico.
— Pode prosseguir — disse.
O médico encheu a seringa com cuidado. Com o mesmo cuidado, aplicou a injeção nas nádegas de Brian Kwok com uma agulha nova. Quase não deixou marca, apenas uma gotinha de sangue, que ele enxugou.
— Hora do jantar, quando quiserem — disse, com um sorriso.
Armstrong apenas balançou a cabeça. O guarda do sei havia acrescentado mais um pouco de urina ao balde, e aquilo também foi anotado no gráfico.
— Esperteza dele ter medido o nível, não pensei que faria isso — comentou Malcolm Sun. Raios infravermelhos instalados nas luzes do teto tornavam fácil controlar os mínimos movimentos de um cliente. — Dew neh loh moh, quem teria imaginado que ele fosse um toupeira? Ele era sempre tão danado de esperto!
— Vamos torcer para que o pobre sacana não seja esperto demais — falou Armstrong, com azedume. — Quanto mais cedo falar, melhor. O Velho não vai desistir dele.
Os outros olharam para ele. O jovem guarda do sei estremeceu.
O dr. Dorn rompeu o silêncio, constrangido.
— Devemos manter ainda o ciclo de duas horas, senhor? Armstrong lançou um olhar para o amigo. A primeira droga fora ministrada, através da caneca de cerveja, por volta da uma e meia da tarde. Desde então, Brian Kwok tinha estado numa Classificação Dois — uma rotina de dormir-acordar-dormir-acordar conseguida com substâncias químicas. A cada duas horas. Injeções para acordar pouco antes das quatro e meia, seis e meia e oito e meia, e isso continuaria até as seis e meia da manhã, quando começaria o primeiro interrogatório sério. Dez minutos depois de cada injeção, o cliente era arrancado artificialmente do sono, a fome e a sede aumentadas pela droga. Engolia a comida e o chá frio, e logo as drogas neles contidas começavam a fazer efeito, rapidamente. Um sono profundo, muito profundo, logo ajudado por outra injeção. Escuridão e luzes fortes alternadas, vozes metálicas e silêncio alternados. Depois, o despertar. Desjejum. Duas horas depois, jantar. E duas horas depois, desjejum de novo. Para uma mente incrivelmente desorientada, doze horas virariam seis dias... mais, se o cliente agüentasse: doze dias a cada hora exata. Nenhuma necessidade de tortura física, apenas escuridão e desorientação, o bastante para se descobrir o que se quer do cliente inimigo, ou para fazê-lo assinar o que se quiser, acreditando que a verdade dos seus captores é a sua verdade.
Qualquer um.
Qualquer um, depois uma semana de dormir-acordar-dor-mir, seguida de dois ou três dias de nenhum sono.
Qualquer um.
"Oh, Deus todo-poderoso", pensou Armstrong, "seu pobre
sacana desgraçado! Você vai tentar se agüentar e não vai adiantar nada. Nada mesmo. "
Mas, então, parte da mente de Armstrong lhe gritou: "Mas ele não é seu amigo, e sim um agente inimigo, apenas um 'cliente' e inimigo que atraiçoou você, e tudo, e todos durante anos. Provavelmente foi ele quem entregou Fong-fong e seus rapazes, que estão agora numa cela nojenta e fétida recebendo o mesmo tratamento, mas sem médicos, controle e cuidados.
"Apesar disso, será que se pode sentir orgulho deste tipo de tratamento... será que alguma pessoa civilizada pode?
"Não.
"É necessário entupir um corpo indefeso com um monte de substâncias químicas nojentas?
"Não... é, sim, às vezes é. E matar às vezes é necessário, cães danados, gente... ah, sim, há gente má, e os cães danados são maus. É. É preciso usar essas técnicas psíquicas modernas, criadas por Pávlov e outros soviéticos, criadas pelos comunistas sob o regime do KGB. Ah, mas será preciso segui-los?
"Meu Deus, sei lá! Mas sei que o KGB está tentando nos destruir a todos, e rebaixar-nos ao nível dele e... "
Os olhos de Armstrong voltaram a entrar em foco, e viu que todos o fitavam.
— O quê?
— Devemos manter o ciclo de duas horas, senhor? — repetiu o médico, inquieto.
— Sim, e às seis e meia começaremos a primeira entrevista.
— O senhor mesmo vai fazê-la?
— Está nas ordens, puta que o pariu! — explodiu Armstrong. — Porra, não sabe ler?
— Oh, desculpe — replicou o médico imediatamente. Todos sabiam da amizade de Armstrong pelo cliente, e das ordens de Crosse para ele conduzir o interrogatório. — Quer um sedativo, meu velho? — perguntou o dr. Dorn, solícito.
Armstrong xingou-o obscenamente e saiu, zangado porque o médico conseguira fazê-lo perder a paciência. Subiu ao andar mais alto do prédio, onde ficava o salão de reunião dos oficiais,
— Garçom!
— Pronto, senhor!
Sua caneca de cerveja logo apareceu, mas daquela vez o liquido suave e escuro que adorava, amargo e maltado, não lhe saciou a sede ou limpou sua boca. Mil vezes ele se perguntava o que faria se fosse pego por eles e colocado, nu, dentro de uma cela daquelas, conhecendo a maioria das técnicas e práticas, e estando preparado. "Melhor do que o desgraçado do Brian", pensou amargamente. "O pobre sacana sabe tão pouco! É, mas será que saber mais ajuda alguma coisa, quando se é o cliente?"
Sentiu a pele pegajosa do suor provocado pelo medo, ao pensar no que esperava Brian Kwok.
— Garçom!
— Sim, senhor, já vou!
— Boa noite, Robert. Posso sentar-me com você? — perguntou o inspetor-chefe Donald C. C. Smyth.
— Oh, alô. Sim... sente-se — disse, sem entusiasmo, ao homem mais moço.
Smyth sentou-se no banquinho ao lado dele e ajeitou mais confortavelmente o braço na tipóia.
— Como vai indo a coisa?
— Rotina.
Armstrong viu Smyth balançar a cabeça, e pensou como lhe caía bem o seu apelido. O Cobra. Smyth era bonitão, suave, sinuoso como uma cobra, com o mesmo tipo mortal de ameaça e o mesmo hábito de lamber os lábios de vez em quando com a ponta da língua.
— Pombas! Ainda acho impossível acreditar que seja o Brian. — Smyth era um dos poucos que sabia sobre Brian. — Que coisa chocante!
— É
— Robert, o diretor do Departamento de Investigações Criminais — o chefe supremo de Robert — me ordenou que assumisse o caso dos Lobisomens enquanto você estiver ocupado. E quaisquer outros que você queira que eu assuma.
— Está tudo nos arquivos. O sargento Tang-po é meu número 2... é um bom detetive. Muito bom, na verdade. — Armstrong tomou grandes goles de cerveja e acrescentou, com cinismo: — E muito bem relacionado.
Smyth sorriu.
— Ótimo, isso ajuda.
— Só não vá organizar a porra do meu distrito.
— Deus me livre, amigão. Aberdeen Leste exige todas as minhas habilidades. Bem, e quanto aos Lobisomens? Continua a vigilância sobre Phillip Chen?
— Sim. E a mulher.
— Interessante que antes de Dianne se casar com aquele velho sovina ela era Mai-wei T'Chung, hem? Interessante que um dos primos dela seja o Sung Colibri.
Armstrong fitou-o.
— Andou fazendo o seu dever de casa?
— Tudo parte do serviço. — Smyth acrescentou, sombriamente: — Gostaria de pegar esses Lobisomens bem rapidinho. Já recebemos três telefonemas apavorados em Aberdeen Leste. De gente que recebeu telefonemas dos Lobisomens, exigindo h'eung yau "muito lapidinho", caso contrário, um seqüestro. Parece que a coisa se repete por toda a colônia. Se três cidadãos apavorados ligaram para nós, pode apostar que trezentos outros não tiveram coragem. — Smyth sorvia o seu uísque com soda. — Isso não é bom para os negócios, nada bom. A vaca tem apenas uma certa quantidade de gordura. Se não pegarmos logo os Lobisomens, os sacanas terão sua própria Casa da Moeda... alguns telefonemas rápidos e o dinheiro irá pelo correio, as pobres vítimas felizes por pagarem para fugir às atenções deles... e qualquer outro bandido safado com visão também vai entrar nessa jogada.
— Concordo. — Armstrong terminou a cerveja. — Quer outra?
— É por minha conta. Garçom! Armstrong ficou vendo sua cerveja ser servida.
— Acha que há alguma ligação entre John Chen e Sung Colibri? — Lembrava-se de Sung, o rico armador seqüestrado há seis anos, e sorriu amargamente. — Pombas, há anos que não penso nele!
— Nem eu. Os casos não são semelhantes, e pusemos os seqüestradores por vinte anos na cadeia, onde vão apodrecer, mas nunca se sabe. Pode ser que haja uma ligação. — Smyth deu de ombros. — Dianne Chen devia odiar John Chen, e estou certo de que ele a odiava, todo mundo sabe disso. Assim como o velho Colibri. — Ele riu. — O outro apelido do Colibri no... digamos... no comércio é Intrometido.
Armstrong soltou um resmungo. Esfregou os olhos cansados.
— Pode valer a pena ir ver a mulher de John, Barbara. Ia fazê-lo amanhã, mas... bem, pode valer a pena.
— Já marquei hora. E vou em primeiro lugar para Sha Tin. Pode ser que os sacanas locais tenham deixado escapar alguma coisa, na chuva.
— Boa idéia. — Inquieto, Armstrong ficou observando o Cobra tomar o seu uísque. — No que está pensando? — perguntou, sabendo que havia algo.
Smyth olhou-o nos olhos.
— Há muita coisa que não entendo nesse seqüestro. Por exemplo: por que os Grandes Dragões ofereceram uma recompensa tão grande pela recaptura de John, vivo ou morto?
— Pergunte-lhes.
— Já perguntei. Pelo menos, pedi a alguém que conhece um deles. — O Cobra deu de ombros. — Nada. Absolutamente nada. — Hesitou. — Vamos ter que escarafunchar o passado de John.
Armstrong sentiu uma pontada gélida, que disfarçou.
— Boa idéia.
— Sabia que Mary o conhecia? Da época em que foram prisioneiros de guerra, em Stanley?
— Sabia — disse Armstrong, tomando sua cerveja sem sentir-lhe o gosto.
— Ela podia nos dar uma pista... digamos... se o John estava ligado ao mercado negro, no campo. — Seus olhos azul-claros mantinham-se fitos nos olhos azul-claros de Armstrong. — Pode valer a pena perguntar.
— Vou pensar no assunto. É, vou pensar. — O grandalhão não tinha raiva do Cobra. Se estivesse no lugar dele, também teria perguntado. Os Lobisomens eram uma barra pesada, e a primeira onda de terror já varrera a sociedade chinesa. "Quantas outras pessoas sabem do caso de Mary com John Chen?", perguntou a si mesmo. "Ou sabem dos quarenta mil que ainda estão abrindo um buraco a fogo na minha mesa, ainda abrindo um buraco a fogo na minha alma?" — Faz muito tempo.
— É.
Armstrong ergueu a cerveja.
— Seus "amigos" o estão ajudando?
— Digamos que recompensas e pagamentos substanciais estão sendo feitos... prazerosa e agradecidamente, devo acrescentar, pela nossa fraternidade do jogo. — O sorriso sardônico deixou o rosto de Smyth. E a gozação. — Temos que pegar aqueles malditos Lobisomens depressa, ou eles vão realmente bagunçar o nosso coreto.