21

16h25m

— Eles não dormem juntos, tai-pan — disse Claudia Chen.

— Hem? — falou Dunross, levantando os olhos distraidamente da pilha de papéis que estava folheando.

— Não. Pelo menos ontem não dormiram.

— Quem?

— Bartlett e a sua Cirrannousshee. Dunross parou de trabalhar.

— É?

— É. Quartos separados, camas separadas, café da manhã juntos na sala principal, os dois arrumadinhos, vestindo robes modestos, o que é interessante, já que nenhum deles veste nada para dormir.

— Verdade?

— Não, pelo menos ontem não vestiram.

Dunross abriu um sorriso, e ela ficou contente porque sua fofoca o deixara satisfeito. Era o seu primeiro sorriso real do dia. Desde que ela chegara, às oito, ele estivera trabalhando como um alucinado, saindo às pressas para reuniões, voltando novamente às pressas: a polícia, Phillip Chen, o governador, duas vezes para o banco, uma vez para a cobertura, para encontrar-se com alguém que ela ignorava. Nem tivera tempo para almoçar, e o porteiro lhe contara que o tai-pan chegara ao alvorecer.

Hoje ela vira o peso sobre o seu espírito, o peso que mais cedo ou mais tarde vergava todos os tai-pans... e às vezes os quebrava. Vira o pai de Ian ir se consumindo com as imensas perdas de navios durante a guerra, a perda catastrófica de Hong Kong, dos filhos e sobrinhos... azar em cima de azar. Fora a perda do continente chinês que finalmente o destroçara. Ela vira como Suez derrubara Alastair Struan, como esse tai-pan nunca se recuperara daquele desastre, e como azar se empilhara sobre azar, para ele, até que a corrida para a venda de suas ações, organizada por Gornt, o destroçara.

"Deve ser uma tensão terrível", pensou. "Toda a nossa gente com quem se preocupar, e a nossa Casa, todos os nossos inimigos, todas as inesperadas catástrofes da natureza e do homem, que parecem estar onipresentes... e todos os pecados, piratarias e diabruras do passado que estão esperando para saltar de dentro da nossa própria caixa de Pandora, o que acontece de vez em quando. É uma pena que os tai-pans não sejam chineses", pensou. "Então os pecados do passado seriam bem mais leves."

— O que lhe dá tanta certeza, Claudia?

— Nenhuma roupa de dormir, para nenhum dos dois... pijamas ou coisinhas transparentes.

Abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Como sabe?

— Por favor, tai-pan, não posso revelar as minhas fontes!

— O que mais sabe?

— Ah! — exclamou, depois mudou serenamente de assunto. — A reunião de diretoria da Nelson Trading é daqui a meia hora. O senhor queria que eu lhe lembrasse. Pode me dar alguns minutos antes dela?

— Sim. Daqui a um quarto de hora. Agora — disse ele, com um tom resoluto na voz, que ela conhecia muito bem. — O que mais você sabe?

Ela soltou um suspiro, depois consultou seu bloquinho com ar de importância.

— Ela nunca se casou. Oh, muitos pretendentes, mas nenhum durou, tai-pan. Na verdade, segundo os boatos, nenhum jamais...

Dunross ergueu alto as sobrancelhas.

— Está querendo dizer que ela é virgem?

— Disso não temos certeza... sabemos apenas que não tem a reputação de ficar fora até tarde, ou de passar a noite na companhia de cavalheiros. Não. O único cavalheiro com quem sai socialmente é o Sr. Bartlett, e mesmo assim, não com muita freqüência. Exceto em viagens de negócios. Ele, a propósito, tai-pan, é um belo de um paquerador, foi o termo usado. Nada de uma só moça, mas...

— Usado por quem?

— Ah! O Sr. Bonitão Bartlett não tem uma garota especial, tai-pan. Nada firme, como dizem. Divorciou-se em 1956, no mesmo ano em que a sua Cirrrannnousshee entrou na firma dele.

— Ela não é a minha Ciranoush — disse ele.

Claudia abriu um sorriso mais amplo.

— Está com vinte e seis anos, e é sagitariana.

— Você arranjou alguém para roubar o passaporte dela... ou para dar uma espiada nele?

— Pela madrugada! Não, tai-pan. — Claudia fingiu estar chocada. — Não espiono as pessoas. Só faço perguntas. Mas aposto cem que ela e o Sr. Bartlett foram amantes, numa época ou noutra.

— Essa aposta não vale, eu ficaria atônito se não fossem. Ele está apaixonado por ela, sem dúvida... e ela por ele. Viu como dançavam juntos. Isso não é aposta que se faça.

As ruguinhas à volta dos olhos dela se aprofundaram.

— Quanto me dá de vantagem se eu apostar que nunca foram amantes?

— Hem? O que você está sabendo?.— perguntou, desconfiado.

— Quanto me dá, tai-pan?

Ele a observou, atento, depois disse:

— Mil contra... não, dou dez contra um.

— Feito! Cem. Obrigada, tai-pan. Agora, quanto à Nels...

— Onde arranjou toda essa informação, hem?

Ela extraiu um telex do meio dos papéis que carregava. O resto, colocou na bandeja de entrada de expediente, na mesa dele.

— O senhor mandou um telex para o nosso pessoal em Nova York, anteontem, pedindo que arranjassem informações sobre ela, e verificassem o dossiê de Bartlett. Isto acaba de chegar.

Ele tomou o telex das mãos dela, e correu os olhos pelo papel. Lia muito rapidamente, e tinha uma memória quase fotográfica. O telex dava as informações que Claudia relatara, em termos simples, sem a interpretação floreada dela, e acrescentava que K. C. Tcholok não tinha ficha na polícia, tinha quarenta e seis mil dólares numa caderneta de poupança no Banco de Poupança e Empréstimos de San Fernando, e oito mil e setecentos dólares na sua conta corrente no Los Angeles and Califórnia Bank.

— É chocante a facilidade com que nos Estados Unidos se descobre quanto uma pessoa tem num banco, não é, Claudia?

— Chocante. Jamais me utilizaria de um, tai-pan. Ele deu um largo sorriso.

— Exceto para pedir um empréstimo! Claudia, basta me dar o telex, da próxima vez.

— Sim, tai-pan. Mas meu jeito de contar certas coisas não é mais excitante?

— É. Mas onde é que fala aí em nudez? Foi você que inventou!

— Ah, não, isso eu soube da minha própria fonte, aqui. A Terceira Camarei...

Claudia se deteve, mas era tarde demais, e já caíra na armadilha.

O sorriso dele era angelical.

— Ora vejam só! Uma espiã no Victoria! Uma Terceira Camareira! Quem? Qual delas, Claudia?

Para não desmoralizá-lo, ela fingiu estar aborrecida.

— Ayeeyah! Uma espiã-chefe não pode revelar nada, heya? — O sorriso dela era bondoso. — Eis aqui uma lista dos seus telefonemas. Adiei o máximo que pude para amanhã... avisarei o senhor na hora da reunião.

Ele fez que sim com a cabeça, mas ela viu que o sorriso dele havia desaparecido, e estava de novo imerso em seus pensamentos. Ela saiu, e ele nem ouviu a porta se fechar. Estava pensando em espiões-chefes, Alan Medford Grant e sua reunião com Brian Kwok e Roger Crosse, pela manhã, às dez horas, e a reunião que teria às dezoito horas.

A reunião matinal fora curta, brusca e tempestuosa.

— Primeiro, alguma novidade sobre Alan Medford Grant? — indagara.

Roger Crosse respondera imediatamente:

— Aparentemente, foi mesmo um acidente. Nenhuma marca suspeita no corpo dele, ninguém foi visto nas proximidades, não havia marcas de carros, marcas de impacto ou de derrapagem... exceto as da motocicleta. Agora, Ian, quanto às pastas... oh, a propósito, sabemos agora que você tem as únicas cópias existentes.

— Lamento, mas não posso fazer o que me pedem.

— Por quê?

Havia uma nota de azedume na voz do policial.

— Ainda não estou admitindo ou negando que elas existam, mas...

— Ora, pela madrugada, Ian, não seja ridículo! Claro que as cópias existem. Acha que somos idiotas? Se elas não existissem, você teria dito logo ontem à noite, sem rodeios. Aconselho-o severamente a nos deixar copiá-las.

— E eu o aconselho severamente a controlar mais o seu mau gênio.

— Se acha que me descontrolei, Ian, então sabe muito pouco a meu respeito. Estou lhe pedindo, formalmente, que apresente esses documentos. Se recusar, usarei dos poderes que me concede a Lei dos Segredos Oficiais, às seis horas de hoje à tarde, e tai-pan ou não, da Casa Nobre ou não, amigo ou não, às seis e um você será preso, incomunicável, e nós revistaremos todos os seus documentos, cofres, caixas de depósito bancário, até encontrá-las! Agora, queira ter a gentileza de nos entregar as pastas!

Dunross lembrou-se do rosto esticado e dos olhos gelados a fitá-lo, do seu amigo verdadeiro Brian Kwok em estado de choque.

— Não.

Crosse soltara um suspiro. A ameaça contida naquele som fizera com que um arrepio o percorresse.

— Pela última vez, por quê?

— Porque, nas mãos erradas, acho que seriam prejudiciais à Sua Majes...

— Santo Deus, sou o chefe do Serviço Especial de Informações!

— Eu sei.

— Então queira fazer a gentileza de atender o meu pedido.

— Lamento. Passei a maior parte da noite tentando descobrir uma maneira segura de da...

Roger Crosse se pusera de pé.

— Voltarei logo mais, às seis horas, para buscar as pastas. Não as queime, Ian. Eu saberei se você tentar, e você será impedido. Seis horas.

Na noite anterior, enquanto a casa dormia, Dunross fora ao seu escritório e relera os relatórios. Ao relê-los agora, sabendo da morte de Alan, do seu possível assassinato, do envolvimento da MI-5 e da Ml-6, provavelmente do KGB, da ansiedade espantosa de Crosse, imaginando que talvez parte daquele material não estivesse ainda à disposição do serviço secreto, pensando na possibilidade de que muitas das coisas que ele achara exageradas demais talvez não o fossem... agora todos os relatórios ganhavam uma nova importância. Alguns deles o deixaram alucinado.

Entregar os relatórios era arriscado demais. Guardá-los, agora, era impossível.

Na quietude da noite, Dunross pensara em destruí-los. Finalmente, concluiu que era seu dever não fazê-lo. Por um momento, pensou em deixá-los abertamente sobre a sua mesa, as portas envidraçadas escancaradas dando para a escuridão do terraço, e ir para a cama dormir. Se Crosse estava tão preocupado com os papéis, então ele e seus homens o estariam vigiando. Trancá-los no cofre não era seguro. Já haviam mexido no cofre uma vez, mexeriam de novo. Nenhum cofre era à prova de um ataque profissional completo e organizado.

Lá, na escuridão, os pés para o alto, confortavelmente, sentira a excitação borbulhando, o calor magnífico, intoxicante, gostoso do perigo a cercá-lo, perigo físico. De inimigos próximos. De estar por um fio, entre a vida e o vácuo. A única coisa que atrapalhava o seu prazer era saber que a Struan estava sendo atraiçoada por gente de dentro, a mesma pergunta sempre a remoê-lo: o espião da Sevrin era o mesmo que entregara os segredos deles para Bartlett? Um dos sete? Alastair, Phillip, Andrew, Jacques, Linbar, David MacStruan, em Toronto, ou o pai dele. Impossível acreditar que fosse qualquer um deles.

Sua mente examinara cada um. Clinicamente, sem paixão. Todos tinham oportunidade, todos o mesmo motivo: inveja e ódio, nos mais variados graus. Mas nenhum deles venderia a Casa Nobre a um estranho. Nem um só deles. No entanto, um deles o tinha feito.

Quem?

As horas se passaram.

Quem? Sevrin. O que fazer com as pastas? Alan fora mesmo assassinado? Quanta coisa existente nos relatórios era verdade?

Quem?

A noite agora estava fresca, e o terraço o atraía. Caminhou sob as estrelas. A brisa e a noite lhe deram boas-vindas. Sempre adorara a noite. Voando sozinho acima das nuvens, à noite, era tão melhor do que de dia, as estrelas tão próximas, os olhos sempre atentos ao bombardeiro ou ao caça inimigo, o polegar a postos no gatilho... Ah, como a vida era simples, então. Matar ou ser morto.

Ficou parado ali, por certo tempo. Depois, descansado, voltou, trancou as pastas no cofre e ficou sentado na grande poltrona que dava para as portas envidraçadas, atento, matutando nas suas opções, escolhendo. Depois, satisfeito, cochilou cerca de uma hora, e acordou, como de costume, pouco antes da aurora.

Seu quarto de vestir dava para o escritório, que ficava ao lado do dormitório principal. Vestira-se informalmente e saíra. A estrada estava desimpedida. Abateu dezesseis segundos do seu recorde. Na cobertura da Struan, tomara banho, barbeara-se e vestira um terno de tropical. Depois dirigira-se ao seu gabinete, no andar inferior. O dia estava muito úmido, e o céu tinha uma aparência curiosa. "Uma tempestade tropical está a caminho", pensara. "Talvez tenhamos sorte e ela não passe por nós, como todas as outras, e traga chuva." Afastou-se das janelas e concentrou-se em dirigir a Casa Nobre.

Tinha que enfrentar uma pilha de telex chegados durante a noite, sobre todo tipo de negociações e empreendimentos, problemas e oportunidades comerciais em toda a colônia, e no exterior. De todos os pontos da bússola. Tão ao norte quanto o Yukon, onde a Struan tinha uma joint venture de prospecção de petróleo, junto com a gigantesca companhia canadense de madeira e mineração, a McLean-Woodley. Cingapura, Malásia, e tão ao sul quanto a Tasmânia, para frutas e minerais a serem transportados para o Japão. A oeste, para a Inglaterra, a leste, para Nova York, os tentáculos da nova Casa Nobre internacional com que Dunross sonhara estavam começando a se estender, ainda fracos, ainda especulativos e sem o sustento que ele sabia ser vital para o seu crescimento.

"Não importa. Logo serão fortes. A transação com a Par-Con fortalecerá nossa teia, Hong Kong será o centro da terra, e nós, o núcleo do centro. Graças a Deus pelo telex e pelos telefones."

— O Sr. Bartlett, por favor.

— Alô?

— Ian Dunross, bom dia. Desculpe incomodá-lo tão cedo. Poderíamos adiar o nosso encontro para as dezoito e trinta?

— Claro. Algum problema?

— Não. Só negócios. Estou com muita coisa acumulada.

— Alguma notícia de John Chen?

— Não, ainda não. Lamento. Avisarei a você logo que houver. Dê lembranças a Casey.

— Darei. Foi uma festa e tanto a de ontem à noite! Sua filha é uma graça!

— Obrigado. Chegarei ao hotel às dezoito e trinta. Naturalmente, Casey está convidada. Até logo mais, então.

Ah, Casey!, pensou.

Casey e Bartlett. Casey e Gornt. Gornt e Wu Quatro Dedos.

Naquele dia cedinho soubera notícias do encontro de Gornt com Wu Quatro Dedos, pelo último. Uma corrente de prazer correu pelo seu corpo ao saber que seu inimigo quase morrera. A Peak Road não era lugar para se perder os freios, pensou.

"Uma pena que o filho da mãe não tenha morrido. Isso me pouparia muita angústia." A seguir, deixou Gornt de lado e pensou de novo em Wu Quatro Dedos.

Juntando o inglês errado do velho marujo e o seu haklo, os dois conseguiam conversar direitinho. Wu lhe contara tudo o que pudera. O comentário de Gornt, aconselhando Wu a sacar seu dinheiro, era surpreendente. E motivo de preocupação. Aquilo, e o artigo de Haply.

"Será que o sacana do Gornt sabe de alguma coisa que não sei?"

Fora até o banco.

— Paul, o que está havendo?

— Com quê?

— Com o Ho-Pak.

— Oh, a corrida? Muito má para a nossa imagem bancária, tenho que admitir. Pobre Richard! Temos quase certeza de que ele tem todas as reservas de que precisa para superar essa crise, mas não sabemos direito a extensão dos seus compromissos. Claro que liguei para ele no momento em que li o artigo ridículo de Haply. Devo dizer-lhe, Ian, que também liguei para Christian Toxe e lhe disse, sem rodeios, que ele devia controlar os seus repórteres, e que era melhor ele cessar e desistir, senão ia ver.

— Contaram-me que havia uma fila no Tsim Sha Tsui.

— É? Dessa não sabia. Vou verificar. Mesmo assim, é certo que os bancos Ching Prosperity e Lo Fat o ajudarão. Meu Deus, ele fez do Ho-Pak uma importante instituição bancária. Se falisse, sabe lá Deus o que aconteceria. Nós mesmos tivemos algumas retiradas em Aberdeen. Não, Ian, vamos torcer para que tudo passe logo. Mudando de assunto, acha que vamos ter chuva? Está estranho, hoje, não é? O noticiário informou que pode estar chegando uma tempestade. Acha que vai chover?

— Não sei. Vamos torcer para que chova. Mas não no sábado!

— Meu Deus, isso mesmo! Se os páreos forem cancelados por causa da chuva, será terrível. Isso não pode acontecer. Oh, a propósito, Ian, a festa de ontem foi linda. Gostei de conhecer Bartlett e a namorada. Como vão indo as suas negociações com Bartlett?

— Muitíssimo bem! Ouça, Paul...

Dunross sorriu consigo mesmo, lembrando-se de como baixara o tom de voz, mesmo estando no escritório de Havergill... O referido escritório, que tinha uma vista que abrangia todo o distrito central, era forrado de livros, e à prova de som.

— Fechei meu negócio. São dois anos, inicialmente. Assinamos os papéis dentro de sete dias. Eles vão entrar com vinte milhões em dinheiro em cada um dos anos, e os anos seguintes poderão ser negociados.

— Parabéns, meu caro. Meus calorosos parabéns! E o pagamento à vista?

— Sete.

— Que maravilha! Isso cobre tudo, direitinho. Vai ser uma maravilha afastar o espectro da Toda do balanço... e com mais um milhão para o Orlin, bem, quem sabe lhe darão mais tempo, depois? Finalmente, você poderá esquecer todos os anos ruins e caminhar para um futuro muito rendoso.

— É.

— Já arranjou fretador para seus navios?

— Não. Mas terei os fretadores a tempo de saldar o nosso empréstimo.

— Notei que suas ações subiram dois pontos.

— Está só começando. Vão dobrar de valor, dentro de trinta dias.

— É. O que o faz pensar assim?

— A alta.

— Hem?

— É o que todos os sinais indicam, Paul. O pessoal está confiante. Nossa transação com a Par-Con vai liderar a alta, que já vem com atraso!

— Isso seria uma maravilha! Quando vai fazer a declaração inicial sobre a Par-Con?

— Na sexta, após o encerramento do expediente da Bolsa.

— Excelente. Concordo inteiramente. Quando chegar a segunda-feira, estará todo mundo embarcando nessa!

— Mas vamos manter o assunto em família, até lá.

— Naturalmente. Ah, você soube que Quillan quase morreu, ontem à noite? Depois da sua festa. Os freios dele falharam, na Peak Road.

— É, eu soube. Devia mesmo ter morrido... isso faria as ações da Segunda Grande Companhia subirem como um foguete, de felicidade!

— Pare com isso, Ian. Uma alta repentina, hem? Acha mesmo que vai haver?

— Sim, o bastante para comprar maciçamente. Que tal um milhão de crédito... para comprar ações da Struan?

— Pessoal... ou para a Casa?

— Pessoal.

— Ficaríamos com as ações?

— É claro.

— E se elas baixarem?

— Não baixarão.

— Mas, e se baixarem, Ian?

— O que você sugere?

— Bem, está tudo em família. Portanto acertemos assim: se estiverem dois pontos abaixo do preço do mercado no fechamento de hoje da Bolsa, podemos vender e debitar as perdas na sua conta?

— Três. A Struan vai dobrar de valor.

— Sei. Nesse meio tempo, fiquemos com dois, até você assinar o negócio com a Par-Con. A Casa já ultrapassou bastante o seu crédito. Fiquemos com dois, certo?

— Está bem.

"Estou seguro com dois", pensou Dunross novamente, tranqüilizando a si mesmo. "Acho eu."

Antes de sair do banco, passara pela sala de Johnjohn. Bruce Johnjohn, segundo vice-gerente, e futuro herdeiro de Havergill, era um sujeito atarracado e suave, com uma vitalidade de colibri. Dunross lhe contara as mesmas notícias. Johnjohn ficara igualmente satisfeito. Mas aconselhara cautela nos projetos de uma alta e, ao contrário de Havergill, ficara preocupadíssirno com a corrida ao Ho-Pak.

— Não estou gostando nada disso, Ian. Não me está cheirando bem.

— É. E quanto ao artigo de Haply?

— Qual! Tudo uma tolice. Não aprontamos esse tipo de coisa. O Blacs? A mesma bobagem. Por que desejaríamos eliminar um importante banco chinês, mesmo que pudéssemos? O Ching Bank pode ser o culpado. Quem sabe? Talvez o velho Ching Sorridente fosse capaz... há anos que ele e Richard são rivais. Podia ser uma combinação de meia dúzia de bancos, incluindo o Ching. Pode até mesmo ser que os depositantes de Richard estejam realmente assustados. Há uns três meses que ouço todo tipo de boato. Eles estão atolados em dúzias de negócios imobiliários dúbios. De qualquer modo, se ele afundar, isso nos afetará a todos. Tenha o máximo cuidado, Ian!

— Ficarei contente quando você estiver lá no andar superior, Bruce.

— Não subestime o Paul... é muito esperto, e tem sido excelente para Hong Kong e o banco. Mas tempos difíceis nos esperam na Ásia, Ian. Acho que você está agindo muito sensatamente, tentando diversificar para a América do Sul... é um mercado imenso, ainda não alcançado por nós. Já pensou na África do Sul?

— Como assim?

— Vamos almoçar juntos na semana que vem. Na quarta? Ótimo. Tenho uma idéia para você.

— É? Qual?

— Dá para esperar, amigão. Soube do que aconteceu com o Gornt?

— Soube.

— Incomum para um Rolls, não é?

— É.

— Ele está certíssimo de que pode tirar a Par-Con de você.

— Mas não vai.

— Viu Phillip, hoje?

— Phillip Chen? Não, por quê?

— Por nada.

— Por quê?

— Encontrei-o no prado. Parecia... bem, estava com uma cara horrível, muito perturbado. Ele está reagindo... está reagindo muito mal ao seqüestro de John.

— Você não sentiria o mesmo?

— Sim, sentiria. Mas nunca imaginei que ele e o Filho Número Um fossem tão unidos.

Dunross pensou em Adryon, em Glenna e no filho Duncan, que tinha quinze anos e estava de férias na fazenda de um amigo que criava ovelhas, na Austrália. "O que eu faria se um deles fosse seqüestrado? O que faria se recebesse pelo correio uma orelha mutilada?

"Ficaria louco.

"Ficaria louco de ódio. Esqueceria tudo o mais e sairia à caça dos seqüestradores, e então, então minha vingança duraria mil anos. Eu..."

Bateram à porta.

— Sim? Oh, alô, Kathy — cumprimentou, feliz como sempre ao ver a irmã mais moça.

— Desculpe interrompê-lo, Ian querido — falou Kathy Gavallan, aos borbotões, da porta da sala —, mas Claudia me disse que você tinha alguns minutos livres antes do próximo compromisso. Posso entrar?

— Claro que pode — disse ele, com uma risada, deixando de lado o memorando em que estava trabalhando.

— Ah, ótimo, obrigada.

Ela fechou a porta e sentou-se na poltrona de espaldar alto que ficava perto da janela.

Ele se espreguiçou para aliviar a dor nas costas e sorriu para ela.

— Ei, gosto do seu chapéu. — Era de palha clara, com uma faixa amarela combinando com o vestido de seda leve. — O que há?

— Estou com esclerose múltipla. Ele a fitou, apalermado.

— O quê?

— Foi o que revelaram os exames. O médico me contou ontem, mas ontem não podia contar a você ou... Hoje ele examinou os testes junto com outro especialista, e não há possibilidade de erro. — A voz dela estava calma, seu rosto calmo, e sentava-se muito ereta na cadeira, mais bonita do que ele jamais a vira. — Precisava contar para alguém. Desculpe ter contado assim, de chofre. Pensei que você poderia me ajudar a fazer um plano, não hoje, mas quando tiver tempo, quem sabe no fim de semana... — Viu a expressão do rosto dele e riu nervosamente. — A coisa não é assim tão ruim. Acho.

Dunross recostou-se na grande poltrona de couro e lutou para pôr sua mente abalada para funcionar.

— Esclerose múl... é barra pesada, não é?

— É, sim. Aparentemente, é uma coisa que ataca o sistema nervoso da gente, e que eles ainda não conseguem curar. Não sabem o que é, ou onde ou como... a gente pega.

— Vamos consultar outros especialistas. Melhor ainda, você vai para a Inglaterra com Penn. Lá haverá especialistas, ou na Europa. Tem que haver alguma forma de cura, Kathy!

— Não há, querido. Mas a Inglaterra é uma boa idéia. Eu... o dr. Tooley disse que gostaria que consultasse um especialista da Harley Street, para fazer o tratamento. Gostaria muito de ir com Penn. A doença ainda não está numa fase muito avançada, e não há com que se preocupar, se eu tomar cuidado.

— Como assim?

— Se eu me cuidar, tomar os remédios que eles mandarem, tirar um cochilo à tarde, para evitar o cansaço, ainda serei capaz de cuidar do Andrew, da casa e das crianças, e jogar um pouco de tênis ou golfe, ocasionalmente. Mas só uma partida, de manhã. Sabe, eles podem deter a moléstia, mas não podem consertar o mal que já está feito. Ele disse que se eu não me cuidar e descansar... o descanso é o mais importante, falou... se eu não descansar, ela vai recomeçar, e cada vez a gente baixa mais um degrau. É. E nunca mais se pode subi-lo de novo. Entendeu, querido?

Ele a fitava, trancando dentro de si a agonia que sentia por ela. O coração dele se retorcia dentro do peito, e ele tinha planos para ela, e pensava: "Oh, Deus, pobre Kathy!"

— Entendi. Bem, graças a Deus que você pode descansar à vontade — falou, mantendo a voz tão calma quanto a dela. — Incomoda-se se eu falar com Tooley?

— Acho que não faz mal. Não há necessidade de ficar alarmado, Ian. Ele disse que eu ficaria bem se me cuidasse, e e eu lhe disse que seria muito obediente, e que quanto a isso não precisava se preocupar.

Kathy se surpreendeu ao notar que sua voz estava calma e que as mãos e os dedos repousavam tranqüilamente em seu colo, sem deixar transparecer o horror que sentia dentro de si. Quase podia sentir os germes, micróbios ou vírus da moléstia infiltrando-se no seu organismo, alimentando-se dos seus nervos, devorando-os muito devagarinho, segundo após segundo, hora após hora, até que houvesse mais formigamento e mais dormência nos dedos das mãos e dos pés, depois nos pulsos, tornozelos e pernas e... "Ah, Deus Todo-Poderoso..."

Pegou um lencinho de papel de dentro da bolsa e enxugou suavemente os lados do nariz e a testa.

— Está um bocado úmido hoje, não é?

— Está. Kathy, por que foi tão repentino?

— Mas não foi, querido. Só que eles não conseguiam diagnosticar o que era. Para isso foi que pediram tantos exames.

A coisa começara com uma leve tontura e dores de cabeça, há uns seis meses. Ela as sentia mais quando estava jogando golfe. Ficava de pé, com a bola à sua frente, firmando-se, mas os olhos ficavam turvos, ela não conseguia focalizá-la, e depois a bola se dividia em duas ou três, depois duas de novo, e não ficava parada. Andrew achara graça, e mandara que fosse ao oculista. Mas não era necessidade de óculos, e aspirina não adiantava, nem comprimidos mais fortes. Então o querido velho Tooley, o eterno médico da família deles, mandara que ela fosse ao Matilda Hospital, no Pico, para exames e mais exames, e exames de cérebro para ver se havia algum tumor, mas eles nada revelaram, assim como todos os demais testes e exames. Apenas a horrível punção na espinha dera uma pista. Outros exames levaram à confirmação. No dia anterior. "Oh, meu Deus, foi mesmo ontem que me condenaram a uma cadeira de rodas, para acabar virando uma coisa impotente?"

— Já contou ao Andrew?

— Não, querido — respondeu, voltando mais uma vez da beira do abismo. — Ainda não contei a ele. Não pude, ainda não. O pobrezinho do Andrew fica perturbado com tanta facilidade! Vou lhe contar logo mais à noite. Não podia contar a ele antes de contar a você. Tinha que contar primeiro a você. Sempre contávamos tudo primeiro a você, não é? Lechie, Scotty e eu? Você sempre sabia em primeiro lugar...

Estava recordando a época em que eram todos jovens, todas as horas felizes ali em Hong Kong e em Ayr, no Castelo Avisyard, em sua antiga, adorável e espaçosa casa, no topo da colina, em meio ao urzal, com vista para o mar... Natal, Páscoa e as longas férias de verão, ela e Ian... e Lechie, o mais velho, e Scott, o irmão gêmeo dela... dias tão felizes quando o pai não estava presente, todos mortos de medo dele, exceto Ian, que era sempre o porta-voz deles, sempre o seu protetor, que sempre recebia os castigos... dormir sem jantar, escrever quinhentas vezes "Não vou mais discutir. As crianças só devem falar com permissão"... que levava todas as surras e não se queixava. Oh, pobres Lechie e Scotty...

— Oh, Ian — falou, as lágrimas vindo à tona, repentinamente —, que tristeza! — E então sentiu os braços dele à sua volta, sentiu-se finalmente segura, e o pesadelo tornou-se mais suave. Mas sabia que nunca acabaria. Nem agora, nem nunca. Nem seus irmãos voltariam, exceto nos seus sonhos, ou o seu querido Johnny. — Tudo bem, Ian — falou, em meio às lágrimas. — Não choro por mim. Verdade. Estava lembrando de Lechie e Scotty, da nossa casa em Ayr quando éramos pequenos, e do meu Johnny, e senti tanta tristeza, por todos eles...

Lechie fora o primeiro a morrer. Segundo-tenente, Infantaria Ligeira da Escócia. Perdera-se na França, em 1940. Nunca se encontrou resto algum dele. Num minuto estava de pé, ao lado da estrada, no seguinte tinha sumido, o ar cheio da fumaça acre do fogo de barragem que os Panzers nazistas haviam aberto sobre a pequena ponte de pedras que cruzava o riacho no caminho para Dunquerque. Durante o resto da guerra, tinham vivido com a esperança de que Lechie estivesse como prisioneiro de guerra num bom campo de concentração... não num daqueles terríveis. E, depois da guerra, os meses de busca, mas sem ter nunca uma pista, uma testemunha, nem o mais ínfimo sinal, e então eles, a família, e finalmente o pai, consagraram o espírito de Lechie ao repouso.

Scotty tinha dezesseis anos em 39, e fora para o Canadá por medida de segurança, para terminar os estudos, e então, já piloto, no dia em que fez dezoito anos, apesar dos uivos de protesto do pai, ingressara na Força Aérea Canadense, querendo vingar-se pelo que acontecera a Lechie. Recebera as asas prontamente, fora engajado em um esquadrão de bombardeiros e voltara bem a tempo para o Dia D. Alegremente, destruíra muitas cidades, grandes e pequenas, até o dia 14 de fevereiro de 1945. Então, líder de esquadrilha, DFC¹, voltando do supremo holocausto de Dresden, seu Lancaster fora atacado de surpresa por um Messerschmitt, e embora o seu co-piloto conseguisse pousar com o avião avariado na Inglaterra, Scotty estava morto no assento esquerdo.

¹ Distinguished Flying Cross, Medalha de Mérito Aeronáutico. (N. da T.)

Kathy comparecera ao enterro, e Ian também... fardado, de licença, vindo de Chungking, onde se ligara à força aérea de Chang Kai-chek, depois que fora abatido e impedido de voar. Ela chorara então no ombro de Ian, chorara por Lechie, chorara por Scotty e chorara pelo seu Johnny. Já era viúva. O capitão-aviador John Selkirk, dfc, outro alegre deus da guerra, inviolado, invencível, explodira nos céus, fora abatido no espaço, os destroços descendo em chamas até o chão.

Johnny não tivera enterro. Não sobrara nada para enterrar. Tal como Lechie. Só veio um telegrama. Um para cada um dos dois.

"Oh, Johnny, meu querido, meu querido, meu querido..."

— Que desperdício terrível, Ian, todos eles. E para quê?

— Não sei, minha pequena Kathy — falou, ainda abraçado a ela. — Não sei. E não sei por que sobrevivi e ele não.

— Ah, mas como estou feliz que tenha sobrevivido! — Ela deu-lhe um breve abraço apertado e se controlou. Deu um jeito de afastar sua tristeza por todos eles. A seguir, enxugou as lágrimas, pegou um espelhinho e se mirou. — Puxa, mas estou um horror! Desculpe.

O banheiro particular dele ficava oculto atrás de uma estante de livros, e ela foi para lá retocar a maquilagem. Quando retornou, ele ainda olhava pela janela.

— Andrew não está no escritório, no momento, mas logo que ele voltar, falarei com ele — disse Ian.

— Ah, não, querido, essa tarefa é minha. Tenho que cumpri-la. Preciso. É minha obrigação. — Sorriu para ele, e tocou-o. — Amo você, Ian.

— Amo você, Kathy.


Загрузка...