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15hO3m

Aleksei Travkin, que treinava os cavalos de corrida da Casa Nobre, subiu o beco movimentado que dava para a Nathan Road, em Kowloon, e entrou no Restaurante Dragão Verde. Usava um pequeno 38 sob o braço esquerdo, e tinha o passo leve para um homem da sua idade.

O restaurante era pequeno, comum e escuro, e não havia toalhas na dúzia de mesas ali existentes. Sentados a uma delas, quatro chineses tomavam ruidosamente sopa de talharim e, quando ele entrou, um garçom entediado junto à caixa registradora ergueu os olhos do programa de corridas e começou a levantar-se, segurando um cardápio. Travkin fez que não com a cabeça e cruzou o arco que levava à parte dos fundos.

A salinha continha quatro mesas. Estava vazia, exceto pela presença de um homem.

— Zdrástvuitie!¹— disse Suslev indolentemente, nas suas roupas leves e bem-talhadas.

¹ “Boa tarde." Em russo no original. (N. do E.)

— Zdrástvuitie — replicou Travkin, seus olhos eslavos estreitando-se ainda mais. Depois, continuou, em russo: — Quem é você?

— Um amigo, Alteza.

— Por favor, não me chame assim, não sou alteza. Quem é você?

— Ainda um amigo. No passado, você foi um príncipe. Quer me fazer companhia? — Suslev indicou cortesmente uma cadeira. Havia uma garrafa de vodca aberta sobre a mesa, e dois copos. — Seu pai, Nikolai Petróvitch, também foi príncipe, como o pai dele, e diversas gerações passadas, príncipe de Kurgan e Tobol.

— Está falando por enigmas, amigo — falou Travkin, aparentemente calmo, e sentou-se diante do outro. O contato do 38 contra seu corpo diminuiu um pouco sua apreensão. — Pelo seu sotaque, é moscovita... e georgiano. Suslev riu.

— Tem bom ouvido, príncipe de Kurgan. É, sou moscovita, mas nasci na Geórgia. Meu nome não importa, mas sou um amigo que...

— Meu, da Rússia ou dos soviéticos?

— Dos três. Vodca? — perguntou Suslev, levantando a garrafa.

— Por que não? — Travkin ficou vendo o outro homem servir os dois copos, depois, sem hesitar, pegou o copo errado, aquele que estava mais longe de si, e ergueu-o. — Saúde!

Sem hesitar, Suslev pegou o outro, fez "tim-tim", esvaziou-o e encheu-o outra vez.

— Saúde!

— É o homem que me escreveu?

— Tenho notícias de sua mulher.

— Não tenho mulher. O que quer de mim, amigo?

O modo como Travkin empregou a palavra era um insulto. Viu o clarão de raiva quando Suslev ergueu os olhos do copo, e se preparou.

— Desculpo sua grosseria por esta vez, Aleksei Ivánovitch — disse Suslev, com dignidade. — Não tem motivo para ser grosseiro comigo. Nenhum. Por acaso o insultei?

— Quem é você?

— O nome de sua mulher é Nestorova Mikail, e o pai dela era o príncipe Anatóli Zergueiev, cujas terras abrangem Karaganda, que não fica muito longe das terras da sua própria família, a leste dos Urais. Ele era um casaque, não era?, um grande príncipe dos casaques, a quem algumas pessoas ainda chamam de cossacos?

Travkin manteve as mãos nodosas imóveis, e a fisionomia impassível, mas não pôde evitar que o sangue lhe fugisse do rosto. Estendeu a mão e serviu mais dois copos, a garrafa ainda cheia pela metade. Sorveu a bebida.

— Boa vodca, não como o mijo aqui de Hong Kong. Onde a conseguiu?

— Em Vladivostok.

— Ah. Estive lá, certa vez. É uma cidade chata e suja, mas a vodca é boa. Bem, qual é o seu nome verdadeiro, e o que quer?

— Conhece bem Ian Dunross? Travkin ficou surpreso.

— Treino os cavalos dele... já há... este é o meu terceiro ano, por quê?

— Gostaria de ver a princesa Nestoro...

— Santo Deus, seja você quem for, já lhe disse que não tenho mulher. Agora, pela última vez, o que quer comigo?

Suslev encheu o seu copo, e a sua voz tornou-se ainda mais bondosa.

— Aleksei Ivánovitch Travkin, sua mulher, a princesa, hoje está com sessenta anos. Mora em Iakutsk, no...

— No Lena? Na Sibéria? — Travkin sentiu que o coração ia explodir. — Em que gulag, seu bosta?

Do outro lado do arco, na outra sala, que agora estava vazia, o garçom ergueu os olhos momentaneamente, depois bocejou e continuou a ler.

— Não é um gulag, por que seria um gulag? — falou Suslev, a voz tornando-se mais dura. — A princesa foi para lá por vontade própria. Mora lá desde que saiu de Kurgan. A...

— Suslev enfiou a mão no bolso, tirando de lá a carteira. — Esta é a sua dacha, em Iakutsk — disse, pousando na mesa uma fotografia. — Creio que pertencia à família dela.

O chalé estava cercado de neve, dentro de uma clareira simpática, as árvores ao fundo, as cercas bem-cuidadas, e era bonito, com a fumaça saindo da chaminé. Uma figurinha encapotada acenava alegremente para a máquina fotográfica... longe demais para que se pudesse ver com clareza o seu rosto.

— E essa é a minha mulher? — perguntou Travkin, a voz áspera.

— É.

— Não acredito!

Suslev mostrou uma fotografia. Um retrato. A senhora era grisalha, na casa dos cinqüenta ou sessenta anos, e, embora os problemas de todo um mundo a tivessem marcado, o rosto dela era ainda elegante, ainda aristocrático. O calor de seu sorriso pareceu chegar a ele, e o arrasou.

— Seu... seu bosta do KGB — disse com voz rouca, certo de tê-la reconhecido. — Seu nojento, seu podre, seu filho da m...

— Por tê-la encontrado? — exclamou Suslev, com raiva.

— Por ter visto que cuidaram dela, deixaram-na em paz, não a incomodaram, nem a mandaram para... para os locais de correção que ela e toda a sua classe mereciam? — Irritado, serviu-se de outra bebida. — Sou russo, e tenho orgulho disso. Você emigrou, você saiu de lá. Meu pai e o pai dele foram propriedade de um dos da sua classe. Meu pai morreu nas barricadas em 1916, e minha mãe... e antes de morrerem já viviam à míngua. Eles... — Deteve-se, com esforço. Depois, falou, num tom de voz diferente: — Concordo que há muito o que perdoar e esquecer, dos dois lados, e tudo isso já passou, mas digo-lhe que nós, soviéticos, não somos todos animais... não todos nós. Não somos como o Béria Sanguinário e aquele arqui-demônio assassino, o Stálin... Não todos. — Apanhou o seu maço de cigarros. — Fuma?

— Não. Você é do KGB ou do gru?

O KGB era o Comitê para Segurança do Estado; o gru era o Diretório de Informações do Estado-Maior. Não era a primeira vez que Travkin era abordado por um deles. Antes, sempre conseguira despistá-los, disfarçado em alguém desinteressante e sem importância. Mas agora estava numa armadilha. Aquele homem sabia demais a seu respeito, verdades demais. "Quem é você, seu filho da mãe? E o que está realmente querendo?", pensou, ao ver Suslev acender um cigarro.

— Sua mulher sabe que está vivo.

— Impossível. Ela está morta. Foi assassinada pelas turbas quando o nosso pala... quando nossa casa em Kurgan foi saqueada, incendiada, destroçada... a mansão mais linda, e a mais desarmada, num raio de quilômetros.

— As massas tinham o direito de...

— Aquele não era o meu povo. Estava sendo guiado por trotskistas importados, que depois assassinaram os meus camponeses aos milhares... até que eles próprios foram todos eliminados por outros da sua própria ralé.

— Talvez sim, talvez não — disse Suslev, friamente. — Mesmo assim, príncipe de Kurgan e Tobol, ela escapou com uma velha criada e fugiu para o leste, pensando que poderia encontrá-lo, que poderia escapar atrás de você, pela Sibéria, para a Manchúria. A criada era natural da Áustria, e se chamava Pavchen.

Os pulmões de Travkin pareciam não ter mais ar.

— Mais mentiras — ouviu-se dizer, sem acreditar mais nas suas palavras, o espírito destroçado pelo lindo sorriso dela. — Minha mulher está morta. Jamais iria tanto para o norte.

— Ah, mas foi. O trem em que fugia foi desviado para o norte. Era outono. As primeiras nevadas já tinham chegado, e então ela resolveu esperar o inverno passar, em Iakutsk. Tinha que esperar... — Suslev pousou outra foto na mesa. — Estava grávida. Este é o seu filho, e a família dele. Foi tirada no ano passado. — O homem era bonito, quarentão, usando a farda de major da força aérea soviética, e sorria constrangido para a câmara, enlaçando com o braço uma bela mulher na casa dos trinta anos, com três crianças felizes, um bebê, uma garota sorridente de seis ou sete anos, com os dentes da frente faltando, e um garoto de dez anos que tentava bancar o sério.

— Sua mulher deu-lhe o nome de Piotr Ivánovitch, como seu avô.

Travkin não tocou na foto. Apenas a fitou, o rosto sem cor. Depois, desviou os olhos dela, com esforço, e serviu-se de uma bebida. A seguir, serviu também uma para Suslev.

— É... é uma reconstrução brilhante — disse, tentando ser convincente. — Brilhante.

— A criancinha se chama Viktoria, a garota é Nichola, como sua avó. O garoto é Aleksei. O major Ivánovitch é piloto de bombardeiro.

Travkin ficou calado. Seus olhos voltaram para a foto da bela senhora idosa. Estava quase chorando, mas ainda controlava a voz.

— Ela sabe que estou vivo, é?

— Sabe.

— Há quanto tempo?

— Três meses. Há uns três meses. Um dos nossos lhe contou.

— Quem são eles?

— Quer vê-la?

— Por que apenas há três meses... por que não um ano, três anos?

— Foi apenas há seis meses que descobrimos quem você é.

— Como fizeram isso?

— Esperava ficar anônimo para sempre?

— Se ela soubesse que estou vivo, se um dos seus lhe contou, ela teria me escrito... É. Eles teriam pedido a ela que o fizesse, se... — A voz de Travkin estava esquisita. Parecia estar fora de si, num pesadelo, enquanto tentava pensar com clareza. — Ela me teria escrito uma carta.

— E escreveu. Eu a darei a você dentro dos próximos dias. Quer vê-la?

Travkin forçou-se a engolir sua agonia. Indicou o retrato da família.

— E... ele também sabe que estou vivo?

— Não. Nenhum deles sabe. Isso não foi sugestão nossa, Aleksei Ivánovitch. Foi idéia da sua mulher. Por medida de segurança... para protegê-lo, pensou. Como se fôssemos nos vingar dos filhos pelos pecados dos pais! Ela passou dois invernos esperando em Iakutsk. A essa altura, a Rússia já estava em paz, e então ela ficou lá. Nessa época, imaginava que você estivesse morto, embora tivesse esperança de que ainda vivesse. O menino cresceu acreditando que você tivesse morrido, e nada sabia a seu respeito. Ainda não sabe. Como pode ver, é motivo de orgulho para vocês dois. Foi primeiro aluno da escola local, depois foi para a universidade, como vão todas as crianças bem-dotadas, hoje em dia... Sabe, Aleksei Ivánovitch, na minha época fui o primeiro de toda a minha província a freqüentar uma universidade, o primeiríssimo, de uma família de camponeses. Hoje em dia somos justos, na Rússia.

— Quantos cadáveres teve que fazer, para se tornar o que é hoje?

— Alguns — disse Suslev, de cara fechada —, todos eles criminosos ou inimigos da Rússia.

— Fale-me a respeito deles.

— Falarei. Algum dia.

— Lutou na última guerra... ou era do comissariado?

— Fui comandante do 16.° Batalhão Blindado, 45.° Exército. Estive em Sebastópol... e em Berlim. Quer ver sua mulher?

— Daria a minha vida, se esta é realmente a minha mulher, e se está viva.

— Está. Posso dar um jeito.

— Onde?

— Em Vladivostok.

— Não. Aqui em Hong Kong.

— Lamento, é impossível.

— Claro. — Travkin soltou uma risada sem humor. — Claro, amigo. Beba! — Serviu o restante da vodca, dividindo-a igualmente. — Saúde!

Suslev fitou-o. Depois, olhou para o retrato da mulher e para a foto do major da força aérea com a família, e apanhou-os, imerso em pensamentos. O silêncio aumentou. Ele cocou a barba. Depois disse, decisivamente:

— Está bem. Aqui em Hong Kong. O coração de Travkin deu um salto.

— Em troca do quê? Suslev apagou o cigarro.

— Informações. E cooperação.

— Como?

— Quero saber tudo o que você sabe sobre o tai-pan da Casa Nobre, tudo o que você fez na China, quem conhece, com quem se encontrou.

— E a cooperação?

— Isso vem depois.

— E, em troca, trará a minha mulher para Hong Kong?

— Trarei.

— Quando?

— Até o Natal.

— Como posso confiar em você?

— Não pode. Mas, se cooperar, ela estará aqui pelo Natal. — Travkin observava as duas fotos com que Suslev brincava, depois notou o olhar dele, e seu estômago se retorceu. — De qualquer maneira, tem que ser sincero comigo. Com ou sem sua mulher, príncipe de Kurgan, ainda temos o seu filho e netos como reféns.

Travkin sorveu sua bebida demoradamente.

— Agora, acredito que você seja o que é. Por onde quer começar?

— Pelo tai-pan. Mas, primeiro, vou dar uma mijada. Suslev se levantou, perguntou ao garçom onde ficava o banheiro, e saiu pela porta da cozinha.

Agora que Travkin estava sozinho, o desespero tomou conta dele. Pegou a foto do chalé que ainda estava sobre a mesa, e olhou para ela. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Afastou-as com a mão, e sentiu a arma sob o ombro. Não o ajudaria, agora. Com toda a sua força interior resolveu ser sensato e não acreditar, mas no fundo do coração sabia que tinha visto a foto dela, e que faria qualquer coisa, arriscaria qualquer coisa para vê-la.

Durante anos tentara evitar os caçadores, sabendo que era sempre perseguido. Fora o líder dos brancos na sua área junto à Ferrovia Transiberiana, e matara muitos vermelhos. Finalmente, cansara-se das matanças e, em 1919, fora para Xangai e um novo lar, até que chegaram os exércitos japoneses. Fugira deles para se unir aos guerrilheiros chineses, abrindo caminho, sempre lutando, para o sul e para o oeste, para Chungking, onde se unira a outros saqueadores, ingleses, franceses, australianos, chineses — qualquer um que pagasse —, até que os japoneses se renderam incondicionalmente, e ele voltara para Xangai, de onde em breve fugiria outra vez. Sempre fugindo, pensou.

"Pelo sangue de Cristo, minha querida, sei que você está morta. Eu sei. Quem me contou viu a turba saquear o nosso palácio, depois cair sobre você...

"Mas, agora?

"Você está mesmo viva?"

Travkin olhou com ódio para a porta da cozinha, sabendo que se sentiria atormentado eternamente, até ter certeza quanto a ela. "Quem é este filho da puta?", pensou. "Como foi que me encontraram?"

Sombriamente, esperou e esperou, e então, num pânico repentino, foi procurá-lo. O banheiro estava vazio. Correu para a rua, mas estava cheia de outras pessoas. O homem desaparecera.

Travkin sentiu um gosto amargo na boca, e ficou doente de apreensão. "Em nome de Deus, o que ele quer com o tai-pan?"


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