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17h10m

Orlanda dirigia o pequeno carro, Bartlett ao seu lado, com o braço apoiado de leve em seus ombros. Tinham acabado de cruzar a garganta, vindos de Aberdeen, e agora, ainda entre nuvens, desciam a montanha em Mid Leveis, em direção à casa dela, no Rose Court. Estavam felizes juntos, cheios de expectativa. Depois do almoço, haviam atravessado para Hong Kong, e ela guiara até Shek-O, na ponta sudeste da ilha, para mostrar-lhe onde alguns dos tai-pans tinham casas de fim de semana. A paisagem era ondulante, o local escassamente povoado, colinas, ravinas, o mar sempre perto, pedras e rochedos íngremes.

De Shek-O haviam continuado pela estrada meridional que se enroscava e retorcia até chegarem a Repulse Bay, onde ela parará no maravilhoso hotel para tomarem chá com bolinhos, na varanda, olhando para o mar. Depois tinham seguido, passando por Deepwater Cove até Discovery Bay, onde ela parará de novo num mirante.

— Olhe ali, Linc, aquele é o Castelo Tok! — O Castelo Tok era uma casa imensa e incongruente que parecia um castelo normando e ficava encarapitada nos rochedos, bem acima da água. — Durante a guerra, os canadenses, soldados canadenses, que defendiam esta parte da ilha contra os invasores japoneses, recuaram até o Castelo Tok, para uma resistência final. Quando foram dominados e se renderam, havia cerca de duzentos e cinqüenta deles ainda vivos. Os japoneses os encurralaram todos no terraço do Castelo Tok e os fizeram saltar, à ponta de uma baioneta, pelo muro do terraço até as pedras Iá embaixo.

— Meu Deus!

A queda era de uns trinta metros, ou mais.

— Todos. Os feridos, os... outros, todos.

Ele notara que ela estremecera, e imediatamente estendera a mão para tocá-la.

— Não ligue, Orlanda, faz muito tempo.

— Não, não, absolutamente. Infelizmente a história e a guerra ainda permanecem conosco, Linc. Sempre permanecerão. À noite os fantasmas caminham por esses terraços.

— Você crê nisso?

— Sim, claro que sim.

Lembrou-se de como olhara para a casa sombria, o mar batendo contra as rochas Iá embaixo, o perfume dela cercando-o enquanto ela se recostava nele, sentindo-lhe o calor, e de como se sentira feliz por estar vivo e não ser um daqueles soldados.

— O seu Castelo Tok parece coisa saída de filme. Já esteve Iá dentro?

— Não. Mas dizem que há armaduras e calabouços, e que é uma cópia de um castelo de verdade na França. O dono era o velho Sir Cha-sen Tok, Tok Construtor. Ele era um multi-milionário que ficou rico com estanho. Dizem que, quando fez cinqüenta anos, um vidente lhe disse que começasse a construir uma "grande mansão", caso contrário morreria. E assim ele começou a construir, e construiu dúzias de casas, todas mansões, três em Hong Kong, uma perto de Sha Tin, e muitas na Malásia. O Castelo Tok foi a última que construiu. Estava com oitenta e nove anos, mas disposto e sadio como um homem de meia-idade. Mas, ao que consta, depois do Castelo Tok ele disse "agora chega", e parou de construir. Dentro de um mês estava morto, e a profecia do vidente se cumpriu.

— Está inventando tudo isso, Orlanda!

— Ah, não, Linc, não inventaria isso! Mas o que é verdade e o que é falso? Quem é que sabe, hem, meu querido?

— Eu sei que sou louco por você.

— Ah, Linc, você deve saber que sinto o mesmo. Tinham continuado o passeio, ultrapassando Aberdeen, sentindo-se bem juntos, a mão dele no ombro dela, o cabelo dela roçando-lhe a mão. De quando em vez ela indicava casas e locais, e as horas tinham passado imperceptível e deliciosamente para ambos. Agora, quando desciam a garganta em meio às nuvens, rompendo-as, podiam ver a maior parte da cidade Iá embaixo. As luzes ainda não tinham sido acesas, embora aqui e ali os imensos e coloridos cartazes a gás neon à beira-mar começassem a se iluminar.

O tráfego estava denso, e nas íngremes estradas das montanhas a água ainda escorria nas sarjetas, com pilhas de lama, pedras e vegetação aqui e ali. Ela guiava com perícia, sem se arriscar, e ele se sentia seguro com ela, embora tivesse ficado arrepiado ao fazer as curvas do lado errado da estrada.

— Mas nós estamos do lado certo — disse ela. — Vocês é que guiam do lado errado!

— Nós, uma ova! São somente os ingleses que guiam do lado esquerdo. Você é tão americana quanto eu, Orlanda.

— Quem me dera eu fosse, Linc, ah, quem me dera!

— Você é. Fala como americana e se veste como americana.

— Ah, mas sei o que sou, meu querido.

Deixou-se ficar apenas apreciando-a. "Jamais gostei tanto de ficar apreciando alguém", pensou. "Nem a Casey. Ninguém em toda a minha vida." Então seu pensamento voltou-se para Biltzmann e teve vontade de estrangular o sujeito.

"Esqueça-se dele, meu velho, junto com toda a merda do mundo. É o que ele é... ele e o Banastasio." Bartlett sentiu uma nova pontada percorrê-lo. Recebera um telefonema pouco antes do almoço, e um pedido de desculpas que era na verdade uma ameaça adicional.

— Vamos fazer as pazes, cara, eu e você? Porra, Linc, é uma merda eu e você aos berros! Que tal irmos comer uns bifes logo mais? Há uma casa de carnes excelente na Nathan Road, a San Francisco.

— Não, obrigado, já tenho um encontro — disse, com frieza. — Além disso, você já foi bem claro, ontem. Vamos deixar assim, está bem? Nós nos veremos na assembléia anual da junta diretora, se você comparecer.

— Ei, Linc, qual é? Sou eu, seu amigão. Lembre-se de que comparecemos com a grana quando você precisou. Não lhe entregamos a grana?

— A grana em troca de ações, que foram o seu melhor investimento... o melhor investimento regular que já teve. Você dobrou seu dinheiro em cinco anos.

— Claro que sim. Agora queremos dar uns palpites. É justo, não é?

— Não. Não depois de ontem. E quanto às armas? — perguntou, seguindo uma intuição repentina.

Fez-se uma pausa.

— Que armas?

— As que foram colocadas no meu avião. Os Ml4 e as granadas contrabandeados.

— Isso para mim é novidade, cara.

— Meu nome é Linc, cara. Sacou? Outra pausa. Então, a voz veio áspera.

— Saquei. E sobre o nosso acordo? Vai mudar de idéia?

— Não. De jeito algum.

— Nem agora, nem mais tarde?

— Não.

Houve um silêncio do outro lado da linha, depois um clique, e ouviu-se um ruído de discar. Prontamente ele ligara para Rosemont.

— Não se preocupe, Linc. O Banastasio é um dos nossos alvos prioritários, e temos um bocado de ajuda por estas partes.

— Alguma novidade sobre as armas?

— Você está limpo. Os figurões daqui de Hong Kong retiraram a retenção que pesava sobre você. Será informado disso oficialmente amanhã.

— Descobriram alguma coisa?

— Não, mas nós, sim. Verificamos o seu hangar em Los Angeles. Um dos vigias noturnos se lembrou de ter visto dois palhaços mexendo no trem de aterrissagem. Não deu importância ao fato até que perguntamos.

— Puxa vida! Pegaram alguém?

— Não. E talvez nem peguemos. Não há problema. Quanto ao Banastasio, logo, logo vai largar do seu pé. Não se preocupe.

Agora, pensando no assunto, Bartlett sentiu-se gelado de novo.

— O que é, querido? — perguntou Orlanda. — O que houve?

-— Nada.

— Conte para mim.

— Só estava pensando que o medo é uma droga, e pode destruir a pessoa, se ela não tomar cuidado.

— Ah, é, eu sei, sei muito bem. — Tirou os olhos da estrada por um segundo, sorriu, hesitante, e colocou a mão no joelho dele. — Mas você é forte, meu querido. Não tem medo de nada.

— Tomara fosse verdade — riu.

— Ah, mas é. Eu sei. — Ela diminuiu a marcha para se desviar de um monte de lama, a estrada agora mais íngreme, a água rodopiando, entrando e saindo das sarjetas. O carro vinha grudado ao paredão alto que protegia a estrada, enquanto ela entrava na Kotewall Road e virava a esquina para chegar ao Rose Court. Quando chegou diante do prédio, ele prendeu a respiração, enquanto ela hesitava um momento. Depois, ultrapassou firmemente o portão e entrou na rampa íngreme que levava à garagem.

— Está na hora do coquetel — falou.

— Ótimo — disse ele, a voz rouca. Não olhou para ela. Quando pararam, ele saltou, foi para o lado dela e abriu a porta.

Ela trancou o carro, e eles se dirigiram para o elevador. Bartlett sentiu a veia latejar no pescoço.

Dois garçons chineses carregando bandejas de canapés entraram junto com eles e perguntaram onde ficava o apartamento das Propriedades Asiáticas.

— Fica no quinto andar — respondeu ela. Depois que os homens saltaram, Bartlett quis saber:

— Os senhorios aqui são as Propriedades Asiáticas?

— São. — Acrescentou: — São também os construtores originais. — Hesitou: — Jason Plumm e Quillan são bons amigos. Quillan ainda é dono da cobertura, embora a tenha alugado depois que rompemos.

Bartlett abraçou-a.

— Que bom que romperam!

— Eu também acho. — O sorriso dela era meigo, e a sua inocência singela o comovia. — Agora acho.

Chegaram ao oitavo andar, e ele notou que os dedos dela tremiam de leve enquanto punha a chave na fechadura.

— Entre, Linc! Chá, café, cerveja ou um coquetel? — Ela tirou os sapatos e ergueu os olhos para ele. O coração dele batia com força, e os seus sentidos esforçaram-se para verificar se o apartamento estava vazio. — Estamos sozinhos — ela falou, com simplicidade.

— Como é que você sabe o que estou pensando? Ela deu de ombros, ligeiramente.

— São só umas coisinhas. Ele enlaçou a cintura dela.

— Orlanda...

— Eu sei, meu querido.

A voz dela estava rouca, e ele sentiu um tremor percorrê-lo. Quando a beijou, os lábios dela corresponderam, a parte inferior do seu corpo macia e sem oferecer resistência. As mãos dele percorreram-lhe o corpo. Ele sentiu que os mamilos dela endureciam, e que o bater do seu coração igualava o dele. Depois as mãos dela deixaram o pescoço dele e lhe tocaram o peito, mas desta vez ele a segurou apertado, o seu beijo mais urgente. A pressão das mãos dela cessou, e mais uma vez ela lhe envolveu o pescoço, apertando mais contra ele a parte genital. Eles interromperam o beijo, mas continuaram agarrados.

— Eu o amo, Linc.

— Eu a amo, Orlanda — replicou ele, e a súbita constatação da verdade o consumiu.

Beijaram-se de novo, as mãos dela carinhosas e fortes, as dele percorrendo-lhe o corpo, ardentes. Ardentes, ele e ela. Quando seus joelhos amoleceram, ela deixou pender o corpo nos braços dele, e ele a carregou com facilidade pela porta aberta que levava ao quarto. As cortinas transparentes que pendiam do teto para formar o dossel moviam-se suavemente à brisa fresca e suave que entrava pelas janelas abertas.

O acolchoado era macio, cheio de penas.

— Seja meigo comigo, meu querido — murmurou ela, roucamente. — Ah, como eu o amo!

Da popa do Sea Witch Casey acenou um adeus para Dunstan Barre, Plumm e Pugmire, que estavam no cais, do lado de Hong Kong, onde haviam acabado de ser desembarcados, o final da tarde agradável, mas ainda nublado. O barco cruzava a baía de novo — Peter Marlowe e as garotas já tinham sido deixados em Kowloon —, pois Gornt a persuadira a ficar a bordo para a viagem extra.

— Tenho que voltar de novo para Kowloon — dissera ele. — Tenho um compromisso no Nove Dragões. Quer me fazer companhia, por favor?

— E por que não? — ela concordara feliz, sem pressa, ainda com tempo de sobra para mudar de roupa para o coquetel para o qual Plumm a convidara à tarde. Resolvera adiar o seu jantar com Lando Mata para um dia qualquer da semana seguinte.

No caminho de volta de Sha Tin, à tarde, ela cochilara parte do tempo, enrolada num cobertor por causa da brisa fria, enroscada nas poltronas amplas e confortáveis que rodeavam a popa, os outros convidados dispersos, às vezes Gornt ali ao leme, alto, forte e senhor do seu barco, Peter Marlowe cochilando sozinho numa espreguiçadeira da proa. Mais tarde tomaram chá com bolinhos, ele, Casey e Barre. Durante o chá, Pugmire e Plumm haviam aparecido, descabelados e satisfeitos, com as garotas a tiracolo.

— Dormiram bem? — perguntara Gornt, com um sorriso.

— Muito — respondera Plumm.

"Acredito", pensara ela, observando-o, e à sua garota, gostando dela... olhos grandes e escuros, esguia, uma pessoa feliz chamada Wei-wei, que se grudava a ele como uma sombra.

Pouco antes, quando ela e Gornt tinham ficado sozinhos no tombadilho, ele lhe contara que nenhuma daquelas garotas era uma amiguinha casual, eram todas especiais.

— Todo mundo aqui tem uma amante?

— Santo Deus, não. Mas, bem, desculpe, os homens e as mulheres envelhecem de modo diferente, e depois de certa idade fica difícil. Para falar com franqueza, ir para a cama, amor e casamento não são a mesma coisa.

— Não existe fidelidade?

— Mas claro, sem dúvida. Para a mulher significa uma coisa, para o homem outra.

Casey soltara um suspiro.

— Que terrível! Terrível e injusto.

— É. Mas apenas se se quer que seja.

— Isso não é direito! Pense nos milhões de mulheres que trabalham e se escravizam a vida toda, cuidando do homem, esfregando e limpando, e hoje em dia até ajudando a sustentar os filhos, para serem jogadas de lado quando forem velhas.

— Não se pode culpar os homens, é assim que a sociedade é.

— E quem dirige a sociedade? Os homens! Pombas, Quillan, você tem que admitir que os homens são os responsáveis!

— Já concordei que é injusto, mas também é injusto para os homens. E quanto aos milhões de homens que se matam de trabalhar para prover... que palavrinha infeliz!... para prover o dinheiro para os outros gastarem, especialmente as mulheres? Enfrente a realidade, Ciranoush, os homens têm que continuar trabalhando até morrer, para sustentar os outros, e mais do que freqüentemente, no final das suas vidas, uma mulher irritante, uma megera... olhe só para a mulher do Pug, pelo amor de Deus! Eu poderia lhe indicar cinqüenta que são desnecessariamente gordas, feias e fedem... literalmente. E ainda há aquele outro simpático truquezinho feminino das mulheres, que usam o seu sexo para prender os homens numa armadilha, para ficarem grávidas e os agarrarem, depois se queixarem de tudo e exigirem um divórcio altamente compensador. E quanto ao Linc Bartlett, hem? Que espécie de "sua-douro" lhe deu aquela sua mulher maravilhosa, hem?

— Sabia disso?

— Claro. Vocês verificaram a minha ficha, eu verifiquei a de vocês dois. As suas leis de divórcio são justas? Cinqüenta por cento de tudo, e depois o pobre coitado do homem americano ainda tem que ir aos tribunais para decidir qual a proporção dos seus cinqüenta por cento que pode manter.

— É verdade que a mulher de Linc e o advogado quase o deixaram na rua da amargura. Mas nem toda mulher é assim. Mas, meu Deus, não somos bens móveis, e a maioria das mulheres precisa de proteção. As mulheres em todo o mundo ainda acabam sempre ficando na pior.

— Nunca conheci uma mulher de verdade que acabasse ficando na pior — dissera ele. — Estou me referindo a mulheres como você e Orlanda, que entendem o que é a feminilidade. — De repente, ele abrira um amplo sorriso. — Claro que, pelo caminho, ela tem que nos dar a nós, filhos da mãe fracos, o que queremos para nos manter saudáveis.

Ela rira junto com ele, também querendo deixar de lado aquele assunto... difícil demais de ser solucionado naquele momento.

— Ah, Quillan, você é mesmo um dos que não prestam!

— Sou?

— É.

Ele se virará para perscrutar o céu à frente. Ela o observava, e ele lhe parecera tão alinhado, ali de pé, oscilando de leve, o vento eriçando os pêlos dos seus antebraços fortes, o quepe de capitão num ângulo atrevido. "Que bom que ele confia em mim e me considera uma mulher", pensara, embalada pelo vinho, pela comida e pelo desejo dele. Desde que subira a bordo ela o sentira fortemente, e se perguntava de novo como lidaria com ele quando se manifestasse, o que inevitavelmente aconteceria. Seria sim ou não? Ou talvez? Ou talvez na semana que vem?

Haveria uma semana que vem?

— O que vai acontecer amanhã, Quillan? Na Bolsa de Valores?

— O amanhã pode cuidar do amanhã — dissera ele, o vento a fustigá-lo.

— Fala a sério?

— Ganharei ou não ganharei. — Gornt dera de ombros. — De qualquer maneira, estou coberto. Amanhã eu compro. Com sorte, eu o deixo na pior.

— E depois?

Ele dera uma risada.

— Tem alguma dúvida? Arranco o couro dele, e a tribuna no hipódromo.

— Ah, você realmente deseja isso, não é?

— Ah, sim! Ah, sim! Isso representa a vitória. Ele e os antepassados dele excluíram a mim e aos meus. Claro que quero isso.

"Será que eu poderia fazer um acordo com o Ian?", pensou distraidamente. "Será que conseguiria que o tai-pan permitisse que Quillan tivesse a sua própria tribuna, e o ajudasse a se tornar um administrador? É uma loucura esses dois viverem às turras... há lugar de sobra para ambos. O Ian me deve um favor, se o Murtagh conseguir o acordo."

O coração dela se agitara, e ela ficara imaginando o que teria acontecido com Murtagh e o banco e, se a resposta fosse sim, o que Quillan faria.

"E onde anda o Linc? Estará com a Orlanda, nos braços dela, passando a tarde?"

Enroscara-se de novo na popa e fechara os olhos. O ar salgado, o ronco dos motores e o balanço do mar a tinham feito dormir. O sono dela foi sem sonhos, como se estivesse no útero, e dali a alguns minutos acordou, recuperada. Gornt agora estava sentado diante dela, observando-a. Estavam sozinhos de novo, o capitão cantonense ao leme.

— Tem um belo rosto quando dorme — disse ele.

— Obrigada. — Ela se mexeu e se apoiou num dos cotovelos. — Você é um homem estranho. Parte demônio, parte príncipe, compassivo num minuto, implacável no seguinte. Foi uma coisa maravilhosa o que fez pelo Peter. — Ele apenas sorriu e esperou, os olhos estranha e agradavelmente desafiadores. — O Linc... acho que o Linc está gamado pela Orlanda — disse ela sem pensar, e viu uma sombra passar pelo seu rosto.

— É?

— É. — Ela esperou, mas ele ficou calado, apenas observando-a. Espicaçada pelo silêncio, ela acrescentou, involuntariamente: — Acho que ela está gamada por ele. — Novo e longo silêncio. — Quillan, isso faz parte de um plano?

Ele riu baixinho, e ela sentiu o domínio dele.

— Ah, Ciranoush, você é que é estranha. Eu não...

— Não quer me chamar de Casey? Por favor? Ciranoush não soa bem.

— Mas eu não gosto de Casey. Posso usar o Kamalian?

— Casey.

— E que tal Ciranoush hoje, Casey amanhã, Kamalian no jantar de terça-feira? É quando fechamos o negócio. Certo?

Ela fechou a guarda, quase sem sentir.

— Isso depende do Linc.

— Você não é tai-pan da Par-Con?

— Não, não, isso eu jamais serei. Ele riu. Depois, falou:

— Então que seja Ciranoush hoje, Casey amanhã, e para o diabo com a terça-feira!

— Está certo! — concordou ela, encantada com ele.

— Ótimo. Agora, quanto à Orlanda e ao Linc — disse, a voz meiga —, é problema deles, e nunca comento os casos de uns com outros, mesmo com uma senhora. Nunca. Isso não é jogar corretamente. Se está perguntando se bolei alguma trama diabólica, usando Orlanda contra o Linc ou você e a Par-Con, isso é ridículo. — Novo sorriso. — Sempre notei que as senhoras é que manipulam os homens, e não o contrário.

— Essa é boa!

— Uma pergunta merece outra: você e o Linc são amantes?

— Não. Não no sentido convencional, mas é verdade que o amo.

— Ah, então vão se casar?

— Talvez. — Novamente ela mudou de posição, e viu que seus olhos a percorriam. Ela puxou o cobertor mais para junto do corpo, o coração batendo agradavelmente, muito côns-CIA da presença dele, como sabia que ele estava cônscio da presença dela. — Mas não comento meus casos com outro homem — disse, com um sorriso. — Isso também não é jogar corretamente.

Gornt estendeu a mão e tocou-a de leve.

— Concordo, Ciranoush.

O Sea Witch saiu do quebra-mar e entrou nas ondas do porto, com Kowloon logo adiante. Ela sentou-se ereta para apreciar a ilha e o Pico, quase todo envolto em nuvens.

— Como é bonito!

— A costa sul de Hong Kong é linda perto de Shek-O, Repulse Bay. Tenho uma casa em Shek-O. Gostaria agora de ver o resto do barco?

— Sim, gostaria.

Ele a levou primeiro para a proa. Os camarotes estavam arrumados, sem dar sinal de terem sido usados. Cada um deles tinha um chuveiro e uma privada. Uma pequena cabine geral servia a todos.

— Somos muito populares com as damas, no momento, porque elas podem tomar as suas chuveiradas à vontade. A escassez de água tem as suas vantagens.

— Claro — disse ela, acompanhando a jovialidade dele. Na popa, separado do resto do barco, ficava o camarote principal. Uma cama de casal grande. Arrumada, jeitosa, convidativa.

O coração dela agora batia alto nos seus ouvidos, e quando ele fechou a porta do camarote com naturalidade e colocou a mão na cintura dela, Casey não recuou. Ele se aproximou mais. Ela nunca tinha beijado um homem de barba antes. O corpo de Gornt era duro de encontro ao dela, gostoso. O ritmo da respiração dela aumentou, os lábios dele firmes, com gosto de charuto. Parte dela sussurrava: "Solte-se, solte-se", e parte dizia: "Não, não se solte", e toda ela se sentia sensual nos braços dele. Era bom demais.

"E quanto ao Linc?"

A pergunta atacou a mente dela como nunca antes. De estalo, sua mente se desanuviou, e, empolgada com a sensualidade dele, ela soube pela primeira vez, com absoluta certeza, que era o Linc que queria, não a Par-Con ou o poder, se tivesse que escolher. "Ê, é o Linc, apenas o Linc, e hoje à noite vou cancelar o nosso acordo. Hoje à noite vou propor cancelá-lo."

— Agora não é a hora — sussurrou, a voz rouca.

— O quê?

— Não, não agora. Não podemos, desculpe. — Esticou-se e o beijou de leve nos lábios, falando em meio aos beijos. — Agora não, meu caro, desculpe, mas não podemos, não agora. Terça-feira, quem sabe na terça-feira...

Ele a afastou de junto de si, e ela viu que seus olhos escuros a perscrutavam. Sustentou o olhar dele o quanto pôde, depois enterrou a cabeça no peito dele e o abraçou carinhosamente, ainda desfrutando a proximidade, certa de que agora estava segura. "Puxa, escapei por pouco", pensou debilmente, os joelhos estranhos, todo o seu corpo pulsando. "Quase me entreguei, desta vez, e isso não teria sido bom para mim, para Linc ou para ele.

"Teria sido bom para ele", pensou, de modo estranho.

Seu coração batia forte enquanto ela repousava de encontro a ele, esperando, recuperando-se, certa de que, dali a um momento, com carinho e meiguice, e a promessa da semana seguinte, ele diria: "Vamos voltar para o convés".

Então, subitamente, ela sentiu os braços dele apertarem-se à sua volta, e antes que se desse conta do que estava acontecendo, estava na cama, os beijos dele fortes e as mãos errantes. Ela começou a se debater, mas ele segurou as mãos dela com perícia, esticou-a com a sua grande força e deitou-se sobre ela, a parte inferior do seu corpo prendendo-a e tornando-a indefesa. Beijou-a ao seu bel-prazer, e a paixão dele e a excitação dela misturaram-se à fúria, ao medo e ao desejo dela. Por mais que ela se debatesse, não conseguia se mexer.

O calor aumentou. Dali a um momento, ele mudou de posição. Imediatamente ela se lançou ao ataque, agora querendo mais, embora estivesse preparada para lutar seriamente. Novamente, ele voltou a prender as mãos dela. Ela sentiu-se completamente envolvida, desejando ser dominada, não desejando, a paixão dele forte, seu sexo duro, a cama macia. E então, do mesmo modo abrupto como começara, ele a soltou e rolou para o lado, com uma risada.

— Vamos beber alguma coisa! — disse ele, sem rancor. Ela lutava para recobrar o fôlego.

— Seu filho da mãe!

— Que nada, sou um filho muito legítimo. — Gornt apoiou-se num cotovelo, enrugando os olhos num sorriso. — Mas você, Ciranoush, é uma mentirosa.

— Vá pro inferno!

A voz dele era calma, e cordialmente implicante.

— Irei, no devido tempo. Longe de mim pedir a uma dama que prove uma coisa dessas.

Ela se lançou sobre ele, procurando unhar-lhe o rosto, furiosa por ele estar tão controlado quando ela não estava. Ele segurou as mãos dela com facilidade e prendeu-a.

— Calma, calma, gatinha — falou, afavelmente. — Acalme-se, Ciranoush. Lembre-se, somos maiores de idade. Já a vi quase despida, e, se quisesse mesmo violentá-la, temo que você estaria perdida desde o começo. Poderia gritar até ficar rouca que a minha tripulação não escutaria nada.

— Você é um nojento maldi...

— Pare! — Gornt manteve o sorriso, mas ela parou, pressentindo o perigo. — A brincadeira foi só para divertir, não para assustar — disse ele, suavemente. — Só uma gozação, nada mais. Juro.

Ele a soltou, e ela saiu apressadamente da cama, ainda respirando pesadamente.

Cheia de raiva, foi até o espelho e ajeitou o cabelo; então viu-o pelo espelho, ainda deitado com naturalidade na cama, observando-a, e virou-se com violência.

— Seu filho da mãe de olhos negros!

Gornt soltou uma imensa gargalhada, contagiante, de sacudir a barriga, e de repente, notando a tolice de tudo aquilo, ela também começou a rir. Dali a um momento, os dois riam a valer, ele estirado na cama, Casey apoiada na cômoda.

No tombadilho, como bons amigos, tomaram um pouco do champanha que já estava aberto num balde de prata. O taifeiro silencioso e gentil serviu-os e depois se retirou.

Ao chegarem no desembarcadouro, em Kowloon, ela o beijou de novo.

— Obrigada por uma tarde muito agradável. Terça-feira, se não antes!

Foi para terra e ficou dando adeus para o barco por muito tempo. Depois, foi para casa.

Wu Óculos também estava indo para casa. Sentia-se cansado, ansioso, com muito medo. O caminho de subida por entre o labirinto de choças e barracos na área de recolonização bem acima de Aberdeen era difícil, escorregadio e perigoso, lama e sujeira por toda parte, e ele respirava com dificuldade devido à subida. O bueiro de concreto transbordara muitas vezes, espalhando os detritos em muitos lugares, a inundação afastando estruturas de lugar e criando mais confusão. A fumaça pairava sobre muitas das moradias destroçadas, algumas ainda ardendo dos incêndios que se haviam espalhado com rapidez quando os deslizamentos tinham começado. Ele se desviou do buraco profundo onde a Quinta Sobrinha quase perecera na antevéspera, cerca de mais uma centena de choças destruídas por novos deslizamentos na mesma área.

A loja de doces sumira, e a velha junto com ela.

— Onde está ela? — perguntou.

O homem deu de ombros e continuou a vasculhar os escombros, procurando boa madeira, bons pedaços de papelão ou ferro corrugado.

— Como está a coisa Iá em cima? — perguntou.

— Como Iá embaixo — disse o homem num cantonense hesitante. — Uns bons, outros ruins. Joss.

Wu agradeceu. Estava descalço, carregando os sapatos para protegê-los. Saiu de perto dos bueiros e foi abrindo caminho por cima dos escombros para descobrir a trilha que subia. De onde estava não conseguia enxergar a sua área, embora lhe parecesse que não havia deslizamentos por Iá. Armstrong permitira que ele viesse para casa para verificar as coisas, quando o noticiário anunciara novos deslizamentos fortes naquela parte da área de recolonização.

— Mas volte o mais depressa que puder. Temos outro interrogatório marcado para as sete horas.

— Oh, sim, voltarei — falou em voz alta.

As sessões haviam sido muito cansativas, mas boas para ele, com muitos elogios por parte de Armstrong e do chefe do sei, seu lugar agora assegurado, a transferência e o treinamento a começar na semana seguinte. Dormira muito pouco, em parte porque as horas das sessões não tinham relação com o dia ou a noite, em parte pela sua ânsia de êxito. O cliente passava do inglês para o dialeto de Ning-tok, para o cantonense e de volta para o inglês, e fora difícil acompanhar todas as suas divagações. Apenas quando os seus dedos tinham tocado o maço de notas incomum e maravilhoso no bolso, seus ganhos nas corridas, é que uma leveza tomara conta dele e o fizera atravessar as horas difíceis. Novamente ele as tocou, para se reconfortar, abençoando a sua sorte enquanto subia a trilha estreita, que às vezes servia de ponte desconjuntada sobre pequenas ravinas, sempre subindo. Gente passava por ele, descendo, outras pessoas o acompanhavam subindo, o barulho de martelos, reconstrução, recolocação de telhados ecoando pelas encostas.

A área dele ficava menos de cem metros adiante, dobrando a esquina, e ele a dobrou e parou. Sua área não existia mais, era só uma funda cicatriz na terra, a avalancha empilhada de lama e entulho sessenta metros abaixo. Nenhuma habitação, onde antes houvera centenas.

Atordoado, ele subiu, desviando-se do deslizamento traiçoeiro, e foi até a choça mais próxima, batendo à porta. Uma velha abriu-a, desconfiada.

— Com licença, Honrada Senhora, sou o filho de Wu Cho-tam, de Ning-tok...

A mulher, Yang Um Dente Só, fitou-o com ar inexpressivo, depois começou a falar, mas Wu não entendia o seu idioma. Por isso, agradeceu-lhe e afastou-se, lembrando-se de que aquela era uma das áreas ocupadas pelos Yangs, alguns dos estrangeiros nortistas que vinham de Xangai.

Mais perto do topo do deslizamento, ele bateu a outra porta.

— Com licença, Honrado Senhor, mas o que aconteceu? Sou o filho de Wu Cho-tam, de Ning-tok, e minha família estava ali — falou, apontando para a fenda.

— Aconteceu durante a noite, Honrado Wu — disse o homem, falando um dialeto cantonense que ele podia entender.

— Foi como o ruído do velho trem expresso de Cantão, depois um rugido da terra, depois gritos. Então começaram alguns incêndios. Aconteceu a mesma coisa no ano passado, logo ali. Ah, é, os incêndios começaram rapidamente, mas foram logo apagados pela chuva. Dew neh loh moh, mas a noite foi muito ruim. — O vizinho era um velho desdentado, e sua boca se abriu numa careta. — Graças a todos os deuses você não estava dormindo ali, heya? — disse, fechando a porta.

Wu voltou a olhar para a fenda, depois foi descendo a colina. Finalmente, encontrou um ancião da sua área, que também era de Ning-tok.

— Ah, Wu Óculos, Policial Wu! Vários membros da sua família estão ali. — Seu dedo nodoso apontou para cima.

— Ali, na casa do seu primo, Wu Wam-pak.

— Quantos se perderam, Honorável Senhor?

— Fodam-se todos os desabamentos de terra, como vou saber? Eu Iá sou o guardião da encosta? Há dúzias de desaparecidos.

Wu Óculos lhe agradeceu. Quando encontrou a choça, o Nono Tio estava Iá, a Avó, a mulher do Sexto Tio e seus quatro filhos, a mulher e o bebê do Terceiro Tio. O Quinto Tio estava com o braço quebrado, numa tipóia improvisada.

— E o resto de nós? — perguntou. Faltavam sete.

— Na terra — falou a Avó. — Tome chá, Wu Óculos.

— Obrigado, Honrada Avó. E o Avô?

— Foi para o Vácuo antes do desabamento. Foi para o Vácuo durante a noite, antes do desabamento.

— Joss. E a Quinta Sobrinha?

— Sumiu. Desapareceu, em algum lugar.

— Será que ainda pode estar viva?

— Talvez. O Sexto Tio está agora procurando por ela, Iá embaixo, com os outros, embora seja uma boca inútil. Mas e quanto aos meus filhos, e os filhos deles, e os deles?

— Joss — disse Wu com tristeza, sem amaldiçoar ou abençoar os deuses. Deuses cometem erros. — Vamos queimar incenso por eles, para que renasçam em segurança, se houver um renascimento. Joss. — Sentou-se num caixote quebrado. — Nono Tio, nossa fábrica, a fábrica ficou danificada?

— Não, graças aos deuses. — O homem estava entorpecido. Perdera a mulher e três filhos, saindo nem sabia como de dentro do mar de lama que os engolira a todos. — A fábrica não foi danificada.

— Bom. — Todos os papéis e material de pesquisa para o Lutador pela Liberdade estavam Iá... juntamente com a velha máquina de escrever e uma antiqüíssima copiadora Ges-tetner. — Muito bem. Agora, Quinto Tio, amanhã o senhor comprará uma máquina de fazer plástico. De agora em diante, faremos as nossas próprias flores. O Sexto Tio o ajudará, e recomeçaremos.

O homem cuspiu, enojado.

— E como vamos pagar, hem? Como vamos começar? Como... — Parou e ficou olhando fixo para ele. Todos soltaram exclamações abafadas. Wu Óculos tirara do bolso o maço de notas. — Ayeeyah, Honrado Irmão Mais Moço, estou vendo que finalmente teve a sabedoria de unir-se ao Cobra!

— Mas quanta sabedoria! — ecoaram os outros, orgulhosamente. — Que todos os deuses abençoem o Irmão Mais Moço!

O rapaz ficou calado. Sabia que não acreditariam nele se contasse a verdade. Portanto, deixou que acreditassem no que quisessem.

— Amanhã comecem a procurar uma boa máquina de segunda mão. Podemos pagar apenas novecentos dólares — disse ao homem mais velho, sabendo que tinha mil e quinhentos disponíveis, se fosse preciso.

Depois, saiu da choça e combinou com o primo, dono dela, alugar-lhe um canto até que pudessem reconstruir, discutindo o preço até chegarem a um acordo. Satisfeito de haver feito o que podia pelo clã dos Wus, deixou-os e desceu o morro de volta ao quartel-general, o coração chorando, toda a sua alma desejando gritar com os deuses pela sua injustiça, ou descuido, por terem levado tantos deles, por terem levado a Quinta Sobrinha, cuja vida fora devolvida havia um ou dois dias noutro desabamento.

"Não seja idiota", ordenou a si mesmo. "Joss é joss. Você tem dinheiro no bolso, um vasto futuro no sei, o Lutador pela Liberdade para fazer, e a hora da morte depende dos deuses.

"Pobrezinha da Quinta Sobrinha. Tão bonitinha, tão meiga!"

— Os deuses são os deuses — murmurou, cansado, lembrando as últimas palavras que recordava tê-la ouvido dizer. Em seguida, tirou-a da cabeça.


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