CARLO

É preciso mexer o sorvete com um garfo enquanto gela, para suavizar os cristais e soltar o gelo.

O Livro dos Gelos


Alguns dias mais tarde, dei por mim a caminhar pelo jardim de rosas, imerso em pensamentos. Estava a pensar na competição do rei e no que havia de inventar para ela, mas estava também a pensar no meu futuro.

Parecia que a minha sociedade com Audiger, que há já algum tempo se havia tornado complicada, ia finalmente transformar-se em rivalidade, com a presidência da corporação em jogo. Tinha pena – se Audiger não me tivesse salvado da corte dos Médicis, quem sabe quanto tempo teria lá ficado – mas ninguém pode ser grato para sempre. E, para ser honesto, eu estava chocado por o francês achar que me conseguiria vencer na criação de um gelo. Sempre partira do princípio – não, sempre soubera – que, em relação a esta parte do nosso trabalho, a minha supremacia era evidente.

As palavras de Luís para o inglês tinham indicado que só via necessidade de ter um fazedor de gelados: tinha simplesmente de me certificar de que seria eu. Não havia alternativa. Era imperioso que vencesse essa competição e que Audiger cedesse perante mim.

Havia um sítio para onde ia, às vezes, quando queria estar sozinho, quando queria escapar à maré constante de pessoas na corte: um pequeno bosque de nespereiras onde os ramos baixos formavam uma espécie de banco escondido. Foi para aí que dirigi os meus passos mas, quando lá cheguei, descobri que, afinal de contas, não estava sozinho. Estava uma mulher sentada, a ler, precisamente no lugar onde eu tencionava sentar-me.

Só quando me aproximei mais percebi quem era. Era a rapariga de olhos verdes, a que provara o meu gelo. Fiquei contente: não esperara ter oportunidade de falar com ela tão cedo.

Madame – disse, com uma vénia –, bom-dia.

Mademoiselle – corrigiu-me ela, erguendo brevemente os olhos. – O meu nome é mademoiselle Louise de Keroualle.

– As minhas desculpas, mademoiselle. E eu sou…

– O Grande Demirco, fazedor de gelos – interrompeu ela laconicamente. – Sim, eu sei.

Curvei-me de novo e esperei que dissesse mais qualquer coisa, mas ela já voltara à sua leitura.

– Devia agradecer-lhe, mademoiselle, por ter provado o meu gelo no outro dia – disse, por fim. – Se não o tivesse feito, estou certo de que aquele médico idiota teria persuadido o rei a não o comer.

– Bom, ainda não sofri nenhum ataque – disse ela. Virou outra página. – Embora a sua confecção tivesse de facto alguns efeitos secundários indesejáveis.

– Como assim?

– Apenas o facto de toda a corte não falar de outra coisa senão de gelos desde então. Tem sido praticamente impossível fazer seja o que for. Tive de vir para aqui para fugir de si e ler o meu livro em paz. No entanto, aqui está o senhor, em pessoa.

Tudo isto foi dito em tom muito casual e, por um momento, perguntei-me se a minha presença seria realmente assim tão indesejável para ela. Mas depois lembrei-me da avidez com que devorara o meu gelo de morango e resolvi continuar.

– E o que faz aqui na corte, mademoiselle? Não é geralmente um sítio onde as pessoas leiam livros.

– Se tem mesmo de saber, estou à espera – disse ela, após uma breve pausa.

– De quem?

– Do meu marido.

– E já está à espera há muito tempo?

– Mais ou menos três anos. Sabe, é que não tenho marido.

Ligeiramente confuso com esta contradição, disse:

– Seria de pensar que uma jovem tão bela não teria falta de pretendentes.

Ela não reagiu a este dito espirituoso de nenhuma das duas formas que eu esperava; quer isto dizer que não corou, como eu esperaria que ela fizesse se lhe agradasse o meu interesse; mas também não ergueu o nariz, como poderia fazer para mostrar que não estava receptiva. Em vez disso, limitou-se a suspirar, como se esta fosse uma conversa que já tivera muitas vezes antes.

– Tenciona namoriscar comigo? Por favor, não o faça, signor Demirco. Não lhe disseram? Sou demasiado pobre para ser digna de tais atenções.

– O que quer dizer?

– Apenas que ninguém disse aos meus pais que o preço de um bom marido nos dias que correm é…oh, quase uma dúzia de belos vestidos, uma casa na cidade e uma casa no campo, todas as contas regularizadas com os comerciantes e todas as dívidas de jogo pagas a tempo e horas. – Falou em tom ligeiro mas pareceu-me que havia agora um brilho de fúria nos seus olhos. – Assim, hipotecaram as poucas terras que lhes restavam e compraram à filha mais velha um lugar na corte, na esperança de que a excelência do seu espírito fizesse com que algum cortesão abastado esquecesse a pobreza da sua família, e nem se aperceberam do erro que estavam a cometer.

– Lamento muito.

– Não tenha pena de mim, signor. Seja como for, o meu tempo aqui não foi, de forma alguma, desperdiçado. Enquanto estou à espera, posso ser dama de companhia de madame Henrietta.

Sem ter a certeza de que se tratava de mais ironia, não respondi.

– Oh, Madame é uma pessoa fantástica – disse ela com súbita paixão. – Não é uma dessas belezas da corte afectadas, que se dão por felizes em passar os dias a bordar almofadas e a combinar encontros amorosos. – Fechara o livro, apesar de ter deixado o polegar a marcar a página. Olhei para baixo e tive outra surpresa: não era um romance que ela estava a ler, mas sim Os Princípios da Filosofia de Descartes. – Ela está a trabalhar por um grande prémio diplomático… uma aliança entre o seu irmão, o rei de Inglaterra, e o seu… – Hesitou. – O seu protector, o rei de França. Como pôde testemunhar por si próprio ontem.

Abanei a cabeça.

– Vi apenas alguns cortesãos sem fazer nada, um jogo de paille maille e algumas danças.

– A dança é diplomacia, nesta corte. E atirar poeira para os olhos dos Ingleses, embora seja divertido, nem sempre é tão fácil como Madame faz com que pareça.

– Poeira?

– Perdoe-me – disse ela, de súbito. – Estou a abordar assuntos que não devia. – Levantou-se. – Far-me-ia um grande favor, signor, se esquecesse que alguma vez tivemos esta conversa.

– Esquecer o quê? – perguntei, confuso. – Não me disse nada… nada importante, quero eu dizer.

Ela já estava a afastar-se, mas fez uma pausa. Mais uma vez, o olho preguiçoso pareceu demorar-se em mim mais um instante do que o outro.

– Ainda bem que pensa assim – disse, em tom trocista. – Pela minha parte, pensava que estava a revelar-lhe os segredos mais profundos da minha alma.

Enquanto ela se dirigia ao jardim de rosas, gritei-lhe, por impulso:

– Talvez nos voltemos a encontrar.

Ela não parou, mas a sua voz flutuou até mim.

– Se ambos continuarmos à procura de sítios para estarmos sozinhos, signor Demirco, pode ter a certeza disso.

«Esqueça», dissera ela, mas – para minha surpresa – descobri que não conseguia. Não era a sua aparência, ou pelo menos não era apenas isso. A corte francesa estava repleta de mulheres bonitas; na verdade, pelos padrões da corte, dificilmente se podia dizer que ela fosse uma beleza. Aquele olho preguiçoso, quase vesgo, certamente que devia ser um ponto contra ela, nesse aspecto. Não, era outra coisa qualquer, algo nos seus modos.

Em italiano há uma palavra, stizzoso, que significa uma pessoa melindrosa, insatisfeita, até mesmo irritadiça; como um porco-espinho. Entre estas mulheres refinadas e lânguidas da corte de Versalhes eu encontrara muito poucos porcos-espinhos. Mas Louise de Keroualle era um.

«Talvez nos voltemos a encontrar»… Que abordagem desajeitada, mas ela não me rejeitara completamente. «Pode ter a certeza disso…»

Bom, eu voltara à nespereira meia dúzia de vezes desde então, mas ela não estava lá.

Olympe esperou que acabássemos de fazer amor e que estivéssemos os dois deitados, cabeça com pés, na grande cama nos seus aposentos, antes de dizer:

– Hoje estavas distraído.

Virei-me e beijei-lhe a barriga da perna.

– Nunca.

– Quem é ela?

– O que queres dizer? Não há ninguém além de ti.

– Mentiroso. – Olympe empurrou-me com os pés e soergueu-se sobre o cotovelo. – Diz-me. Para dizer a verdade, prefiro muito mais intrigas a elogios. Talvez possa ajudar-te a seduzi-la, quem quer que ela seja.

– Há uma rapariga… – comecei, com alguma relutância.

– Bom, claro. Quem? Vamos, diz-me.

– Louise de Keroualle. Não sei porquê, mas acho-a muito intrigante.

– Oh, ela. – Olympe deitou-se de novo. – Esquece-a. Não a podes ter. Ninguém pode.

– Porque não?

– Porque não é casada, claro. – Ao ver a minha expressão de incompreensão, explicou: – A infidelidade numa esposa ou numa amante é tolerável… na verdade, até é de esperar, num sítio destes. Mas uma potencial noiva… particularmente sendo tão pobre como a pobre Louise de Keroualle… só tem a seu favor a virgindade. Infelizmente, ela é demasiado pobre para que algum homem nesta corte pense sequer em casar com ela. Assim, será virgem para sempre, a menos que os pais se apercebam do seu erro e a coloquem num mercado menos exigente.

– Falas como se ela fosse uma mercadoria.

– Claro que sim. Nós, mulheres, somos todas mercadorias. Simplesmente algumas de nós preferem tratar pessoalmente das negociações. Ou emprestar a nossa pessoa de vez em quando. – Espreguiçou-se voluptuosamente. – Seja como for, ela não é a rapariga certa para ti. Desaprova que as pessoas se divirtam.

– Queres dizer que te desaprova a ti?

– Imagina só – disse Olympe, sem me responder directamente –, como seria uma mulher dessas na cama? O único interesse seria ver se a conseguirias lá deitar. Depois disso… – encolheu os ombros – …tédio.

– Provavelmente pensa que a cama serve apenas para dormir e ler.

Olympe riu-se.

– Encontrei um livro que gostaria muito que nós lêssemos – disse, em tom de provocação. – Posturas, de Aretino. A corte anda maluca com ele. Mostra vinte e sete variações de posição e há pelo menos quatro que ainda não experimentámos.

Olhei para o seu corpo nu.

– Quando voltarei a ver-te?

– Assim? Depende se tencionas ou não fazer alguma coisa em relação à rapariga de Keroualle.

– Disseste que não podia tê-la.

– E não podes. – Levantou-se da cama e dirigiu-se à antecâmara, onde o banho a aguardava. – Mas não acredito que isso te vá impedir de tentar, pois não?

Não voltei a ver Louise de Keroualle durante quase uma semana. Os dias estavam agora ainda mais quentes e as damas e cavalheiros da corte inundavam-nos com pedidos constantes de cordiais gelados e licores refrescantes, para não mencionar o facto de ter de pensar na competição do rei… Não a vi, mas dei por mim a pensar muito nela e, em resultado, a competição do rei recebeu muito menos atenção do que devia.

Estava na copa do gelo, a supervisionar o fabrico de um sorvete, quando uma voz de mulher disse:

– Com licença…

Era ela. Trazia um vestido simples de manga curta, de linho castanho. Vi o frio da copa arrepiar-lhe os braços e a pele delicada do pescoço e, de súbito, consegui imaginar exactamente como seria aproximar-me, segurar aqueles braços aveludados entre as minhas mãos e esfregá-los até os aquecer…

– Mademoiselle de Keroualle – cumprimentei. – A que devo este prazer?

Talvez tenha falado com algum excesso de entusiasmo; fosse por que motivo fosse, pareceu-me que ela me fitava com ar desconfiado.

– Se é realmente um prazer, signor, talvez seja uma pessoa demasiado fácil de agradar.

Eu não ia deixar-me dissuadir pelo eriçar dos seus espinhos.

– Se está a dissecar um cumprimento tão inocente, talvez seja uma pessoa demasiado fácil de ofender.

– Talvez – disse ela, com um suspiro. – Seja como for, foi Madame que me enviou. Ela gostaria de um copo de água de chicória gelada.

– Com certeza… eu próprio o prepararei. Vai demorar alguns minutos.

– Posso esperar. – Encostou-se a uma das prateleiras de pedra que cobriam a parede, cruzando os braços sobre o peito para não arrefecer, enquanto eu começava a reunir as coisas de que precisava. De vez em quando olhava para ela, na esperança de que os meus sorrisos a encorajassem a fazer o mesmo, mas ela limitava-se a olhar em volta, como se estivesse curiosa sobre aquilo que a rodeava.

Ao fundo da copa estava uma grande pilha de blocos de gelo, prontos para serem esmagados, esculpidos ou moídos.

– Como são belos – disse ela, baixinho.

– Belos? – Nunca tinha pensado neles dessa maneira. Para mim eram simplesmente tijolos, matéria-prima à espera de ser usada, mas eram realmente belos, de certa forma, percebi agora, cada placa tão única como pórfiro ou mármore; algumas límpidas como cristal, outras opacas, algumas contendo no seu centro redemoinhos suspensos de brancura gelada, como a água que fica turva quando é mexida. A pilha era da altura e comprimento de uma mesa e, à luz fraca da copa, emitia uma espécie de brilho frio e prateado.

– Tão puros – disse ela. – E espantosos, aqui, no pino do Verão.

– Estes vieram directamente das caves do próprio rei em Besançon. Não há gelo melhor em Paris. – Olhei para os braços dela e vi que os pêlos finos estavam de novo arrepiados. – Está com frio. Deixe-me esfregar…

– Obrigada – disse ela rapidamente, afastando-se. – Mas não é preciso, sinceramente. Tal como o senhor, também estou habituada ao frio.

– Sim? Porquê? – Calcei uma luva de cabedal grosso coberta por uma rede de cota de malha e comecei a raspar gelo para dentro de uma taça com movimentos fortes e ritmados.

– De onde eu venho… a baía de Brest… os Invernos são muito rigorosos. – Ficou um instante em silêncio, como se estivesse a recordar. – Até o mar se enche de gelo. Por vezes, um nevoeiro vem do Mar Alemão e congela tudo, cada árvore e folha de relva, tudo fica coberto de cristais minúsculos, como pêlos brancos.

Acenei.

– Já ouvi falar disso, mas nunca vi nada assim.

– Para quem está agasalhado, ou é rico, ou jovem, é muito bonito – disse ela, com uma expressão distante nos olhos enquanto seguia o movimento rítmico da minha mão sobre o gelo. – Mas para quem é pobre, ou tem frio, ou fome, pode ser aterrorizador. Todos os anos, quando conseguimos voltar a cavar a terra, enterramos dezenas de pessoas mortas pelo tempo mau. A minha família estava melhor do que muitas, claro. Sempre tivemos o suficiente para manter a lareira acesa no salão grande… um lume de lenha, não de carvão do mar. Mas na sala das crianças, nos quartos, não havia aquecimento nenhum. Costumávamos desejar a chegada da neve, porque significava que o tempo estava a ficar mais quente. Quando acordávamos e a grelha estava cheia de neve, vestíamo-nos e corríamos para a rua, para dançar e fazer bonecos de neve. – A expressão dos seus olhos suavizou-se com a memória. – Ou atirar bolas de neve aos irmãos, claro. Mas isso foi antes de eu ser enviada para a corte.

De súbito, tive uma imagem desta jovem orgulhosa a dançar na neve, a rodopiar e a rir, o cabelo escuro enfeitado com grandes flocos brancos que se transformavam em lantejoulas à medida que derretiam.

– Em Florença, raramente nevava – disse-lhe. – Uma ou duas vezes por ano, talvez. – O gelo estava pronto a usar. Hesitei. – Tenho de lhe pedir que se vire. Esta parte do processo é secreta.

Ela ergueu as sobrancelhas.

– Teme que roube os seus métodos e me lance sozinha como confeiteira?

– Claro que não. Mas, infelizmente, não pode haver excepções. O próprio rei insiste nisso.

Ela encolheu os ombros e virou costas. Juntei uma colher de salitre ao gelo e depois peguei numa garrafa de gargalo comprido, uma cantimplora, dentro da qual deitei a água do cordial. Depois empurrei a garrafa para o meio da mistura de gelo e rodei-a, arrefecendo o conteúdo quase até ao ponto de congelar.

– Suponho que o mistério faz parte do espectáculo – comentou ela, para a parede. – Tal como um ilusionista, tem de fazer com que pareça mais difícil do que é na realidade.

Por um momento deixei os olhos pousarem nas costas dela – a curva da sua coluna, as suas ancas, a sua postura; parecia um pouco embaraçada, mais um potro do que um cavalo.

– Pelo contrário. Só protegemos aquilo que é necessário.

Coloquei o resto do gelo dentro de uma taça e servi o cordial gelado sobre ele. Tinha uma bela cor, pensei, enquanto o erguia contra a luz para o admirar: castanho-claro, quase dourado, com o gelo a cintilar nas suas profundezas.

– Já pode virar-se.

Ela assim fez.

– Não há mais? – perguntou.

– Este não é suficiente?

– Ela vai querer saber se o provei.

– Porquê?

– Tem medo de ser envenenada.

– Envenenada!

Mais uma vez, o seu olhar demorou-se no meu rosto, como se estivesse a tentar decidir quanto devia dizer-me. Por fim disse, com ar sério:

– Não se riria se soubesse os riscos que ela corre. O seu próprio marido… – estremeceu. – Bom, não importa. Mas ela vai de certeza perguntar se eu provei isto.

Ainda havia um pouco de cordial na garrafa e despejei-o para outro copo.

Prego – disse, entregando-lho. Ocorreu-me um pensamento súbito. – Foi por isso que comeu o gelo de morango dela? Então não foi para me agradar, nem para embaraçar aquele médico idiota. Estava a certificar-se de que Madame não era envenenada.

Ela engoliu o cordial de um só trago, sem tirar os olhos dos meus.

– Muito bom – disse, devolvendo o copo vazio, e não tive a certeza se estava a referir-se ao cordial ou ao meu raciocínio. Pegou no outro copo e colocou-o numa bandeja.

– E quando disse que era delicioso como o beijo de um amante num dia quente de Verão…

Ela sorriu.

– É o tipo de disparate que a corte gosta de ouvir, não acha?

Resmunguei entre dentes.

– Oh, não fique ofendido – disse ela. – Por acaso, o gelo estava bastante agradável. Ambos temos os nossos segredos, signor. Simplesmente os meus são um pouco mais sérios.

– Como podem os segredos de uma mulher ser sérios! Os segredos de que modista usar ou de quem ganhou a quem no jogo de cartas!

– Estou certa de que tem razão. – Dirigiu-se à porta, segurando o tabuleiro com ambas as mãos, e parou. – E agora vejo que sou um exemplo tão frágil do meu género que nem sequer consigo abrir esta porta pesada sem usar as mãos.

Com um suspiro, aproximei-me e abri-lhe a porta.

– Muito agradecida – disse ela com uma delicadeza trocista. – Já agora, signor, foi um prazer falar consigo. E saiba que eu, ao contrário de certas pessoas, não sou fácil de agradar.

Não podia falar com Audiger. Portanto procurei Olympe.

– Sei que me disseste para não voltar enquanto estivesse interessado nela – disse, entrando no seu apartamento. – Mas preciso dos teus conselhos.

Quando lhe contei o que acontecera, apercebi-me de como parecia ridículo – alguns olhares, uns comentários melindrosos, uma conversa sobre uma luta de bolas de neve com os irmãos. Mas Olympe ouviu-me, assentindo de vez em quando.

– Bom, isso é interessante – disse, quando eu acabei.

– Então achas que ela gosta de mim? – perguntei, ansioso.

– Oh, não estava a falar da tua grande paixão, por mais divertida que seja. Não, referia-me ao namoro de madame Henrietta d’Angleterre com a grande política. Que é de facto, como Louise observou e bem, um assunto muito sério.

– O que queres dizer?

Ela suspirou.

– O teu problema, Carlo, é que pensas que a corte existe apenas para comer os teus gelos. Na verdade, é uma máquina de guerra, a maior da Europa, e um lenço que caia ao chão aqui pode levar à destruição de cidades inteiras em Espanha ou na Flandres.

– Mas o que é que isso tem a ver com Louise de Keroualle?

– O rei quer que os Ingleses sejam seus aliados numa guerra contra a Holanda – disse Olympe, como se estivesse a falar com um idiota. – Os Ingleses, por si só, não têm grande peso, claro, mas o seu país tem uma grande costa e essa tem de ser negada aos nossos inimigos.

– Eu sei. É por isso que o visitante inglês está cá. Para redigir um tratado.

Olympe abanou a cabeça.

– O verdadeiro tratado foi assinado em segredo há três semanas.

– Não compreendo. Como?

– Quando madame Henrietta foi visitar Carlos a Dover, para celebrar o aniversário dele, levou consigo um tratado redigido por ela e assinado por Luís… que, por acaso, é também seu amante – explicou. – Será que ele a seduziu apenas para assegurar a sua ajuda? – O encolher de ombros de Olympe sugeria que era bem possível. – Seja como for, o tratado diz que Carlos comprometerá a Inglaterra na guerra contra os Holandeses, em troca de uma pensão de Luís… uma pensão tão generosa que Carlos já não terá de dobrar o joelho perante o parlamento inglês que o restaurou no seu cargo.

– Mas isso não é propriamente absurdo, pois não? Um parlamento não deve ter o direito de interferir nos assuntos de um rei.

– Claro. Mas ouvi dizer que o tratado obriga também Carlos a converter-se ao catolicismo. E, se o rei inglês for católico, o seu país também tem de o ser. Na prática, é um tratado que, caso fosse conhecido, comprometeria Carlos a um conflito com o seu próprio povo. Daí a necessidade de redigir outra versão, mais adequada ao consumo público, sem qualquer referência a pensões ou religião.

– Então o duque inglês…

– Está aqui, para grande divertimento de Luís, para negociar condições que, na realidade, já foram decididas. Claro que ele não pode ter a mínima suspeita de tal coisa… tem de acreditar que, graças ao seu charme e capacidades de negociação, conseguiu garantir exactamente aquilo que lhe disseram para esperar. Levará o traité simulé para Inglaterra; o parlamento ratificá-lo-á e ninguém saberá de mais nada. Era isso que Louise queria dizer quando deixou escapar aquela observação sobre atirar poeira aos olhos dos Ingleses.

Assenti, embora me parecessem extraordinárias as complexas mentiras dentro de mentiras de que era feita a diplomacia francesa.

– É bem sabido que este plano tem sido a grande preocupação de madame Henrietta desde que o irmão recuperou o trono – prosseguiu Olympe. – Mas houve vários obstáculos… e um dos mais importantes da parte daqueles na nossa corte que se opõem a uma aliança com protestantes e regicidas. Madame já sofreu de ataques inexplicados antes e os médicos acreditam que foram causados por veneno.

– Não fazia ideia.

– Claro que não. Trata-se de questões subtis e secretas. – Olympe inclinou-se para a frente, com os olhos a brilharem. – Mas se a pequena Louise de Keroualle, na sua tenra idade, se tornou a agente confidencial de Madame, deve ser muito mais do que a criança simples que julguei.

Recordei aquela voz sardónica; o olhar inteligente e preguiçoso.

– Não há dúvidas de que não é nenhuma simplória.

Olympe acenou.

– O que, por sua vez, pode ser um problema para mim.

– Para ti? Porquê?

– Porque espero que o rei regresse um dia à minha cama de forma mais permanente, claro – respondeu ela, simplesmente. – Ele escolheu a sua amante actual entre as damas de companhia de Madame e tenho de ter cuidado para que não o faça de novo. Talvez esteja na altura de a bonita e esperta mademoiselle de Keroualle regressar à Bretanha. – Olhou para mim. – Quanto ao teu pequeno problema, é fácil de resolver.

– É?

Olympe levantou-se e dirigiu-se ao quarto.

– Bem sei que disse que não faríamos isto por enquanto, mas acho as intrigas estranhamente excitantes. Vem: a tua cura aguarda-te.

Depois, ela disse:

– Então… achas que a tua virgenzinha poderia alguma vez ter sido assim tão divertida?

Ri-me.

– Tens toda a razão, como sempre. Ela é demasiado monótona para mim. Não perderei mais tempo a pensar nela.

– Não sejas tão precipitado – aconselhou Olympe.

Algo no seu tom de voz alertou-me.

– Olympe, o que estás a maquinar agora?

– Tive uma ideia – admitiu ela. – Bastante deliciosa… as mi­nhas melhores ideias surgem quando faço amor. É muito simples. Em vez de a seduzires, porque não casas com ela?

– Casar com a Louise!

– Sim. É perfeito, não é? Afinal de contas, tens de casar algum dia, e deve ser com alguém que promova os teus interesses. Tens dinheiro… dinheiro novo, sim, mas uma rapariga na posição dela não pode ser demasiado esquisita e o tempo está a esgotar-se; ela já deve ter pelo menos vinte anos. É de uma boa família e é evidente que o rei gosta dela. Se a tomasses como esposa, consolidarias a tua própria posição.

Fiquei em silêncio durante um momento.

– E depois?

Ela encolheu os ombros.

– Assim que a engravidares, instala-la numa casa num local adequadamente remoto. Não precisa de afectar as tuas outras relações. – Pousou a mão no meu braço e acariciou-me distraidamente. – Até pode facilitar as coisas. Há muitas mulheres que preferem ter um caso com um homem casado do que com um solteiro. Terias o melhor dos dois mundos.

– E serve também os teus interesses, ao afastar Louise de Keroualle da corte.

– Claro – foi a resposta dela. – Nunca o teria sugerido de outra forma.

Pensei no assunto. Era verdade que eu devia casar em breve: era também verdade que a minha fortuna e o patrocínio real significavam que podia ter esperança de casar com alguém com boas relações. Já subira mais alto do que alguma vez julgara possível mas, com a mulher certa e, esperava eu, a presidência da corporação, não havia motivos para não subir mais ainda.

– Bom, vou pensar nessa possibilidade – disse. Olympe limitou-se a sorrir enigmaticamente.

Загрузка...