LOUISE
O parlamento vai insistir na paz assim que se reunir; é um segredo que todos sabem. Todas as noites Carlos tem reuniões com os seus ministros, para debater o que fazer. O seu objectivo é ganhar tempo: uma política que o irmão, num raro acesso de graça, descreveu como sendo indistinguível de perder tempo.
A única solução é que a sessão do parlamento seja interrompida – ou seja, suspensa pela autoridade do rei sem dissolução do mesmo. Contudo, desafiar desta maneira o mesmo parlamento ao qual deve a sua restauração pode desencadear uma rebelião armada. Os seus ministros – com um olho na sua própria popularidade junto da populaça – aconselham-lhe cautela.
Não o conhecem tão bem como eu. Os gestos imprudentes atraem-no. Prefere o rumo mais ousado, o jogo com as paradas mais elevadas. E o seu ódio pelo parlamento é muito profundo. Publicamente, tem de parecer grato por o terem restaurado no trono. Em privado, não se esquece de que o trono só estava vago porque eles assassinaram o seu pai.
Eu penso que há uma maneira. Mas primeiro tenho de ser tão ousada como ele.
*
Dou uma festa, um jantar no meu apartamento, para o rei e quarenta dos seus amigos mais chegados. Até convido alguns dos libertinos frívolos cuja influência sobre o rei é mais forte do que ele gosta de admitir.
Um festim de comida francesa, vinhos franceses, gelos franceses, pensamentos franceses expressos em francês. Excepto que o vinho corre de uma forma que não é bem francesa e a conversa rapidamente volta ao inglês e degenera – como acontece sempre neste país – do sedutor para o obsceno. Em breve os cortesãos e as damas da corte se retiram para os cantos para encontros amorosos. O deboche torna-se a ordem da noite.
Não, claro, para Carlos e para mim. Ele lança olhares para as sombras e sinto que, noutra ocasião, teria gostado de se juntar a eles, mas não pode ser visto a abandonar a minha companhia para esse fim na minha própria festa.
De madrugada, exaustos ou envergonhados, saem quase todos: todos excepto as minhas damas de companhia, a ilustre Lucy Williamson e lady Anne Berowne. O rei boceja e diz que tem de ir também. É nessa altura que sugiro uma última ronda de Perguntas e Ordens. Mas ninguém tem dinheiro.
Quando o rei pergunta o que apostaremos, respondo:
– As nossas roupas.
As raparigas não parecem muito à vontade, mas não se atrevem a protestar.
De cada vez que um de nós perde, despe qualquer coisa. Lucy é a primeira a ficar nua. No seu nervosismo, tenta cobrir-se com as mãos, com risinhos quase histéricos. O efeito – será intencional? – é chamar ainda mais a atenção para a sua nudez.
Anne não vai muito atrás. Eu sou a última a ficar despida. Carlos, claro, teve sorte. Na verdade, como banqueiro, ganhou a maior parte das roupas de Lucy e tem o saiote dela vestido por cima da camisa.
– Venham. – Empurro a cadeira para trás, pego na mão das duas raparigas e levanto-me. Elas não hesitam quando as conduzo à volta da mesa até estarmos de pé em frente dele.
– Então? – pergunto, em tom ligeiro. – Qual de nós merece a maçã?
Claro que ele conhece a história e sabe por que motivo faço alusão a ela. O Julgamento de Paris. Um concurso de beleza que levou a uma guerra.
– Uma decisão dessas não pode ser tomada de ânimo leve – diz, com um sorriso esfomeado, enquanto se levanta.
Espero, como se fossemos uma escultura viva, que ele nos examine, o que faz, lentamente, com o olhar de conhecedor a deslizar devagar sobre a nossa pele nua. Anda à nossa volta: os seus dedos roçam nas minhas costas, na curva da minha cintura, nas minhas ancas. Sinto a sua respiração na nuca. A sua mão apalpa-me a nádega, compara-a com a outra…
Um dedo grosso toca-me ali. Ao meu lado, Anne sustém a respiração e sei que ele lhe fez o mesmo.
Ele ergue a mão até ao meu seio, deixa-a ficar um instante, antes de a retirar com um suspiro.
Vira-se para Lucy, que ainda está a rir, nervosa. Do meu outro lado, Anne olha para ele com uma intensidade que me dá vontade de sorrir. Não tenho dúvidas de que ela espera que esta exibição dos seus encantos possa levar a algo mais.
– A sua pergunta, Lucy – murmura ele.
Ela não sabe o que perguntar.
– Gostais do que vedes? – diz, por fim.
– Claro.
Ela cora.
– E desejais-me?
– Claro – diz ele de novo.
– Nesse caso, ordeno que façais um brinde à minha beleza – diz ela, com um movimento coquete de cabeça.
– Com todo o prazer – concorda ele, pegando num copo. – Madame, encantou-me. Espero um dia poder retribuir o elogio. – Faz o brinde, bebe e depois vira-se para Anne. – E lady Anne? Qual é a sua pergunta?
Ela também hesita – mas, no seu caso, pressinto, apenas porque está a tentar perceber como aproveitar ao máximo a situação.
– Quem desejais mais: a Lucy ou eu? – Uma pergunta inteligente, penso. Ela sabe que se tivesse incluído o meu nome ele se sentiria obrigado a escolher-me.
– Não é pergunta a que um homem galante deva responder – objecta ele.
– O jogo chama-se Perguntas e Ordens – recorda-lhe ela. – Tendes de responder.
Ele acena.
– Muito bem. Desejo-as a ambas, mas à Lucy menos do que a si. – Através das nossas mãos dadas, sinto, mais do que oiço, a exclamação de protesto de Lucy. – Qual é a sua segunda pergunta?
– Quantas amantes tivestes este ano?
Ele sorri.
– A essa pergunta não posso mesmo responder, pois nunca as conto.
– Então a minha ordem é que ainda tenhais outra – diz ela, e é impossível não perceber o que quer dizer, apesar da minha presença.
Ele acena e bebe antes de se virar para mim.
– E a Louise, o que quer perguntar-me?
– Quem é o monarca mais feliz do mundo?
Ele parece surpreendido com a pergunta, mas responde:
– Luís, claro.
– Porque é ele feliz?
Carlos ainda não percebeu onde quero chegar.
– Porque tem o poder indisputado no seu reino.
– Então esta é a minha ordem – digo. – Mande o parlamento para casa.
Ele pestaneja, embora eu não consiga dizer se está chocado com a minha ousadia ou incomodado com o assunto. Sorrio e começo a virar-me; de mãos dadas comigo, as outras duas têm de rodar também, em torno do meu eixo, até termos feito uma volta completa.
– Ordeno que faça apenas aquilo que quer fazer – digo, quando estamos de novo cara a cara.
– Porque só existe um rei ungido de Inglaterra – acrescento, na segunda volta.
– E apenas num jogo como este – concluo, quando o encaro pela terceira vez –, é que alguém neste país poderia arrogar-se a pretensão de lhe dizer o que fazer.
Sinto Lucy a tremer ao meu lado. Estava preparada para o deboche, mas a política aterroriza-a.
– Com mil raios – sussurra ele. – Assim farei. – Dá um passo na minha direcção. Ainda seguro as mãos das minhas damas de companhia. Ele fita-as com ar desesperado. – Louise…
Encolho ligeiramente os ombros. Vejo-o abrir as narinas, como se quisesse inalar o aroma da nossa pele. Põe as mãos na minha cintura.
– Senhoras, podem ir – digo, largando-lhes as mãos. – Tenham uma boa noite.
O parlamento reúne-se nesse mesmo dia e ele manda-os imediatamente embora, de volta para os seus círculos eleitorais. O parlamento está suspenso até ordens em contrário. O país sustém a respiração – mas não há nenhuma rebelião armada. A jogada compensou.
Os Franceses continuam a lutar. Chegam as primeiras geadas mas os Holandeses rompem os diques e derretem o gelo dos terrenos. Luís vai avançando pelos que não derreteram, lentamente, com os seus canhões e a sua cavalaria sobre o gelo. Do nada, aparecem regimentos holandeses que arrasam as suas fileiras – os Holandeses foram buscar os marinheiros aos navios de guerra presos pelo gelo, armaram-nos com mosquetes e calçaram-lhes patins. Depois abrem buracos no gelo, afundando os canhões sob os pés dos artilheiros franceses. Os Franceses retiram – retiram! O exército francês não batia assim em retirada desde que há memória.
O Sol foi primeiro detido e depois obrigado a recuar. Os Holandeses são aplaudidos nas ruas de Londres por aqueles que, supostamente, são seus inimigos.
Entretanto, a noiva criança de Jaime chegou, trazida de barco pelo rio para não ouvir as vaias do povo. É – de forma algo infeliz – a Noite da Pólvora, a noite em que toda a Inglaterra queima efígies de papistas para celebrar o fracasso de uma conspiração.
Este ano, além de Guido Fawkes, queimam também o papa, o rei francês e, pelo sim, pelo não, a minha própria pessoa. As barrigas das efígies são enchidas com pólvora e gatos vivos, que guincham de forma hedionda quando sentem as chamas. Uma destas efígies é queimada directamente em frente das minhas janelas, no parque real. Arlington avisa-me, com um sorriso, de que não devo sair do palácio sem um guarda armado.
– Raramente saio do palácio – informo. – Tudo o que preciso vem até mim.
– É muito afortunada, senhora. – Os seus olhos lançam facas quando me fita. Ainda acredita que fui eu que lhe roubei o cargo de chanceler.
A princesa sai do barco, dá três passos em direcção a mim e afunda-se numa reverência graciosa.
– Vossa Alteza.
Ouve-se de imediato uma vaga de risos. A pobre rapariga parece confusa. Rapidamente, retribuo a reverência.
– Não sou a rainha, Alteza. Ela não está na corte, hoje. Porém, em seu nome, tenho o prazer de lhe dar as boas vindas. Venha, deixe-me apresentar-lhe alguns dos seus novos parentes.
Carlos, saindo do barco atrás dela, vê que eu dei os passos necessários para evitar um incidente e acena com gratidão. Jaime nem sequer repara. Diz-se que ele tem andado tão dominado pela devoção que ainda não falou com a sua noiva a sós. No entanto, esta noite, vai deflorá-la. Não admira que a pobre criança pareça aterrorizada; não admira que me tenha confundido com a rainha. Com o pretexto de lhe mostrar a corte, aperto-lhe o braço de forma tranquilizadora.
Apesar disso, não posso deixar de pensar que nunca ninguém confundiu Nell Gwynne com um membro da realeza.
Quando, um mês mais tarde, a princesa Maria é finalmente apresentada à rainha, Catarina trata-a com desprezo. Parece uma forma demasiado dura de tratar uma criança.
Esta corte é um sítio selvagem, muito mais brutal do que Versalhes. Pergunto-me se terei dificuldades em adaptar-me, quando voltar. Se voltar. É cada vez mais difícil ver o que será de mim se não for bem-sucedida em Inglaterra.
Estes pensamentos sombrios surgem numa altura estranha, pois a verdade é que não fui apenas bem-sucedida aqui – estou triunfante. Finalmente, Carlos fez de mim duquesa.
Serei a baronesa de Petersfield, condessa de Farham e duquesa de Pendennis. Depois, alguns dias mais tarde, ele acrescenta o título de duquesa de Portsmouth.
– Uma cidade naval – diz Nell Gwynne em voz alta, na minha presença. – Cheia de meretrizes. E muito perto de França. Que apropriado. – Mas ninguém se ri. É evidente que ela está fora de si de inveja. Por sua parte, Luís responde com uma honra equivalente: o feudo ducal de Aubigny. A mensagem é clara: eu sou uma ilustre protegida do rei francês, tal como sou a ilustre preferida do rei inglês.
Contudo, contudo… Se é possível que um presente destes tenha uma desvantagem, é que Carlos não podia ter escolhido pior altura para o conceder. A guerra, por estar parada, não se torna menos cara. Os Franceses são cada vez mais detestados. É quase como se Carlos quisesse chamar a atenção para a minha presença na corte.
Terá sido aconselhado por alguém a seguir este caminho? Nesse caso, por quem? Terão esperança de que o povo me atribua as culpas a mim, e não a ele?
Em teoria, as damas menos importantes da corte deviam agora cumprimentar-me com uma reverência. Muitas não o fazem, ou tentam livrar-se da obrigação com algo tão superficial que mais parece um encolher de ombros. Deixá-las empinar o nariz. A minha família já pertencia à nobreza quando a Inglaterra não era mais do que um posto avançado de bárbaros celtas.
Escrevo aos meus pais para lhes dar a notícia dos títulos. Eles ainda não responderam à minha carta anterior, onde os informava da chegada do seu neto. Talvez tivesse sido melhor esperar e amortecer o golpe com esta notícia. Não importa: em breve poderei fazer algo por eles, um gesto grandioso qualquer que deixe bem claro o quanto a sorte da nossa família se alterou.
Uma noite, uma figura de casaco escuro entra no meu apartamento. Um secretário qualquer. Educado, discreto, inescrutável. Reconheço-o vagamente: um homem do parlamento, do partido de Arlington.
– Pensei que talvez quisesse ver isto – diz, estendendo-me uma carta.
É um despacho, ou a cópia de um despacho, de Colbert de Croissy para Versalhes. Assume a forma de uma diatribe contra uma certa mulher.
Confesso que a encontro em todas as ocasiões com tanta má vontade para o serviço do nosso rei, e tão antagonista contra França (quer seja por se sentir desprezada lá, ou por mero capricho) que considero francamente que ela não merece a protecção de Vossa Majestade. Porém, como o rei de Inglaterra lhe mostra ter muito amor e gosta tão visivelmente de lhe agradar, Vossa Majestade poderá decidir se será ou não melhor tratá-la de acordo com os seus méritos…
– Porque me mostra isto? – pergunto. – Sei que é um homem do Arlington.
– Era – responde ele. – Agora ando à procura de um novo protector.
Ergo as sobrancelhas.
– Eu?
– Preciso de alguém que esteja inclinado para distribuir riqueza, e não apenas para a acumular. E lorde Arlington não vai subir mais do que já subiu.
– No entanto, isto não vale muito – digo, levantando a carta. – Uma diatribe precipitada, talvez, mas sem consequência a nível político.
– Sim – concorda ele. – Mas leia a última parte.
Viro a folha de papel e continuo a ler. Demoro um instante a compreender as implicações.
Corremos o risco de ofender Arlington com a aproximação ao seu rival, Buckingham; e para quê? Não devemos imaginar que, com duzentas mil coroas, conseguiremos obrigar um corpo tão grande como o parlamento a seguir um caminho que a mera razão devia ditar…
– Buckingham abordou um intermediário na corte francesa e ofereceu-se para vender os votos do seu partido a Luís – explica ele. – A sua intenção era que Colbert não soubesse, mas, como pode ver, ele foi informado e não está nada satisfeito.
– O que diz Luís?
– Nada, por enquanto. Mas mandou para Londres um homem chamado Ruvigny, um antigo soldado, como seu negociador.
Penso furiosamente. Se este esquema for em frente, Buckingham substituirá Arlington em termos de influência. No entanto, terá igualmente traído o parlamento ao vender os votos do seu partido. Talvez seja possível, mais tarde, destrui-lo com esta revelação.
Como se estivesse a ler os meus pensamentos, o jovem educado diz:
– O Arlington será substituído pelo Buckingham. O Colbert será substituído pelo Ruvigny. A França chegará a acordo com a Holanda. Assim que houver paz, talvez os Franceses deixem de ser tão odiados em Inglaterra como são agora. Quanto ao Buckingham, quem sabe o que poderá acontecer-lhe?
Dobro a carta.
– O que sugere que eu faça, para desencadear essa feliz sequência de acontecimentos?
– Deixe bem claro a Luís que não apoia o Colbert. Sem ele, o Arlington afundar-se-á
– E o Buckingham subirá.
– O Buckingham subirá – admite ele. – Por agora.
A política inglesa é um carrossel constante de traição e contra-traição, de subornos e intrigas e ambição. Nada é fixo; tudo é possível; todos os desfechos podem ser manipulados. As possibilidades dançam em frente dos homens como fogos-fátuos. Mas este jovem parece ter um dom para ver claramente através destas quimeras de acaso e favorecimento.
– Como se chama?
– Thomas Osborne, Vossa Graça. Ao seu serviço. – Faz uma vénia.
– Obrigada, Thomas. Escreverei a Sua Majestade Cristã imediatamente. E direi a Carlos o que o Buckingham está a planear. Creio que ele ficará muito interessado em saber.