CARLO
Para meio litro de groselhas negras, junte quatro pés de hortelã, picada, uma chávena de açúcar e duas claras de ovo. Este gelo, um pouco ácido, é na minha opinião ainda melhor do que a fruta do qual é feito.
O Livro dos Gelos
Ela não o faria.
Não se deixaria chantagear até à cama dele, disse, tal como não se deixaria subornar com o mesmo fim.
Arlington disse:
– A culpa é toda dela. Inflamou-o além do que qualquer homem poderia suportar.
– Uma mulher tem o direito de não ser coagida.
– Porquê? – retorquiu Arlington. – Se uma rapariga não pode escolher o seu marido, porque havia de ter o direito de escolher com quem se deitará?
Deram-me uma carta para lhe levar.
– É a última oportunidade que ela tem – disse-me Colbert. – E, mesmo assim, pode ser tarde de mais.
Olhei para o envelope de linho no qual estava a carta. O selo tinha a insígnia de um sol, rodeado por raios líquidos – o brasão pessoal do próprio Rei Sol, Luís XIV.
*
Ela leu-a, pálida como a cal.
– O que diz?
Silenciosamente, estendeu-me a folha. Depois das cortesias habituais, o rei foi directo ao assunto, sem rodeios. A sua raiva era evidente, mesmo naquelas poucas linhas.
Consideramos agora que não há nada mais que possa fazer. Está na altura de regressar a França. Parte na próxima semana, de Dover.
– Vão enviar outra para o meu lugar – disse ela, com expressão carregada. – Outra mais receptiva. E, para mim, o convento ou pior.
– Pelo menos ficará livre de tudo isto.
Ela abanou a cabeça.
– Falhei. A minha promessa a Madame… o Grande Negócio… tudo. Falhei. Nunca estarei livre disso.
Parecia tão desanimada que tive vontade de a tomar nos braços, mas não o fiz.
– Acabou. – Olhou em volta, para os aposentos sumptuosos, para os presentes do rei: os relógios, os livros, os quadros e tapeçarias e mobílias e os embutidos deslumbrantes. – Acabou, antes sequer de ter realmente começado.
Ouvi-me então dizer as palavras que pensara que nunca pronunciaria.
– Talvez devesse ceder à vontade do rei.
– A sua virtude é mais do que a sua virgindade – disse-lhe, num tom meigo. – Bem como a de todas as mulheres. Está no seu carácter, no seu temperamento, em quem é e naquilo em que acredita. Esta é a escolha que tem de fazer: o que é mais importante para si, a sua virgindade ou a promessa que fez a Madame?
– Não compreende, Carlo. A minha família… conquistámos os nossos títulos no campo de batalha, a servir reis. A honra é o que nos diferencia de outros homens. Podemos ser pobres, mas ainda temos isso.
– Pode ser amante de um rei e conservar a sua honra.
– Terei perdido…
– Não! – exclamei. – Terá vencido. Não compreende? Assim que for amante dele terá poder… muito poder!... não só sobre Carlos, mas sobre Luís também. Assim que for amante de Carlos, Luís nunca mais poderá ordenar-lhe que volte para França. Poderá fazer aquilo a que se propôs. E aquilo que perdeu… aquilo de que se desfez… terá realmente assim tanta importância, em comparação com isso?
Ela levantou os ombros, respirou fundo e, nesse momento, percebi que o faria. Vi, também, que eu era a única pessoa que poderia ter falado assim com ela; porque mais ninguém a conhecia ou amava o suficiente para pensar na sua felicidade no meio de todas estas intrigas.
Ela era uma mulher para quem o amor tinha uma importância secundária. Eu não a amava menos por isso, mas ajudava um bocadinho saber que não era por desejar o rei que ela faria isto, mas por um objectivo – um objectivo patriótico – com o qual se comprometera muito tempo antes.
Conversámos durante muito tempo – discutimos o assunto, pesámos os prós e os contras. Era, ambos o sabíamos, um passo irrevocável.
– Se eu o fizer – disse ela –, quero que saiba que o levarei às últimas consequências. Não serei sua amante de forma furtiva e escondida. Tem de ser reconhecido, às claras, à maneira francesa, para que todos estejam conscientes da minha posição. Farei com que ele dependa de mim para cada julgamento e decisão que tiver de tomar. Não serei menos do que uma rainha, apesar de não ter o título.
– Eu sei.
Por um longo momento, nenhum de nós falou. Depois ela disse, num tom diferente:
– Como hei-de dar a entender que mudei de ideias? – Soube então que a decisão estava tomada.
– Fale com o Arlington – aconselhei. – Ele que seja o intermediário. Estará mais do que disposto a colher os louros por isto.
No Red Lion, encontro Hannah a fazer tartes.
– Quando terminar… – digo, com voz rouca.
Ela percebe o que quero dizer com um único olhar para o meu rosto.
– Tenho de pôr estas tartes no forno. – Aponta para o tabuleiro.
– Bom, não as estrague por minha causa. Estarei lá em cima.
Quando ela entra no meu quarto, ainda traz o avental.
Era sempre igual: ela de gatas em cima da cama; as minhas ancas a movimentarem-se; o meu gemido de libertação. Nem uma palavra da parte dela. O tilintar de moedas – verifiquei: ela nunca tirava dinheiro a mais nem a menos.
A única diferença, desta vez, era um leve cheiro a tarte e um pouco de farinha no cabelo dela, como uma madeixa grisalha, onde o ajeitara distraidamente enquanto amassava.
Dei por mim a olhar para baixo enquanto copulávamos. Estava a pensar num casal há muito casado, um casal que fazia este acto por companheirismo, por amor, e não por sofrimento. Presumivelmente, haveria pessoas assim neste mundo.