CARLO
Canela, junça, sassafrás e cravo-da-índia são todas boas especiarias para gelos. Na verdade, o gelado de noz-moscada pode ombrear com o mais grandioso dos gelati, e é um excelente gelo de Inverno. Sirva-o com tarte de maçã morna e um copo de cerveja quente com açúcar e canela.
O Livro dos Gelos
A Inglaterra estava agora coberta de neve, submersa, empanturrada. Os meus trabalhadores entraram em desespero, empurrando carroças carregadas de gelo através dos intermináveis bancos de neve. Os cascos dos cavalos tinham de ser enrolados em pedaços de pele; apesar disso, alguns apanharam distomatose por andarem ao frio e na humidade e tiveram de ser libertados para se arranjarem sozinhos o melhor que pudessem. Por vezes, ficávamos presos durante dias, por tempestades ululantes que nos queimavam a pele e empurravam neve para todas as fendas das nossas roupas. Noutras alturas, o céu estava azul e brilhante e calmo, sobre um mundo pintado de branco, o ar parado a cintilar como a poeira da broca de um cortador de mármore; havia montes de neve em todas as casas e carroças, como a crosta de uma tarte acabada de fazer.
Eu estava no meu elemento.
Não era apenas de gelo para encher a casa de gelo do rei que eu precisava. Isso talvez fosse suficiente para a casa real, mas a corte, e o seu banquete, exigiam mais. Tal significava encontrar e encher grutas onde o ar pudesse ficar frio o ano todo, celeiros de gelo de onde pudesse reabastecer a copa de St. James.
As grutas raramente ficam perto de estradas boas, e mesmo as estradas boas estavam agora intransitáveis. As cernelhas dos cavalos em breve estavam indelevelmente esfoladas com as marcas dos nossos chicotes.
Quando eu e Elias regressámos a Londres, à frente de uma caravana de carroças, já íamos a meio de Janeiro. Embora não passasse muito do meio-dia, a escuridão já estava a cair – havia poucas horas boas de luz nesses dias no pino do Inverno. Passámos por Ludgate e vimos o grande rio por baixo de nós. Por um momento pensei que deviam ter acendido os famosos fogos que avisavam Londres das invasões. Depois percebi que – e como era assombroso – as fogueiras estavam no próprio rio, mesmo em cima do gelo, uma linha de chamas que se estendia em direcção a oeste até onde a vista alcançava.
Era como a reunião de um circo ou o acampamento de um exército. Havia castelos feitos de lona; comedores de fogo e ursos dançarinos; malabaristas e bobos; balões de fogo e as centelhas cintilantes de pólvoras coloridas a iluminar os rostos da multidão. Bandeiras esvoaçavam na brisa e o som de música chegou até nós.
– É obra dos barqueiros – disse Elias, do seu lugar ao lado do carreteiro. – Quando já não conseguem trabalhar nos seus barcos, declaram aberta a feira do gelo. Ninguém tem jurisdição entre as margens do rio a não ser eles.
A estrada onde nos encontrávamos levava até ao rio. Pouco depois, senti o cheiro de castanhas assadas e o odor quente e almiscarado de cerveja quente.
– Quer parar? – perguntou o carreteiro, lambendo os lábios.
– Não – respondi secamente. – Temos de levar o gelo até ao seu destino.
*
Quando finalmente chegámos ao Lion, exaustos depois de uma noite passada a descarregar as carroças de gelo, encontrei o estabelecimento deserto, à excepção de um solitário empregado de balcão. Titus Clarke abrira uma tenda de bebidas na feira do gelo, explicou ele, e Hannah estava lá a vender as suas tartes.
Curioso, acompanhei Elias até ao rio, onde uma carruagem puxada por seis cavalos levava os passageiros de uma margem para a outra. O condutor assegurou-me que era perfeitamente seguro, mas eu tinha demasiado respeito pelo gelo para brincar com os seus perigos e decidi ir a pé. Na tenda do Red Lion, Elias reuniu-se com a mãe: ela abraçou-o e disse-lhe que devia ter crescido pelo menos trinta centímetros. Ele pareceu um pouco embaraçado com esta manifestação de afecto. Não crescera apenas por fora, pensei, divertido.
O sorriso de boas-vindas de Hannah para mim foi caloroso.
– Obrigada por cuidar dele – disse. Acenei e deixei-os a conversar.
Cada tenda tinha o letreiro de uma estalagem e, por acordo mútuo, vendia apenas uma espécie de bebida. O Three Bells era uma tenda de araca; o Coach and Horses vendia absinto, enquanto o Red Lion servia uma variedade de cerveja a que chamavam «muda».
– Porque se chama assim? – perguntei a Titus Clarke.
– Porque quem beber demasiado fica mudo – disse ele alegremente enquanto me estendia uma caneca cheia de espuma. – Tem o poder de nos roubar as palavras, como muitos homens já descobriram às suas próprias custas.
Provei um pouco: era uma cerveja quente com açúcar, espumosa, aromatizada com sassafrás e cravo-da-índia, agradável, embora um pouco aromática de mais, de uma forma que me fazia lembrar um xarope para a tosse. À minha volta, homens e mulheres esvaziavam grandes canecas da bebida. Bebi a minha com alguma moderação – em Itália não temos tanta tendência para a embriaguez como os Ingleses. Para minha surpresa, era bom estar de volta a Londres: não me tinha apercebido, no campo, do quanto sentia falta da sua energia perpétua e rude. Caminhei lentamente. Vi várias lutas de touros com cães e uma ou duas lutas de galos, que me divertiram durante algum tempo. As pessoas comiam tartes de maçã e outras guloseimas e o ar estava repleto dos cheiros quentes de noz-moscada e canela.
Depois ouvi um grito: O rei. Ergui os olhos. Uma procissão de uma dúzia de carruagens estava a descer o gelo, proveniente da direcção de Whitehall. Enquanto eu observava, pararam e a corte desembarcou, homens e mulheres que se espalharam sobre o gelo. Muitos calçavam patins por baixo das belas roupas e, quando começaram a deslizar, graciosos como dançarinos, a multidão aplaudiu. Vi Louise entre eles, a patinar de costas, num círculo, com o vestido de seda dourada a ondular. Depois o rei estendeu-lhe a mão e os dois aceleraram juntos em direcção à Grande Ponte, deixando todos os outros para trás, as pernas de ambos movendo-se em perfeita sintonia, o longo cabelo preto de Louise a esvoaçar atrás dela; como se fossem dois pássaros deslumbrantes, a voar rio abaixo.
Virei-me para a feira que, subitamente, me pareceu um pouco mais escura, um pouco mais fria, sem eles ali.
A próxima coisa de que me lembro é de acordar, em agonia, no meu quarto no Lion. Alguém me despira: quem quer que fosse tinha dobrado as minhas roupas muito bem ao lado da cama e até deixara as minhas botas do lado de fora do quarto para serem limpas. Sentei-me, alarmado, e rapidamente desejei não o ter feito: tinha uma dor de cabeça insuportável, como uma rocha a ser aberta pelo martelo de um pedreiro. Parecia que, afinal de contas, tinha sucumbido ao vício dos Ingleses e bebera de mais.
Com um gemido, desci até à sala de jantar. Percebi que as cozinhas estavam abertas – o cheiro a tartes pairava no ar, proveniente das traseiras da sala – mas não havia ninguém por perto e eu não estava em condições de gritar. Por fim, Rose, a mais inferior das criadas, trouxe-me o pequeno-almoço.
Demorei algum tempo a perceber que ela se sentara numa mesa próxima e estava a ver-me comer.
– Como se sente? – perguntou, com um sorriso que pretendia ser compreensivo.
Franzi a testa.
– Dói-me um pouco a cabeça.
– Não admira, se foi a primeira vez que experimentou a muda.
Então ela vira-me na noite anterior.
– Presumo que fiquei mudo? Entorpecido pela bebida?
Ela atirou a cabeça para trás e riu.
– O senhor? Mudo? Não. Deu-lhe para o outro lado. Arengou como um padre.
Escusado será dizer que não me recordava de nada disto.
– E sobre o que é que eu estava a… arengar?
– Não se lembra mesmo?
– Se me lembrasse – observei –, não precisaria de perguntar.
Ela acenou.
– Bem visto. Digamos apenas que a maior parte da conversa me passou ao lado. E da Mary também. Especialmente as partes em italiano. Bonito, e muito persuasivo, mas nada que se pudesse considerar compreensível.
Estranhei o uso da palavra «persuasivo». Pelo menos, ao que parecia, eu não tinha revelado nenhum dos meus segredos. Mais um motivo para jurar nunca mais tocar na bebida, se o estado da minha cabeça não me tivesse já decidido por esse caminho.
O que quer que tenha acontecido nessa noite, teve outra consequência imprevisível. Longe de ficarem horrorizados com a minha falta de controlo, os habituais do Red Lion pareceram considerá-lo evidência de que eu era agora, como diziam, «um dos seus».
– Ao princípio, pensámos que era um bocadinho snobe – confidenciou-me Mary, a outra criada. – Mas, afinal, é um bom tipo, não é?
Eu estava bastante dividido em relação a isso. Por um lado, sentia-me tentado a chamar a atenção para o facto de que, sendo o confeiteiro de Sua Majestade, dificilmente poderia ser um deles; por outro lado, estava contente por estas pessoas já não me considerarem um forasteiro, portanto decidi que o melhor a fazer seria aceitar a sua amizade no espírito em que me era oferecida.
Mary e Rose, em particular, adoravam trocar mexericos sobre a corte, e agora que eu – de alguma forma – lhes indicara que era mais acessível do que tinham tido motivos para acreditar até então, vinham frequentemente incomodar-me enquanto trabalhava.
– E lady Castlemaine? É tão bonita como dizem?
– Ainda não tive o prazer de ver essa senhora.
– E o rei? Como é ele?
– Sua Majestade é muito gracioso. E alto. É a sua característica mais distintiva: a altura.
– É verdade que lady Arlington tem cem vestidos?
– Não os contei pessoalmente. No entanto, em Versalhes, cem vestidos não seriam considerados demasiados para uma senhora verdadeiramente elegante.
Em particular, elas estavam fascinadas de forma inimaginável por Nell Gwynne – «a nossa Nell», como lhe chamavam. Eu podia olhá-las de lado quando ouvia esse nome, e oferecer a opinião de que a actriz era uma criatura grosseira e desinteressante, mas, para elas, isso era apenas parte do seu fascínio. O facto de Nell ter começado como uma meretriz vulgar – «uma puta dos carvoeiros», chamava-lhe Mary – tendo ascendido ao palco, à fama e, daí, à cama real, parecia-lhes uma espécie de conto de fadas, ainda mais pela forma como as origens sórdidas de Nell lhes faziam lembrar as suas próprias vidas.
– Eu fui uma menina das laranjas, como ela, mas no teatro do duque, não no do rei. Tinha onze anos quando um cavalheiro decidiu que queria descascar mais do que aquilo que pagara – disse Mary.
Mudei rapidamente de assunto, apesar de o desconforto ser todo da minha parte, não da dela.
Elas tinham ouvido falar de Louise de Keroualle, mas a impressão que haviam formado dela tinha na base um preconceito diferente: que, como francesa, fora enviada para a corte inglesa com o único propósito de enfeitiçar o seu rei. Todos os meus protestos de que isso não era verdade eram recebidos como uma descrença educada mas inabalável. Uma das raparigas até tinha um livro que reivindicava ser a biografia de Louise e, uma vez que não sabia ler, pedira-me para lhe descrever o conteúdo. Era, claro, mais lixo, e depois de dar uma vista de olhos recusei-me terminantemente a fazê-lo.
Havia mais mexericos e conversas às quais eu prestava pouca atenção; contudo, para minha surpresa, quando Robert Cassell apareceu numa das suas visitas regulares, foi nestes mexericos da taberna, e não nos meus progressos na feitura de um gelo mais suave, que pareceu mais interessado.
– Mais alguma coisa? – perguntou, debruçando-se sobre a mesa e fixando em mim o olhar vivo e militar. – E conversas sobre outras nações, por exemplo?
– Bom, estão bastante convencidos de que foram os Holandeses que atearam o Grande Incêndio.
– Estão? – perguntou, com um leve sorriso.
– Eu disse-lhes que é muito mais provável que Deus esteja a castigar o país pelo regicídio.
– Hum… – disse ele. – Penso que, por enquanto, talvez seja melhor guardar esse ponto de vista para si. Nos próximos meses, as opiniões vão tornar-se bastante acesas sobre temas como esse. Na verdade, por muitas razões, seria melhor que confidenciasse ter ouvido várias pessoas importantes na corte dizerem também que os Holandeses estiveram por trás do incêndio.
Uma pessoa que participava pouco nos mexericos era Hannah. Contudo, de forma talvez surpreendente, eu dava por mim a discutir com ela quase tanto como com as outras duas. Pois, se Rose e Mary eram demasiado crédulas, Hannah era demasiado desdenhosa.
– Hannah – chamavam-na elas quando ela passava –, anda ouvir. O signor Carlo está a falar-nos sobre a vez em que serviu taças de neve misturada com uma conserva de água de rosas à condessa de Sedburgh, num baile.
– Não conheço a condessa de Sedburgh – dizia Hannah, sem parar. – Por isso não estou muito interessada no que ela come.
– Mas ela é linda… – gritava Rose, mas era tarde de mais; Hannah já estava fora do alcance da sua voz. Parecia-me que ela era ainda mais seca com todos nós desde a noite da feira do gelo; por outro lado, o Inverno era a época mais movimentada do ano para as suas tartes, portanto podia simplesmente andar com pouco tempo.
Depois houve a ocasião em que eu estava a repetir alguns comentários que o rei fizera, relativamente ao banquete para os cavaleiros da Jarreteira em Windsor, e o meu papel central nessas festividades.
– Então ele tem dinheiro suficiente para gastar em palácios e banquetes, mas não tem dinheiro para poços ou hospitais – disse Hannah. – E cada um desses tostões veio do dinheiro dos nossos impostos.
– Onde o rei gasta o tesouro público é assunto apenas para Sua Majestade e para os seus conselheiros – observei, calmamente. – Como podemos nós, com a nossa informação limitada, ter a presunção de questionar as decisões dos grandes homens?
Ela parou então – estacou abruptamente, na verdade, algo suficientemente raro para eu reparar.
– E, diga-me, o que torna uma pessoa grande e outra não? – inquiriu.
– O nascimento, as maneiras e o sangue – respondi de imediato. – Pode nem sempre gostar daqueles que Deus colocou acima de si, mas com certeza que não pode duvidar de que Ele tem os meios para o fazer. Tal como o rei tem direito a parte do respeito que é devido a Deus, de quem é representante, da mesma forma os seus cortesãos têm direito a parte do respeito que é devido aos anjos.
Talvez eu não me tivesse explicado muito bem, porque Hannah simplesmente atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada sarcástica.
– E suponho que se inclui a si próprio nisso? – perguntou, quando acabou de rir. – Porque, se o senhor é um anjo, eu sou o rabo de um francês.
Olhei para ela, espantado com esta nova animosidade. Tinha a certeza de que ela não podia estar a referir-se ao meu nascimento humilde: esse era um segredo vergonhoso ao qual eu nunca aludira. A menos que tivesse, de alguma forma, traído as minhas origens quando estava bêbado… Observei-a, tentando encontrar alguma pista na sua expressão. Mas ela já me virara costas e afastara-se.