CARLO
Recolha o gelo no Inverno, para poder ter o prazer dos gelos no calor do Verão.
O Livro dos Gelos
«Uma colheita», chamara eu à recolha de gelo na conversa com o rei; e era exactamente disso que se tratava. Ver as primeiras geadas no Parque de St. James era como ver os primeiros rebentos de uma safra há muito aguardada. Todos os dias os rebentos ficavam um pouco mais fortes, um pouco maiores, alimentados pela escuridão e pelo frio crescente. Os homens caminhavam apressadamente pelas ruas, envoltos agora em peles. Os cavalos batiam os cascos no chão, enquanto esperavam que as carroças fossem descarregadas, e sopravam trompetas de hálito quente enquanto se esforçavam para percorrer as ruas irregulares.
Depois chegou a neve. Se as geadas eram os rebentos, isto era a flor. Grandes pétalas de neve pairavam sobre a cidade, pintando os telhados de branco; assentando um bocadinho mais fundo, um bocadinho mais de tempo, de cada vez que nevava.
Contudo, o gelo ainda não endurecera. O gelo era o fruto do Inverno e amadurecia lentamente. Primeiro uma camada fina de caramelo transparente na superfície de uma poça. Depois um disco de vidro. E, finalmente, uma placa grossa e branca de porcelana, coberta de fendas onde as crianças tinham tentado parti-la com os pés, apenas para descobrir que não conseguiam.
– O gelo – disse a Elias –, até mesmo o gelo que parece congelado, precisa de tempo. Solidifica lentamente, ao longo de uma semana ou mais. E quanto mais duro for o gelo, mais lentamente derreterá. Queremos ferro, não porcelana.
– Esperamos?
– Esperamos – confirmei.
Ao fim de uma semana, o gelo estava duro como ferro. Era altura de passar para Hampton. Onde, claro, o caos se instalara. O intendente negligenciara as minhas instruções; os trabalhadores estavam parados; o celeiro que eu encomendara estava a ser usado para o gado. Apenas o gelo era perfeito, suficientemente espesso para suportar o peso de um cavalo, tão duro e firme como o próprio solo gelado.
Invoquei o nome do rei e praguejei generosamente em italiano. Pouco a pouco, a minha colheita foi recolhida.
Certa manhã, acordei e vi que o próprio ar estava branco. Uma neblina marítima gelada aproximara-se de leste, trazendo consigo um frio tão cortante que as folhas de azevinho se partiam em duas como biscoitos, e todos os ramos e galhos estavam cobertos de barbas de gelo.
Lembrei-me do que Louise me contara sobre Brest e perguntei-me o que estaria ela a fazer agora. Tentei afastá-la da mente. No entanto, às vezes, através da neblina congelada, julgava vislumbrar uma figura, com um vestido puído, a dançar na neve.