CARLO
Gelado de morangos brancos: o sabor delicado destes frutos não precisa de adornos, excepto, talvez, uma pitada de pimenta branca.
O Livro dos Gelos
O grande banquete de Carlos, o arranque do seu Verão de festividades, teria lugar no dia festivo de São Jorge, o santo patrono de Inglaterra. A ironia, claro, não passou despercebida àqueles que sabiam quem era realmente o patrono do rei, ou que país estava na prática a pagar as suas celebrações.
Quase um mês antes da festa, mudei-me para Windsor de modo a poder supervisionar os preparativos. Os construtores ainda estavam a trabalhar no Grande Salão novo, enquanto os carpinteiros faziam as últimas mesas às quais se sentariam os convidados do rei. Os despenseiros estavam também ocupados, a desembrulhar milhares de peças de loiça que não eram usadas desde a coroação. Só o candelabro precisava de uma equipa de oito pessoas e duas semanas para ser limpo.
Não havia casas de gelo, mas requisitei uma cave e mandei trazer o gelo directamente das grutas onde o guardara. Primeiro, comecei o trabalho de fazer as esculturas de gelo e pus trabalhadores a preparar as grandes camas de gelo esmagado onde seria servida a comida fria.
Contudo, ainda não tinha decidido exactamente que gelado serviria na mesa do rei.
Nas semanas depois do meu encontro com os virtuosi, e de ter aperfeiçoado a técnica de fazer um gelo perfeitamente suave, fizera experiências com todos os sabores à face da Terra. Assim que um novo fruto ou vegetal aparecia nos mercados, eu congelava-o. Espargos, tupinambor, aipo vermelho, até couves… Os rabanetes revelaram-se surpreendentemente bons, bem como espinafres de Primavera; as azedas tinham os seus méritos, também. Fui às docas e comprei frutas estranhas aos barcos regressados das colónias. Fiz gelados de pimentos, de melões, de mangas e de frutas tão feias que nem sequer tinham nome.
Nenhum deles era o certo. Não para um prato criado em honra dela.
Percorri os laranjais e plantações de ananases das propriedades dos grandes nobres, com uma carte blanche do rei no bolso. Mais do que um ananás foi arrancado da árvore, partido, cheirado e posto de lado.
Elias disse-me:
– Há um homem em Sonning que, dizem, cultiva morangos brancos. São grandes como ovos de gaivota e absolutamente doces.
– Não me parece que isso seja possível.
– Ele é marinheiro. Trouxe as plantas da América.
Não acreditei, mas viajei até Sonning, de qualquer maneira, para verificar pessoalmente. E descobri que Elias tinha razão: havia um velho marinheiro, com as botas cobertas de lama, que cultivava morangueiros num canteiro elevado, aquecido pelos respiradouros de uma lareira. Enquanto sopesava os frutos nas mãos calejadas, murmurava a cada planta, acariciando-a e pedindo-lhe desculpa pela perda dos seus filhos. Era louco, mas os seus morangos eram extraordinários. Os frutos eram completamente desprovidos de cor: primeiro, pensei que não estavam maduros, mas depois ele deu-me um para provar e percebi que, não só era doce, como era completamente diferente dos morangos normais – branco como nata, carregado de aroma e sem nenhuma da acidez habitual da maioria dos morangos. Cada baga estava aninhada debaixo de uma folha coberta de espinhos muito finos, como uma groselheira ou uma urtiga: picavam ligeiramente quando a manuseávamos.
Recordei-me que havia um velho costume que ditava que todos os animais brancos ou albinos pertenciam ao rei. O cervo ou veado branco era o antigo símbolo dos reis; os cisnes eram reservados para a mesa real, enquanto uma carruagem puxada por cavalos brancos era sinal de que o ocupante estava ligado à família real.
Louise, também: aquela pele branca, tão branca, reservada apenas para o rei.
Trouxe todos os morangos que o homem tinha e dividi-os em duas partes. Uma delas seria servida simples; com a outra, faria um gelado, com um pouco de pimenta branca, para prazer exclusivo do rei.
O dia do banquete chegou – ou melhor, o primeiro dia, uma vez que os festejos iriam durar quase uma semana. Bandeiras esvoaçavam em todas as esquinas e torreões do castelo; tocavam-se fanfarras e, para onde quer que olhássemos, havia soldados em desfiles cerimoniais. Fizeram-se exibições de equitação para entreter os convidados e havia uma estátua que cantava. Não era Versalhes – o castelo era demasiado castelo para ser completamente elegante e a atmosfera aproximava-se mais de uma feira rural do que das cerimónias formais e coreografadas de França – mas a majestade da ocasião era indiscutível. Os frescos no tecto do Grande Salão podiam ainda não estar secos, mas esse tecto era vasto e estava pintado, e, à medida que os mil convidados nobres entravam pelas portas trabalhadas, olhavam para cima e admiravam-no.
E depois Louise fez a sua entrada.
O vestido que escolhera para esse dia era admirável. Assentava-lhe como uma luva e, na verdade, a sua cintura era tão estreita que um par de mãos enluvadas quase a conseguiriam contornar. No tecido, estava bordado um padrão delicado em forma de diamantes; a saia e o corpete eram separados, como era o novo estilo em França; a saia tinha uma racha de lado, de modo a que, quando ela caminhava, era possível apanhar um vislumbre da sua perna esguia entre as pregas do tecido, que estava apanhado de um lado e preso com um broche. Apenas o seu cabelo – aquela cabeleira desobediente de caracóis escuros – não tinha nada de francês: não estava apanhado ao alto debaixo de um chapéu, mas simplesmente dividido ao meio. Era como se ela estivesse a dizer: De hoje em diante, serei eu o árbitro por aqui. Copiarei o que quiser, e todos me copiarão.
O rei fez-lhe uma vénia e conduziu-a à sua mesa, que estava separada das outras, num pequeno estrado elevado. A rainha não estava presente.
Pouco antes de eu começar a servir o gelado, um dos criados do rei aproximou-se.
– Isto deve ir dentro do gelo – disse. – Por ordens do rei. – Abriu uma pequena bolsa de veludo e sacudiu qualquer coisa para a palma da minha mão.
Na ementa, colocada junto de cada convidado, estava escrito: Para prazer exclusivo do rei: um prato de morangos brancos e um prato de gelado.
Mas não estava escrito como aconteceu: o som dos trompetes, o grito dos arautos, um silêncio súbito: todos os olhos sobre mim enquanto eu caminhava, à frente de uma procissão solene de criados, na direcção da mesa principal.
Creio que o meu olhar se cruzou com o dela, quando fiz uma vénia profunda. Porém, com aquele olho preguiçoso, era difícil ter a certeza.
Recuei. O rei estendeu a mão para a travessa de gelo esmagado sobre o qual se encontrava a tigela de morangos e puxou a ponta de uma fina corrente. Puxou de novo, e desta vez ela libertou-se; carregada, a baloiçar, pesada com pepitas cintilantes do que parecia ser gelo: gelo que se incendiou subitamente sob o brilho das velas.
Um colar de diamantes brancos, as pedras tão grandes como morangos, a pingarem nos seus dedos enquanto os retirava daquele ventre gelado.
Só nesse momento reparei que ela não tinha nada ao pescoço, em antecipação deste momento. Enquanto ele prendia o colar, murmurando algo que só ela conseguiu ouvir, imaginei a pele dos seus ombros e garganta arrepiada pelo frio da jóia; a textura suave, quase aveludada que a sua pele teria sob as mãos do rei.
Ela olhou para ele, com uma expressão adoradora mas tímida, e depois virou-se para sorrir para toda a sala: uma inocente encantada, a rapariga mais feliz do mundo. Instintivamente, as pessoas começaram a aplaudi-la, muitas levantando-se ao fazê-lo; e se houve alguns, como Rochester e Buckingham, cujos aplausos foram um pouco mais lentos, um pouco mais cínicos, isso perdeu-se no momento geral de aprovação.
Para prazer exclusivo do rei.
E até eu – cortesão, confeiteiro, cúmplice do meu próprio desgosto – até eu juntei as mãos e soltei um grito de aprovação que não sentia.