CARLO

Para fazer neve: junte meio galão de natas espessas e as claras de oito ovos, e bata tudo com uma colher. Depois, pegue num pau e corte a ponta, abrindo-o em quatro varas: perfume a mistura com essência de bergamota ou água de rosas e bata com vigor até subir.

O Livro dos Gelos


Em Florença, Ahmad contava por vezes histórias enquanto trabalhávamos. Eram sobre muitas coisas, mas sempre, de alguma forma, sobre gelo.

Uma das histórias era sobre os nossos patrões e um homem que trabalhara para eles cento e cinquenta anos antes. Rezava a história que, um Inverno, nevara em Florença. Os filhos de Piero de Médicis tentaram fazer um boneco de neve mas, sendo crianças e sem experiência, os seus esforços não foram bem-sucedidos. Assim, Piero chamou um dos artistas do seu falecido pai e ordenou-lhe que esculpisse um boneco de neve.

O jovem tentou explicar que trabalhar com neve não era um uso adequado para o seu talento, mas Piero de Médicis disse-lhe que esperava a obra terminada de manhã.

Durante toda essa noite gelada, à luz do luar, o artista esculpiu a neve como se fosse um bloco do melhor mármore de Carrara, com as mãos enroladas em trapos ensopados e gelados para se proteger do frio.

De manhã, os príncipes Médicis correram para o pátio para ver o que ele fizera. Era, escreveu um contemporâneo, sem dúvida o mais belo boneco de neve que alguém já tinha visto. Mas o tempo durante o dia aqueceu e com o tempo mais quente veio a chuva. Em breve não restava nada da primeira escultura de Miguel Ângelo a não ser uma estalagmite atrofiada, como um dente podre, a única coisa branca ainda no pátio.

Neste ponto da história, Ahmad fazia sempre uma pausa.

– Há pessoas que usam esta história para ilustrar a efemeridade da beleza e a tirania do tempo, rapaz. Eu encontro nela outro significado. Duas coisas, na verdade. Primeira, quando um Médicis nos manda saltar, perguntamos a que altura. E segunda… – Os seus olhos pousavam sobre mim com ar pensativo. – E a segunda coisa é, mantém sempre o teu gelo longe da chuva.

Fiz um boneco de neve para Louise de Keroualle.

Provavelmente não estava tão espectacular como o de Miguel Ân­gelo, mas, por outro lado, o de Miguel Ângelo não era comestível.

Primeiro tinha de fazer a neve. Leite e açúcar, aromatizados com água de rosas, misturados com claras de ovo e batidos com um batedor. Só depois de a espuma estar tão leve que flutuava ao cair do batedor é que a gelei, transformando-a em flocos da neve mais pura e delicada.

Desta, fiz duas bolas para o corpo e a cabeça, adicionando um chapéu de caramelo duro e um sorriso de laranja cristalizada. Os olhos eram passas secas, o nariz uma cereja conservada em licor. Numa das mãos, o boneco de neve tinha uma vassoura feita de rosmaninho e no peito uma fatia de morango cristalizado, no lugar do coração.

E, finalmente, fiz nevar.

Esta era uma proeza supostamente inventada pelo grande Buontalenti, que mesmo Ahmad apenas raramente arriscava. Quando uma fina neblina de água de rosas era pulverizada sobre uma mistura de gelo e salitre, as gotículas transformavam-se em cristais tão leves que não subiam nem desciam, flutuando no ar como partículas de folha de ouro cintilante.

Louise não demorou muito a visitar-me – agora, todos os dias havia mais um pedido de água de chicória gelada para ajudar a digestão de Madame, e Louise ou uma das outras damas de companhia vinham buscá-la. Esperei até ela aparecer com o pedido habitual e disse, bruscamente:

– Já está preparada.

Ela ergueu as sobrancelhas e olhou em volta.

– Não a vejo.

– Ali dentro. – Indiquei uma porta com a cabeça.

Ela pareceu desconfiada, mas não disse nada e entrou. Ouvi-a soltar uma exclamação abafada e depois silêncio.

Fiquei onde estava. Apercebi-me, de súbito, de que não fazia ideia se ela ia gostar ou não.

Depois algo frio e molhado atingiu-me na cabeça. Girei sobre mim próprio. Apanhei um vislumbre de olhos risonhos antes de uma segunda bola de neve, lançada com a outra mão, me acertar no pescoço.

– Signor Demirco… vem ou não? – desafiou ela. – Não posso entrar numa luta de bolas de neve sozinha.

Segui-a. A deslocação de ar quando entrei na segunda copa fez a neve ondular à minha volta, cintilando sob a luz de uma vela.

Ela virou-se, com as mãos já carregadas, e arremessou outra bola de neve, mas fê-lo cedo de mais e a bola desintegrou-se, inofensiva, no meu casaco. Depois – não consegui evitar – dei dois passos e tomei-a nos braços; e os seus lábios – os seus lábios frescos e pálidos – sabiam a água de rosas e açúcar, salpicados com flocos de gelo como se fosse um pólen suave e perfumado.

Por um longo momento beijei-a e ela retribuiu o beijo – tinha a certeza disso – com a boca quente contra a minha. E depois, com um arquejo repentino, afastou-se de mim com expressão horrorizada.

– O que está a fazer? – gritou.

– Espere – disse. – Louise, deixe-me explicar. Quero…

Mas ela já desaparecera. Senti o ar quente entrar pela porta aberta, como água do mar a deslizar sobre um banco de areia, e vi a neve a derreter à minha volta, como ouro dos tolos.

Tentei escrever-lhe uma carta mas a folha de papel era um campo de neve pura que eu apenas arruinei ao cobri-lo com as marcas da minha pena. Assim, em vez disso, mandei-lhe o boneco de neve, numa bandeja transportada por dois lacaios, dirigida a Louise de Keroualle no apartamento de madame Henrietta, duquesa de Orleães.

Foi-me devolvido uma hora depois, meio derretido devido à viagem pelo palácio.

Fui vê-la, mas não me foi permitida a entrada. Assim, esperei no jardim, perto do pomar de nespereiras, na esperança de um vislumbre.

Por fim vi-a a dirigir-se ao pomar. Tinha algo nas mãos – um xaile, ao que parecia.

– Louise! – chamei.

Por um momento ela virou a cabeça e pareceu-me que hesitava, mas depois apressou o passo e continuou a andar. Perdi-a de vista atrás de uma sebe e corri para a apanhar. Os jardins nesta parte de Versalhes eram como um labirinto; uma série de pátios e relvados interligados, todos escondidos uns dos outros. Ela não estava no jardim seguinte mas, através de uma abertura na sebe, vi uma ponta do seu vestido.

Por fim, quando contornei uma fonte, vi-a.

– Louise! – chamei de novo, mas percebi então que ela estava a juntar-se a um pequeno grupo. Entre as pessoas ali reunidas estava a sua senhora, madame Henrietta, sentada num banco de pedra. Mesmo a esta distância, vi como ela parecia frágil e curvada. Ao seu lado estava o rei, bem como Buckingham e dois dos ministros do rei.

– A sério, não é nada – disse Madame em voz fraca quando Louise lhe pôs o xaile sobre os ombros. – Apenas uma tontura, Vossa Majestade.

– O ar está fresco – disse Buckingham. – Talvez prefira que nos retiremos para o interior?

O rei vira-me.

– Signor Demirco. Quem procura?

Apercebi-me de que estava parado a olhar para eles como um idiota.

– Vossa Majestade… quer dizer, pensei que talvez madame la comptesse gostasse de um cordial. Sei que toma chicória gelada, por vezes, para a digestão.

Luís lançou um olhar interrogativo a Madame.

– Talvez mais tarde – disse ela debilmente. – Pode enviá-lo para os meus aposentos.

– Signor Demirco? – chamou o rei enquanto eu me retirava.

– Vossa Majestade?

– Como vai o gelo para o rei inglês? Estamos à espera de algo maravilhoso, como sabe.

Curvei-me de novo.

– Ainda não pensei em nada adequado, senhor.

Uma expressão levemente surpreendida surgiu no rosto do rei.

– Bom, não espere demasiado tempo.

Virou-se para os outros e, enquanto me afastava, com as orelhas a arder, apanhei as palavras:

– Italiano… não é de fiar… mas muito inventivo: verá, milord duque, verá.

Esperei até os ver regressar ao palácio. O rei ia a apontar para os lados, sem dúvida a explicar ao inglês os seus planos para alargar ainda mais os magníficos jardins. Louise caminhava um pouco mais atrás. Aproveitando a oportunidade, aproximei-me dela.

– Preciso de falar consigo.

Ela desviou os olhos para o rei.

– Não acha que já o ofendeu o suficiente por um dia?

Olhei para o rei, que traçava com a mão fontes imaginárias no ar.

– Disse-lhe apenas que ainda não tinha feito o gelo. Como é que isso é ofensivo?

– Deu a entender, em frente de um visitante estrangeiro, que andar atrás de uma dama de companhia assume precedência sobre uma ordem real. Pode ser uma ofensa ligeira, mas garanto-lhe que ele não a esquecerá… se assim o entender.

– Não andava atrás de si.

– Fico contente por saber disso. Obviamente devia ter outro motivo urgente para correr na minha direcção.

– Vim dizer-lhe que a amo.

Ela estacou abruptamente. Depois, de rosto tenso, recomeçou a andar na direcção do palácio.

– Não faça pouco de mim.

– Louise, não estou a brincar. Os meus sentimentos são totalmente genuínos.

– Então a Olympe de Soissons expulsou-o da sua cama? – Viu a minha expressão de surpresa. – Oh, julgava que ninguém sabia disso? Estamos na corte, signor. Os segredos são tudo o que as pessoas têm para falar.

Fiz um gesto.

– Ela não significa nada para mim. Uma diversão, apenas isso.

– Enquanto eu, claro, seria muito mais. – Disse-o em tom sardónico mas abrandou um pouco o passo. – Por favor, compreenda: não pretendo ser indelicada em relação aos seus sentimentos. Porém, quando vim para a corte, cometi um erro idiota. Deixei que o meu nome fosse associado ao de um homem… um homem de nascimento nobre, na realidade, mas que esteve envolvido em alguns escândalos. Ninguém o criticou a ele por isso, claro; mas viram-me com ele e presumiram que eu estava a comportar-me como essas outras mulheres e a minha reputação ficou manchada. Se não fosse Madame, teria caído em desgraça e ver-me-ia forçada a deixar a corte. Não voltarei a cometer o mesmo erro.

– Nem eu o desejaria. Pretendo casar consigo, Louise.

Ela parou de novo, de olhos muito abertos.

– Tenho o favor do rei; a minha posição está segura – prossegui rapidamente. – E tê-la ao meu lado seria uma vantagem para mim: compreende os meandros da corte… – Calei-me, silenciado pela expressão nos olhos dela.

O quê? – perguntou, incrédula.

– Quero casar consigo – repeti.

Por um momento, ela fitou-me como se estivesse louco.

– Eu sou Louise Renee de Penacöet, dama de Keroualle, a filha mais velha da família mais antiga da Bretanha – disse, em tom lento e deliberado. – A nossa linhagem remonta às Cruzadas.

– E então? Disse-me que os seus pais a tinham enviado para a corte para arranjar um marido…

– Mandaram-me para a corte para arranjar um duque. Ou, no mínimo, o irmão mais novo de um duque. – Abanou a cabeça, como se não quisesse acreditar que isto estava a acontecer. – Por favor, compreenda uma coisa, signor: não tenho nada contra si, pessoalmente. Se fosse de família nobre, estou certa de que o meu pai fecharia os olhos ao facto de o senhor ser um libertino italiano frívolo e hedonista, que não tem actividade mais digna para passar o tempo do que produzir guloseimas para cortesãos glutões… quando não está a seduzir damas de companhia, claro está. Mas, a menos que seja um Médicis ou um Mazarin, receio que dificilmente ele terá uma visão tão condescendente.

Agora furioso, disse-lhe:

– Não sei quem eram os meus pais. Apenas que eram pobres e me deixaram para traçar o meu próprio caminho neste mundo.

Ela suspirou e pareceu-me que falava em tom um pouco menos mordaz.

– Bom, lamento muito. Mas sabe, ter liberdade de traçar o seu próprio caminho pode ser uma bênção.

Percebi o que ela queria dizer.

– Então não quer na realidade casar com um nobre…

– Não tenho escolha – interrompeu ela. – Não partilho ne­cessariamente a obsessão dos meus pais com linhagem e nobreza. Mas são os meus pais e tenho de aceder aos seus desejos. É o meu dever.

– Então, nada de casamento – disse, obstinadamente. – Muito bem. Mas isso não significa…

– Oh, não – cortou-me ela a palavra. – Não pense nem por um momento que sou como a sua amiga Olympe.

– Não pretendia sugerir que fosse – murmurei.

Mas Louise estava a olhar para mim como se lhe tivesse ocorrido subitamente uma ideia.

– Foi ela que o convenceu a fazer isto?

A resposta devia estar escrita no meu rosto, porque ela não esperou que eu abrisse a boca para acrescentar:

– Claro. Maravilhoso. Isto é a ideia que ela faz de uma piada, não é?

– Não – protestei.

– Não? Provocar-me em relação à minha situação delicada é precisamente o tipo de coisa que ela acharia divertida. – Sorriu, tristemente. – Suponho que estou a pagar por aquilo que penso dela e de outras como ela. Bom, pode congratular-se, signor. Logo à noite, esta sua partida já será a diversão de toda a corte.

– Espere – chamei, enquanto ela virava costas. – Espere. Louise… eu não estava a brincar. Quer dizer, a ideia pode ter sido da Olympe, mas…

Era tarde de mais. Louise desapareceu dentro de casa. Mas não antes de eu ver lágrimas naqueles olhos verdes.

*

Voltei ao palácio onde, quase de imediato, encontrei Olympe. Era evidente que estivera a observar de uma das janelas que davam para os jardins.

– Então? – perguntou.

– Ela recusou – respondi, secamente.

– A sério? – O rosto de Olympe era o retrato da inocência. – Por algum motivo em particular?

– Disse que casar com um confeiteiro italiano sem berço nobre era impensável.

Olympe acenou com expressão séria, mas havia um brilho divertido nos seus olhos.

– Ela por acaso mencionou a sua linhagem nobre? A família mais antiga da Bretanha? Falou… – arregalou muito os olhos – …nas Cruzadas?

– Sim – confirmei. – Também perguntou se foste tu que me convenceste a fazer isto. Ao que parece, a nossa associação é bem conhecida.

Olympe fechou os olhos e os seus ombros tremeram.

– Impagável! – conseguiu arquejar. – Impagável!

– Ainda bem que achaste graça.

– Oh, Carlo, não fiques assim – disse ela, limpando os olhos. – Tens de ver o lado engraçado… ela deve ter ficado furiosa; é bem feita, por ser uma prudefemme tão virtuosa.

Ri-me, mas sem grande vontade; embora não houvesse dúvida de que Louise de Keroualle se revelara excessivamente orgulhosa e totalmente desprovida da frivolidade que tanto animava a nossa vida na corte, não pude deixar de sentir que não saíra deste episódio com muito boa imagem.

– Parece que me enganaste bem – disse-lhe.

Olympe sorriu.

– Tu é que te enganaste a ti próprio. Eu fiz-te um favor. Corrias o perigo de deixares as tuas emoções atrapalharem os teus prazeres. Às vezes, é preciso recuar um pouco.

– Claro – disse. – Obrigado.

Não valia a pena discutir mais com Olympe, e ela estava certa, claro: eu tinha permitido que os meus sentimentos me toldassem o julgamento. Mas não podia deixar de pensar em como me sentiria diferente neste momento se a resposta de Louise ao meu pedido tivesse sido «sim».

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