CARLO
As sebes inglesas fornecem muitas coisas boas para os gelos.
O Livro dos Gelos
Finalmente, o rei estava a comer gelos. Mas apenas com Louise. Todos os dias eu enviava um diferente para os aposentos dela. Ameixas, rosa selvagem, pêra, amora silvestre e as grandes avelãs doces a que chamam avelãs do Kent. As nozes e frutos semelhantes colocam os seus próprios desafios, claro – têm de ser picadas e depois tostadas: eu ansiava por conseguir juntar a sua textura crocante ao creme aveludado que conseguira no meu gelado de pêra, mas, embora tivesse tentado muitas vezes replicar essa textura suave, continuava a ser algo que parecia acontecer apenas por acaso. A dada altura, pensei que devia ter algo a ver com ovos, uma vez que tanto o crème anglaise como a posset e o leite-creme de Hannah tinham claras ou gemas de ovos, mas quando tentei juntar ovo batido ao meu xarope, consegui apenas uma omeleta com recheio de fruta.
Havia agora trabalho suficiente para eu ter Elias comigo todos os dias. Embora ele fosse novo, não era mais novo do que eu quando comecei a trabalhar para Ahmad, e, do ponto de vista do segredo, quanto mais novo, melhor, uma vez que dificilmente compreenderia o suficiente para explicar o processo a outra pessoa. Na verdade, ele revelou-se um aluno interessado, passando horas sem fim a raspar o gelo sem queixumes, e, embora fizesse muitas perguntas, eu tinha o cuidado de não lhe dizer demasiado.
No entanto, fiquei menos satisfeito quando um dia entrei na copa e o apanhei a enfiar os dedos na última taça de sorvete de ananás que me restava.
– O que vem a ser isto? – gritei, horrorizado.
Ele deu um salto para trás, com o rosto vermelho.
– Eu disse-te para nunca provares os gelos! – exclamei, furioso.
Ele baixou a cabeça.
– Perdão, mestre. Estava apenas curioso.
– Enfiaste os teus dedos sujos num prato guardado para o rei – disse-lhe. – Possivelmente, é traição. Mais ainda, desobedeceste ao teu mestre, o que é indubitavelmente traição. Agora vais ser espancado… e podes dar-te por feliz de ser apenas por mim e não pela guarda.
Peguei numa colher de madeira e comecei a bater-lhe. Ele gritou. Levantei a colher para lhe bater de novo e, de súbito, senti-a presa por alguém atrás de mim. Virei-me. Era Hannah, a olhar para mim com ar furioso.
– O que está a fazer? – perguntei, tentando libertar a colher da sua mão. Contudo, ela era surpreendentemente forte e não consegui.
– Eu é que devia fazer essa pergunta – respondeu ela calmamente.
– Não é evidente? Estou a bater-lhe por ser um ladrão.
– O que quer que ele tenha feito, está a bater-lhe com demasiada força.
– Sou o mestre dele, e bater-lhe-ei com a força que entender – retorqui.
– E eu sou a mãe dele e não o permitirei.
– A mãe dele! – Fiquei tão surpreendido que abrandei a força com que estava a puxar a colher; ela, contudo, não fez o mesmo e a colher saiu-me da mão. Nunca ninguém me dissera que Hannah era mãe de Elias.
– Sim. – Hannah atirou a colher para o lado. – Porque parece tão surpreendido?
– Mas, nesse caso… onde está o pai dele?
Ela hesitou.
– O Elias não tem pai.
– Não sabe quem ele é, é o que quer dizer – murmurei.
– É exactamente isso que quero dizer – respondeu ela em tom desafiador. – Não sei quem ele é. E depois?
Passei a mão pela testa.
– E depois? Senhora, eu tenho o alvará real. No entanto, descubro que o meu assistente é o filho de uma meretriz. Em França ou Itália, isso seria suficiente para eu ser banido da corte.
Por um momento, os olhos dela brilharam de fúria.
– Nesse caso, as cortes de França e de Itália devem ser muito diferentes da nossa – disse. Virou-se para Elias. – É verdade? Roubaste?
– Sim – respondeu ele muito baixinho. – Provei o gelo. O de ananás.
Ela suspirou.
– Estou muito desiludida contigo. Primeiro, por tirares o que não te pertence, e segundo, por acreditares nestes disparates todos sobre gelos e ananases. Não te eduquei para seres tão idiota.
– Desculpe – disse Elias, com o lábio a tremer.
– O teu castigo será trabalhar uma semana inteira sem receberes nada. Porém, se ele te bater de novo, diz-me e deixarás de trabalhar para ele.
Eu estava tão estupefacto com esta interferência nunca antes vista na relação entre mestre e assistente que nem sabia como reagir; quando consegui recompor-me, ela já tinha saído.
– Desculpe, mestre – disse Elias, com hesitação. Nesta altura, a minha raiva já se dissipara. Na verdade, a sua expressão compungida era quase engraçada.
– Aprendeste a tua lição? – perguntei, no tom mais severo que consegui.
– Aprendi.
– Voltarás a comer os gelos do rei?
Ele abanou a cabeça.
– E o que achaste, agora que provaste? – perguntei, curioso. Esperava que ele franzisse a cara e dissesse que, afinal de contas, não era grande coisa, mas para minha surpresa os seus olhos iluminaram-se.
– Oh! É maravilhoso! – exclamou.
Ergui as sobrancelhas.
– Bom, não te habitues. Não te deixarei provar outro durante muito tempo.
– Porque está tão macambúzio? – perguntou Cassell. O soldado aparecia mais ou menos uma vez por semana, para trazer cartas ou para me extrair informação sobre a corte. Hoje, contudo, apanhara-me de mau humor.
– Sempre sofri de melancolia – disse-lhe. – Particularmente nesta altura do ano.
– Vocês, italianos, são reconhecidamente temperamentais. Deviam tentar montar a cavalo, ou praticar esgrima. – De súbito, a sua expressão animou-se. – Já sei! Vou levá-lo ao teatro. Vamos, eu insisto. – E assim, dei por mim num barco a caminho de Charing Cross, e depois a subir Drury Lane até ao Teatro do Rei.
Esta era a maior das duas companhias teatrais de Londres, explicou-me ele enquanto fazíamos fila para nos sentarmos. A outra era a do Duque, que tinha o patrocínio do irmão do rei, o duque de Iorque. Era a primeira vez que eu visitava qualquer uma das casas. Para minha surpresa, homens e mulheres sentavam-se abertamente na plateia, lado a lado, enquanto na segunda plateia algumas das mulheres tinham máscaras. Isto, disse-me Cassell, era sinal de que estavam ali para se divertirem e não se importavam de ser apalpadas. Entretanto, pequenas raparigas órfãs corriam pelas coxias com cestos de laranjas; o cheiro dos frutos, quando eram descascados, misturado com o das velas de cera que iluminavam o palco, mitigava felizmente o fedor de tanta gente vulgar apinhada no mesmo espaço.
Antes de a peça começar, dois trombeteiros anunciaram o rei e as pessoas levantaram-se com um respeito superficial enquanto o séquito real se sentava num camarim ao lado do palco – mais uma vez, fiquei espantado com a ausência de formalidade com que isto era feito, em comparação com França ou Itália. Louise estava ao lado do rei e trazia um chapéu francês elegante, o que queria dizer grande. Ouviram-se murmúrios entre a audiência quando ela apareceu.
O papel feminino principal, nesse dia, era desempenhado por uma actriz identificada no programa como senhora Eleanor Gwynne, embora, tanto quanto percebi por aquilo que me disse Cassell, ela não fosse casada. O público – que obviamente a adorava, ao ponto de chamar por ela durante a representação – tratava-a por «Nellie» ou «Nell». O programa era duplo. Primeiro, uma peça séria sobre o martírio de Santa Catarina; achei-a bastante boa, embora os espectadores estivessem agitados, atirando cascas de laranja aos actores menos impressionantes – mas nunca a Nellie. Só aplaudiram a sério no momento em que, depois de a acção terminar, quando Nell jazia morta no palco e o cangalheiro se aproximava para a levar, ela se levantou subitamente e o deteve.
«Alto! Está louco? Seu maldito cão rafeiro!
Tenho de me erguer e declamar o epílogo!»
O teatro quase veio abaixo com aplausos e risos, que se silenciaram apenas quando Nellie ergueu a mão. Depois seguiu-se um discurso repleto de insinuações libidinosas até que, por fim, ela avançou até à parte lateral do palco e se dirigiu ao próprio rei.
«Até à vista, senhor, apressai-vos a regressar para mim:
Em breve terei de novo a vossa companhia.
Quanto ao meu epitáfio, quando eu morrer
Não confio em nenhum poeta, serei eu a escrevê-lo:
‘Aqui jaz Nellie, que, embora vivesse na má vida,
Morreu uma princesa, a representar Santa Catarina.’»
Depois começou a dançar, levantando as saias e rodopiando de modo a que estas subissem cada vez mais, uma exibição que o público encorajou com assobios e aplausos. Ela era bastante bonita, com pernas bem torneadas e um rosto que parecia repleto de piada e exuberância; mas eu, pessoalmente, não via qual era o atractivo.
A segunda peça chamava-se A Conquista de Granada. Desta vez, a senhora Gwynne fez a sua entrada com uma indumentária exótica, um chapéu do tamanho da roda de uma carruagem, uma grande cabeleira preta caída sobre os ombros e botas demasiado grandes nos pés. O público riu ruidosamente.
– Qual é a piada? – perguntei a Cassell. Ele também estava a rir, mas limitou-se a abanar a cabeça.
Ainda com o chapéu enorme na cabeça, a actriz avançou até junto de um actor, com uma coroa de papel na cabeça, que estava a remexer numa caixa de jóias. Depois começou a falar. A sua voz mudara desde a peça anterior – agora falava numa espécie de inglês macarrónico e arrastado. Mas havia qualquer coisa familiar naquele sotaque.
De súbito, percebi o que estava a ver. O chapéu enorme era uma imitação da moda francesa e o sotaque pretendia ser o de Louise – na verdade, era Louise: com uma precisão inquietante, a actriz transformara-se, de alguma forma, na mulher francesa. A dada altura atravessou o palco, a estrutura delicada adoptando o passo ágil das pernas compridas de Louise; o leve toque de determinação na postura de Louise estava agora comicamente exagerado, numa paródia de uma coquete mandona, mimada e provocante.
– Mim não má senhora! – ceceou Nellie, empurrando o actor. – Se mim pensar ser tão má senhora, mim cortar a garganta!
– Madame Cartwheel! Não vê que eu a amo? – implorou o homem, caindo sobre um joelho e piscando o olho à audiência, que estava agora perdida de riso. Até as vendedoras de laranjas estavam agarradas à barriga, com a mercadoria a tombar dos cestos.
– Oh, Vossa Majestade, mim não poder amar vós. Pois mim ser grande dama de França.
O homem ofereceu-lhe algumas jóias.
– Bom… talvez mim poder amar vós só um bocadinho – disse ela, enfiando as jóias no decote. O público estava descontrolado.
Olhei para o rei, que estava a tremer de riso. Ao lado dele, no camarote real, o rosto de Louise permanecia inexpressivo.
– Já estou farto – disse a Cassell.
Ele estava agarrado à barriga, como se lhe doesse.
– Não… espere – disse. – A peça já vai começar.
– Já vi palhaçadas suficientes para um só dia. – Zangado, abri caminho entre a multidão até ao exterior, empurrando homens e mulheres, com Cassell a seguir-me de má vontade.
– Quis que eu visse isto – disse-lhe, quando nos vimos finalmente em Drury Lane.
Ele acenou, sem qualquer sinal de embaraço.
– Porquê?
– Venha, vamos procurar uma taberna. – Começou a descer em direcção ao Strand e eu acompanhei-o.
– Uma coisa é seduzir o rei – disse ele, calmamente. – Outra muito diferente será mantê-lo. Como acabou de ver, não há falta de mulheres ansiosas por partilhar os despojos.
– A Nell Gwynne?
– Entre outras. A duquesa de Cleveland conquistou os seus títulos na cama dele, e ainda é bem capaz de acrescentar mais alguns à colecção. A actriz Moll Davies tem uma bela casa em Pall Mall. A Peggy Clift tem uma pensão de oitocentas libras por ano. E estas são apenas as que ele já teve. Há neste preciso momento uma vintena de jovens na corte, todas elas ansiosas por ocuparem o lugar de madame Carwell. – Virou na direcção de uma taberna com vista para o rio. – Será preciso mais do que mera aquiescência: ela vai precisar de todos os seus truques sujos franceses se quer…
Nunca terminou a frase. Rodei sobre mim próprio e dei-lhe um soco na cara. Senti os nós dos dedos contra os dentes dele e depois dei por mim no chão, com a faca de Cassell encostada à garganta, a lâmina tão firme como os olhos que se cravavam nos meus.
– Cuidado, signor – murmurou ele. – Ganhei simpatia por si, mas não aceitarei um insulto desses de homem nenhum.
– Nem eu – retorqui, devolvendo o olhar.
Passado algum tempo, ele afastou a faca.
– Por amor de Cristo – disse, incrédulo. – Também tem um fraquinho por ela.
Levantei-me.
– Não seja ridículo. Simplesmente ofende-me a insinuação de que sou, de alguma forma, o chulo de Louise. Se deseja falar com ela sobre o que deve ou não deve fazer, faça-o directamente.
Ele começou a sacudir-me a terra das costas, tão calmo agora como se a nossa altercação nunca tivesse acontecido.
– Se o ofendi inadvertidamente, signor, por favor aceite as minhas desculpas. – O seu tom era cortês mas, apesar disso, a expressão dos seus olhos era pensativa.