CARLO
Para fazer um sorvete de damasco: descaroce e escalde doze damascos maduros e passe-os por um coador: adicione cento e setenta gramas de açúcar mascavado mole e bata a mistura com um pouco de creme de limonada. Ferva em lume brando e depois coloque no pote de congelamento e trabalhe-o até ficar muito fino.
O Livro dos Gelos
Tive a grande sorte de haver entre as princesas Médicis, nesta altura, uma dama chamada Cosima de Médicis que nunca se casou. Em vez disso, dedicou a sua vida e parte considerável da fortuna dos Médicis que herdou a obras de caridade, uma das quais foi fundar uma espécie de escola para meninos de rua, órfãos e filhos dos seus criados, sob a tutela de dois ou três homens de grande erudição. Tive a sorte de me juntar a este grupo, já que o meu mestre temia demasiado pela sua própria posição para ter outra reacção a não ser fingir-se encantado com o plano. Não consigo imaginar o que aqueles pensadores e eruditos eminentes pensariam por ter de ensinar os rudimentos do saber a uma colecção de ragazzi como nós, mas o poder da riqueza é tanto que, três vezes por semana, todos entrávamos na grande biblioteca por cima do Claustro dos Cânones e estudávamos as nossas primeiras letras pelos manuscritos preciosos que nela se encontravam. A princesa Cosima era criticada por este esquema, creio eu, particularmente pelo clero, pois dizia-se que espalhar o conhecimento além da Igreja só poderia ter maus resultados, e que confundiria pobres crianças ignorantes como nós quanto ao nosso lugar na ordem natural das coisas. Porém, a minha educação não foi benéfica para mim apenas em termos de conhecimentos. Não fiz de propósito para estudar os que me rodeavam e tentar copiar os seus modos, mas, tal como uma criança falará a língua dos seus pais simplesmente por a ouvir, da mesma forma ao crescer naquela corte eu adquiri, sem me aperceber disso, alguns dos modos e o comportamento agradável de um cavalheiro. Creio também que o facto de ser ensinado em latim desde tão novo foi responsável pela minha fluência em línguas – uma capacidade que me tem sido quase tão útil como a minha perícia com o gelo.
À medida que os anos passavam, comecei, gradualmente, a desprezar o meu mestre. Apesar de se esforçar ao máximo para garantir que eu vivia num temor mortal dele, era ele próprio um homem com medo; e aquilo que temia, acima de tudo, era que alguém lhe roubasse os segredos. Contava muitas vezes a história do famoso cozinheiro, chef d’équipe de um grande nobre, que estava tão orgulhoso das suas criações que decidiu escrever as receitas e publicá-las num livro. O livro foi um grande sucesso, amplamente copiado e republicado (sem, naturalmente, qualquer pagamento ao autor); entretanto, outros cozinheiros apoderaram-se das receitas e melhoraram-nas, ou simplesmente serviam os pratos como se fossem de sua autoria. O resultado foi que o cozinheiro foi despedido, o seu lugar ocupado por um rival mais novo, e morreu famoso mas na miséria. Ahmad dizia que esta história demonstrava a loucura de procurar elogios em vez de riquezas neste mundo.
Por vezes, eu perguntava-me por que motivo Ahmad parecia tão disposto a partilhar o seu conhecimento comigo; mas rapidamente concluí que, para ele, eu era apenas uma besta de carga, uma criatura incapaz de pensar. Ensinava-me o que sabia, não por querer partilhar os seus segredos, mas porque queria partilhar o trabalho. E assim aprendi a diferença entre os quatro tipos de gelos que se podem fazer; cordiale ou licores, aos quais se juntava neve esmagada para os refrescar; granite, aparas de água gelada sobre as quais se derramavam xaropes feitos de água de rosas ou de laranjas; sorbetti, gelos de água mais complexos em que eram os próprios xaropes que se congelavam, a mistura mexida enquanto endurecia de modo a que os fragmentos ficassem no pote como um monte de safiras cintilantes; e finalmente sorvetes, os mais difíceis de todos, feitos com leite aromatizado com mástique ou cardamomo, de forma a parecer neve que voltara a congelar durante a noite. Aprendi a construir obeliscos de geleia congelada; a usar moldes de ourives para fazer fantásticos pratos e taças congelados, e a esculpir o gelo em decorações extravagantes para a mesa. Dominei os talentos espectaculares do grande engenheiro Buotalenti, que construíra fontes, mesas e até grutas de gelo. No entanto, sabia que se dissesse uma palavra sobre estas técnicas a alguém Ahmad me mandaria cegar e arrancar a língua com um daqueles ferros em brasa que usávamos para fazer as esculturas de gelo. Deu também a entender que ainda havia segredos que eu não conhecia: ingredientes especiais e gomas descritos nos seus livros que estava a guardar para si, de modo a garantir que eu soubesse sempre menos do que ele.
Contudo, reparei que a aprendizagem era só num sentido. Tal como já disse, observava muitas vezes os cozinheiros à nossa volta enquanto trabalhavam e, às vezes, parecia-me que as suas confecções dariam bons xaropes para aromatizar os nossos gelos. Um dolci de espuma de limão e vinho doce, por exemplo, ou fatias de meloa, cuja doçura natural era contrabalançada com uns pozinhos de gengibre moído – certamente que estes eram sabores que nos proporcionariam uma variedade bem-vinda. Contudo, se eu sugerisse que tentássemos tal coisa, mesmo como experiência apenas, Ahmad olharia para mim como se fosse louco.
– Não é um dos quatro sabores. Se não acreditas em mim, vai ver ao livro.
Estava a provocar-me, claro: sabia que eu não conseguia ler árabe, a língua em que estavam escritos os seus livros. Nem precisava de os ler para conhecer os poucos sabores – água de rosas, laranja, mástique e cardamomo – que as antigas páginas permitiam.
Também me parecia que, se os nossos gelos tinham um inconveniente, era aquela pontada de dor que me apertara a garganta ao esmagar os cristais com sabor a laranja entre os dentes. Parecia derivar da acção de morder o gelo e era, assim, presumivelmente impossível de erradicar. Tentávamos fazer os cristais de gelo tão pequenos quanto possível, raspando o gelo dos blocos com uma espécie de luva de malha metálica até serem tão pequenos como grãos de sal ou açúcar: no entanto, se ultrapassássemos um determinado tamanho, o gelo derretia e transformava-se em água, e a única coisa que ficava na taça ou no copo depois disso era uma espécie de lama com sabor a laranja ou a água de rosas. Eu ansiava por conseguir fazer um gelo que fosse tão suave, espesso e liso como aquele chocolate que o cozinheiro me dera a provar; um gelo que contivesse o frio do gelo, sem a sua aspereza.
Um dia, Ahmad ausentou-se das cozinhas, com dor de dentes. Deixou-me com instruções rigorosas sobre como ocupar o meu tempo, mas evidentemente que o arrancar do dente fora mais doloroso do que ele esperava, pois não voltou quando disse que voltaria. Por fim, vi a minha oportunidade.
Era a estação dos damascos. Os cozinheiros serviam-nos aos Médicis descascados e partidos em quartos, com sumo de melão e um pouco de natas. Peguei numa taça que já fora preparada para a mesa do grão-duque, esmaguei o conteúdo, despejei a mistura na sabotiere, o pote de congelamento, e esperei ansiosamente que congelasse, mexendo-a da forma habitual.
Não foi um sucesso. A mistura congelou, sem dúvida, mas as várias partes tinham congelado de forma diferente – ou seja, havia pedaços de damasco duros como pedra e cristais de sumo de melão congelado, mas as natas tinham ficado esfiapadas, como ovo talhado, e, longe de se combinarem, os vários elementos pareciam ter-se separado ainda mais. Quando tentei comer uma colherada desta mistura granulosa, as várias partes nem sequer derreteram da mesma forma na minha língua, pelo que era como mastigar gravilha congelada. Apesar disso, havia algo na frescura da fruta e na doçura do sumo de melão que constituía uma mudança refrescante em relação aos sabores fortemente perfumados em que Ahmad insistia.
Apercebi-me de que uma solução melhor seria fazer um simples cordial ou xarope de damasco e depois congelá-lo – um sorbetto, na verdade. A suavidade teria de ficar para outra vez: o que era importante aqui era o sabor da fruta. Quando fui buscar outro prato de damascos, assisti a uma violenta altercação entre o cozinheiro que preparara o anterior e um criado que ele estava a acusar de o ter roubado. Não era a melhor altura para tentar subtrair outro. Além disso, Ahmad podia voltar a qualquer momento e eu tinha de limpar todos os utensílios antes que ele percebesse o que eu andara a fazer.
Assim começou um período em que eu vivia uma vida dupla. Com Ahmad, durante o dia, era um criado, que seguia as suas instruções obedientemente e sem queixume. À noite, porém, era uma espécie de alquimista, com a cozinha como laboratório, enquanto fazia experiências com diferentes combinações de sabores e ingredientes. Nada era extravagante ou ridículo de mais para eu experimentar. Congelei queijos moles, digestifs, sumos de legumes e até sopas. Fiz gelos de vinho, de pesto Genovese, de leite de amêndoas, de funcho esmagado e de todos os tipos diferentes de creme. Fiz experiências loucas, cegas, sem método nem objectivo, na esperança de tropeçar em algo, por sorte – algum método, alguma chave – que estava certo de que existia, algures: alguma coisa que conseguisse desvendar os segredos mais profundos e congelados do gelo. Era como se o próprio gelo me chamasse, me incentivasse: e, embora não possa afirmar ter conseguido descobrir aquilo que resultaria ou não, tal como um pintor ao praticar com a sua palete ganha um entendimento de quais as cores que deve misturar para alcançar um determinado efeito, assim eu me fui tornando aos poucos mais fluente na linguagem dos sabores. Estou certo de que Ahmad reparou na minha confiança crescente, mas certamente que a atribuiu ao facto de eu estar a ficar mais velho.
Houve também outras mudanças. Eu estava consciente de estar a tornar-me um homem, pelo fogo que me incendiava as veias; e um homem razoavelmente bem-parecido, a julgar pelos olhares de admiração que recebia das raparigas que trabalhavam nas cozinhas, para não mencionar os comentários indecentes das suas colegas mais velhas e casadas. E depois havia Emilia Grandinetti… Tal como eu, ela tinha quinze anos. Era aprendiz de uma das costureiras que fazia vestidos para a corte e a coisa mais doce que eu alguma vez vira. A sua pele era da cor de manteiga quando é aquecida numa frigideira: os seus dentes e o branco dos seus olhos eram claros e brilhantes como neve, naquele rosto escuro e sorridente. Em breve os olhares entre nós os dois se transformaram em sorrisos; os namoricos em conversas; os risos em amor. Sou o príncipe mais sortudo de toda a Florença, pensava eu, orgulhosamente. Passávamos horas roubadas sentados no telhado do palácio, onde ninguém podia ver-nos, tontos de amor, de mãos dadas, a falar sobre os nossos sonhos.
– Eu vou ser o maior confeiteiro do mundo – disse-lhe.
– Sim? E como é que vais fazer isso? – provocou-me ela.
– Vou fazer gelos de mil sabores. Os gelos mais suaves e suculentos que alguma vez foram feitos.
No entanto, quando lhe disse que faria um gelo especialmente para ela e o roubaria da cozinha, ela abanou a cabeça.
– Não quero que arranjes problemas.
Perguntava-lhe também sobre as suas esperanças para o futuro, mas tinham todas a ver comigo: queria que ficássemos juntos, que constituíssemos família; talvez, se tivéssemos muita sorte, pudéssemos ver um dia os nossos filhos tornarem-se também criados dos Médicis.
*
O casamento era proibido aos aprendizes, mas aqueles que tinham a permissão dos seus mestres podiam ficar noivos, e o noivado de um aprendiz era considerado quase a mesma coisa do que um casamento, se não propriamente aos olhos de Deus, pelo menos aos olhos dos que estavam imediatamente abaixo Dele. Assim, esperei pelo momento mais auspicioso e abordei o assunto com Ahmad.
Estávamos a trabalhar numa magnífica escultura de gelo de uma águia em voo, a peça central de uma mesa de geleias congeladas. Era eu que fazia agora a maior parte do trabalho, com as mãos enroladas em trapos para as proteger do frio. Não só o meu toque era mais seguro do que o do meu mestre e a minha visão melhor, como aguentava o trabalho durante mais tempo – quase como se o frio que reclamara o meu dedo tivesse, ao mesmo tempo, entorpecido o resto de mim contra os seus efeitos. Ou talvez, pensei, enquanto polia o gelo até a escultura parecer brilhar a partir do interior, o meu mestre estivesse apenas a ficar velho e preguiçoso. Sabia que nesta ocasião, pelo menos, Ahmad estava satisfeito com o meu trabalho: quando acabei, o persa acenou e resmungou, de má vontade:
– Nada mau.
– Mestre, tenho estado a pensar… – comecei.
– Sim? O que foi?
– Há uma rapariga de quem me aproximei. Estava a pensar se me daria a sua permissão para ficar noivo dela.
Ahmad estava atarefado a limpar a mesa onde tínhamos estado a trabalhar.
– O que te leva a pensar que a minha permissão fará alguma diferença?
– São as regras dos aprendizes, senhor – recordei-lhe. – Não posso casar sem o consentimento do meu mestre.
Ahmad lançou-me um olhar divertido.
– Consideras-te meu aprendiz, é?
– Claro – respondi, surpreendido. – Que outra coisa poderia ser? – Por um momento delirante pensei que ele estava prestes a dizer-me que não me considerava um aprendiz, mas sim um igual; talvez até, um dia, seu sócio.
– O lugar de aprendiz compra-se – disse ele, em tom seco. – Os teus pais eram pobres.
– Não compreendo. Tão pobres que não podiam comprar-me o lugar de aprendiz?
– Ainda mais pobres do que isso. Tão pobres que ficaram felizes por te vender. Não és nenhum aprendiz, rapaz, e nunca serás. És minha propriedade e não terás liberdade em toda a tua vida para ficares noivo de rapariga nenhuma, muito menos casar. – Atirou os trapos ensopados para o lado. – Agora leva isto lá para fora e lava-os.
Foi o estilhaço de gelo no meu coração que me salvou. Se não fosse isso, talvez tivesse matado o persa ali mesmo, e para o diabo com as consequências.
Não casar. Isso já era suficientemente mau, mas se eu não tinha liberdade para casar isso significava também que não tinha liberdade para me tornar um artífice por direito próprio. Seria propriedade de Ahmad até ao dia em que morresse. Nunca teria oportunidade de criar nada por mim próprio: iria para a campa ainda a produzir os quatro sabores dos seus malditos livros. A minha vida seria desperdiçada, a minha carne e sangue derreteriam na sepultura, tal como um bloco de gelo esquecido em cima de uma mesa derrete até ser água. Ao pensar nisso, uma fúria surda e terrível palpitava-me nas veias. Apesar disso, como um bolbo debaixo do solo congelado, esperei, contendo a minha raiva, por uma oportunidade.
A oportunidade foi um francês chamado Lucian Audiger. Nunca soube como ele me encontrou: presumivelmente subornou alguém para obter informação sobre os fazedores de gelos persas e falaram-lhe num jovem italiano que talvez fosse um elo mais fraco. Na verdade, reunir informação era a grande capacidade de Audiger, embora ele próprio acreditasse ser movido apenas por um desejo ardente de se tornar um grande confeiteiro. Era por isso que viajara – primeiro para Espanha, onde aprendera a arte de fazer água de sementes como pinhões, coentros, pistácio e anis; depois para a Holanda, onde estudara a destilação, tanto de flores como de frutos; e daí para a Alemanha, onde aprendera a dominar a arte de fazer xaropes. Era inevitável que chegasse eventualmente a Itália, onde tanto os Habsburgos em Nápoles como os Médicis em Florença eram famosos por misturarem neve e gelo nos seus vinhos e sobremesas.
Veio ter comigo a meio da noite e sacudiu-me para me acordar. A pessoa que o trouxera através do labirinto de salas de serviço desapareceu, sem ser vista, e quando eu acordei completamente Audiger já estava a falar de Paris, da corte gloriosa que o jovem Luís XIV estava a construir, dos palácios novos em Marly e Versalhes; riquezas muito superiores até à dos Médicis, e uma cidade repleta de homens e mulheres elegantes, ávidos por novas delícias. Havia casas de café e chocolate a abrir por toda a cidade de Paris: uma pessoa capaz de fazer bebidas geladas e confecções frescas nunca passaria fome, e, juntos – dois homens jovens que, entre ambos, conseguiriam criar todo o tipo de confecções ou novidades – certamente que chegariam ao serviço do próprio rei… Nesta altura eu já quase não estava a ouvir. Ouvira tudo o que precisava. Se queria fugir da corte dos Médicis com os segredos do negócio de um persa na cabeça, precisava apenas de duas coisas: um protector de poder pelo menos equivalente ao dos Médicis, para que não pudessem simplesmente exigir o meu regresso, e ir para um sítio muito, muito longe do alcance de um punhal persa.
– Tenho duas condições – disse, quando Audiger finalmente parou para respirar.
– Quais?
– Nunca chamar mestre a ninguém. E vinte e quatro horas para tentar convencer a Emilia a vir também.
– Feito – disse Audiger, estendendo a mão. – Encontramo-nos junto da Porta San Miniato à meia-noite de amanhã.
*
Tão cedo quanto achei decente, na manhã seguinte, fui ter com Emilia à sala das costureiras. Puxei-a à parte e contei-lhe o meu plano.
– Mas… – disse ela. A sua voz fraquejou. – Se fugires, serás apanhado. E depois irás para a prisão. Podes até ser enforcado.
– É a única opção, agora. Não percebes? Não há nada para nós aqui. Se partirmos, pelo menos teremos uma oportunidade.
Ela olhou em volta.
– Não posso falar agora. A minha mestra…
– Emilia! – sussurrei. – Tenho de saber. Vens ou não?
– Eu… eu… – gaguejou, lançando um olhar nervoso à porta, e nesse momento compreendi que ela tinha demasiado medo.
Desesperado, disse:
– Ouve, eu compreendo, cara. Amavas-me porque pensavas que era permitido. Agora que achas que isso pode arranjar-te problemas, estás assustada. Mas é a única oportunidade que qualquer um de nós terá. Tenho de a aproveitar. A questão é, vens ou não vens?
– Hei-de amar-te sempre – murmurou ela.
Senti um grande peso abater-se sobre mim.
– Isso quer dizer não.
– Por favor, Carlo. É demasiado arriscado.
Nessa noite, eu estava à espera junto da Porta San Miniato muito antes de os sinos da igreja tocarem a meia-noite. Ao meu lado, tinha uma arca com um saque considerável do equipamento de fazer gelo de Ahmad.
Mandámos parar a diligence, a carruagem rápida do correio, puxada por seis cavalos, que ia de Roma a Paris em longas etapas ininterruptas. Normalmente não levava passageiros; mais uma vez, Audiger parecia ter a confiança e o dinheiro necessários para nos comprar um lugar.
Enquanto viajávamos para norte, olhei pela janela. Nunca tinha estado mais longe do que Pisa e comecei a pensar, com um aperto no coração, que cada quilómetro que fazíamos me levava para mais longe de Emilia.
– Estive a pensar – disse Audiger.
Com esforço, pus de lado os meus pensamentos e virei-me para ele.
– Sim?
– Antes de chegarmos a Paris temos de te arranjar roupas decentes. – O francês apontou para a sua indumentária elegante. – É importante que não nos pareçamos com mercadores. Na corte francesa, as aparências são tudo.
Encolhi os ombros.
– Está bem.
– E temos de pensar qual será a melhor maneira de abordar o rei. Conheço um dos seus criados particulares: podemos suborná-lo para conseguirmos chegar à presença real, mas será apenas um desperdício de tempo a menos que possamos oferecer um presente ao rei… algo especial, algo que o faça falar de nós a todos os homens e mulheres da sua corte.
– Muito bem. – Bocejei. Agora que a tensão da fuga ficara para trás, estava exausto. – Podemos fazer-lhe um gelo.
Audiger abanou a cabeça.
– Ainda mais especial do que isso.
– Vou pensar no assunto. – Esta capacidade que Audiger tinha de se preocupar não só com as próximas vinte e quatro horas, mas com eventos que não aconteceriam nos próximos dias ou semanas, espantava-me.
– Há mais uma coisa. – Audiger hesitou. – Disseste que não chamarias mestre a homem nenhum. É justo. Mas acho, apesar disso, que devias tratar-me por mestre quando estivermos na presença de outras pessoas.
Agora eu estava bem acordado.
– Porquê?
– Simplesmente porque sou mais velho do que tu. As pessoas esperam que eu seja superior. Além disso, já tenho uma certa reputação em Paris. Pareceria estranho que aparecesse com um maltrapilho italiano a reboque e o tratasse de igual para igual. Não que sejas um maltrapilho, claro – acrescentou rapidamente. – Mas é assim que as pessoas nos podem ver.
Mais uma vez, foi apenas o estilhaço de gelo no meu coração que me fez conter a raiva.
– Eu disse que não teria nenhum mestre.
– E não terás. Dividiremos os lucros entre os dois, isso está perfeitamente estabelecido. Eu não serei o teu mestre; simplesmente me chamarás mestre. Compreendes a distinção, não compreendes?
Com alguma relutância, assenti.
– Está bem.
– Óptimo. – Audiger olhou para a janela. – Mas o que dar ao rei? – disse, quase com os seus botões. – Isso é que é uma preocupação.
Enquanto adormecia, ocorreu-me que Audiger devia ter percebido mal o que eu dissera em Florença. Pensara que eu tinha dito que não queria ter nenhum mestre; mas o que eu dissera na realidade fora que não queria chamar mestre a nenhum homem, tinha quase a certeza disso. No entanto, aqui estava eu, a concordar em fazê-lo. Talvez Audiger se tivesse esquecido das palavras exactas do nosso acordo.
– Seria possível fazer um gelo de ervilhas?
Despertei, sobressaltado. A diligence tinha parado, mas apenas para os condutores se aliviarem. Audiger estava de pé à beira da estrada, junto da porta aberta, a urinar nos campos.
– O quê?
– Perguntei se era possível fazer um gelo de ervilhas – repetiu Audiger por cima do ombro. – Vê, estou a regar ervilhas neste preciso momento.
Olhei para fora da carruagem. Sob a luz brilhante da lua cheia vi um campo de ervilhas, as vagens verdes e gordas a oscilarem sob a brisa. O aroma a legumes frescos era, felizmente, mais forte do que o da urina do meu companheiro.
– O rei tem uma estranha paixão por todo o tipo de vegetais – disse Audiger. – Especialmente ervilhas. Todos os anos os seus cortesãos competem entre si para ver quem lhe traz a primeira colheita das suas propriedades… é o tipo de concurso que ele aprecia. E estas estão semanas adiantadas em relação às ervilhas em França. Estava a pensar se seria possível fazer um gelo com elas.
– Se queres dar ervilhas ao rei, porque não simplesmente colher algumas?
– Estarão murchas muito antes de chegarmos a Paris. Mesmo a diligence demora duas semanas.
– Mas podíamos congelá-las.
Audiger espreitou por detrás da porta da carruagem.
– O quê?
– Congelá-las – repeti. – Conservá-las em gelo.
Audiger olhou para mim.
– Isso é possível?
– Não só é possível, como é simples. Os persas há muito que sabem que o gelo conserva as frutas e as protege da decomposição. Com certeza que as ervilhas não serão diferentes.
– Sim? Brilhante! Do que precisas? De gelo? – Audiger olhou para o campo iluminado pelo luar. – Mas, claro, não temos gelo – disse, desanimado. – Dois fazedores de gelo, sem gelo.
– Audiger… estamos a caminho de onde?
O francês pareceu perplexo.
– De Paris?
– Passando pelos Alpes – recordei-lhe. – E, embora nunca tenha lá estado, até eu sei que os Alpes estão…
– Cheios de gelo! Carregados de gelo! Gelo e neve para onde quer que nos viremos! Sim! – Audiger atirou o chapéu ao ar e apanhou-o de novo. – Mas primeiro temos de levar as nossas ervilhas até aos Alpes – disse, em tom mais sombrio.
– Quanto tempo demora a carruagem a lá chegar?
– Dois dias, talvez três.
– A minha arca de equipamento ainda deve estar fria; os baldes de estanho e as outras coisas vieram directamente da casa de gelo de Boboli. Se pusermos as ervilhas lá dentro…
– Sim! Sim! – Audiger arremessou novamente o chapéu. – Claro! Com a minha visão, Demirco, e a tua perícia, seremos os confeiteiros do rei em menos de nada!
Dois dias depois, numa estalagem no desfiladeiro da montanha que levava a França, Audiger viu-me preparar as ervilhas.
– A neve prensada é ainda mais fria do que gelo e dura mais tempo – expliquei. – Não sei porquê. Mas tenciono descobrir, um dia.
Audiger estava a olhar para a sabotiere como um homem que espera ver um truque de prestidigitação. Muito bem, pensei: vou mostrar-te magia.
– Agora junto salitre à neve. Isso torna-a muito, muito mais fria. Também não sei exactamente porquê.
– Continua – sussurrou Audiger.
– Depois ponho as ervilhas no pote interior, assim. – Despejei as ervilhas e coloquei a tampa.
– E agora?
– Agora deixamo-las. Não é diferente de pôr um bolo no forno… se abrirmos a porta para verificar a cozedura demasiadas vezes, o calor sai e o bolo nunca mais coze. No nosso caso, é o frio que temos de conservar.
Audiger abriu o seu relógio de bolso.
– Quanto tempo?
– O período de tempo entre as matinas e a missa, segundo os sinos de Santa Maria.
– O quê?
– Aproximadamente meia hora.
Audiger passou os trinta minutos seguintes a andar de um lado para o outro. Quando finalmente abrimos a sabotiere, espreitou lá para dentro e susteve a respiração.
As ervilhas tinham-se unido numa bola, um cacho verde e prateado, salpicado de gelo. Audiger pegou-lhes e tirou-as do pote.
– Espantoso! – murmurou.
– Cuidado – avisei. – As tuas mãos vão aquecê-las e não saberão tanto a frescas se tiverem de ser congeladas uma segunda vez.
– Estão coladas! – Os dedos de Audiger estavam cobertos de ervilhas, agarradas à sua pele como cardos a luvas de lã. Tentou sacudi-las, mas não se mexeram.
– Espera. – Tirei as ervilhas congeladas uma a uma. Reparei que não ficavam coladas aos meus dedos como aos de Audiger. – Devíamos guardá-las. E temos de levar uma arca de neve prensada connosco na carruagem, para as podermos manter assim.