LOUISE


Naquele dia fatídico, atrasei-me um pouco a voltar ao apartamento de Madame. Houvera um incidente com um dos confeiteiros do rei, um assunto de pouca consequência por si só mas algo perturbador, como essas coisas podem ser por vezes. O mais aborrecido, contudo, foi que me atrasou e, enquanto subia apressadamente os degraus para o apartamento de Madame, percebi que estava sem fôlego.

Depois, quando entrei, vi aquela nobre dama a chorar e todos os pensamentos sobre o confeiteiro se evaporaram da minha mente.

– O que se passa, Madame? – perguntei.

Ela ficou sobressaltada ao ver-me.

– Apenas uma carta abjecta. – Por um momento, pensei que não diria mais nada, mas depois acrescentou: – Do meu marido.

Mantive a voz nivelada.

– Espero que monsieur le compte esteja bem.

Madame sorriu tristemente.

– Suficientemente bem para me dizer que sou uma traidora e uma meretriz; que lhe chegaram aos ouvidos mais rumores sobre mim e uma certa pessoa da corte e que devo deixá-la imediatamente e ir ter com ele a Milão, para que possa mais uma vez tentar colocar um herdeiro em mim. – Falou em tom ligeiro, mas claro que percebi a aflição na sua voz.

Devo agora descrever este modelo de perfeição, essencialmente pelo prazer de o fazer e não por qualquer necessidade de a fixar na minha mente (pois o seu retrato é tão bem conhecido aqui em Inglaterra como em França e, seja como for, não se passa um dia em que não pense nela). Era de constituição delicada – tão delicada que as roupas quase lhe caíam do corpo. Apenas eu e algumas outras sabiam a quantidade de enchimento que colocava sob os seus vestidos da corte, ou como a sua pele era tão branca que, em certos sítios, se conseguiam ver as veias azuis muito abaixo da superfície. No entanto, quando olhávamos para ela, não reparávamos na sua fragilidade, tão radiante era a sua expressão, tão intensa a bondade dos seus olhos; e quando falava da sua grande preocupação – o plano para unir os seus dois mais queridos amigos, o seu irmão Carlos e o seu protector Luís, numa aliança política que formaria a base para um grande império europeu de paz e prosperidade – os seus olhos pareciam arder com convicção; uma convicção que, juntamente com as suas muitas qualidades agradáveis e o seu charme, fora essencial no sucesso considerável da sua diplomacia até então. No entanto, não estava certamente em condições de dar um herdeiro a ninguém, mesmo que o marido conseguisse deixar de sodomizar os seus amantes do sexo masculino o tempo suficiente para a engravidar.

– E tenciona ir? – perguntei.

– Como posso? O traité simulé ainda não foi assinado. Enquan­to isso não acontecer, o traité secrete não está seguro, nem, com ele, o trono do meu irmão. – Pegou noutro envelope. – Recebi também uma carta dele.

– Do rei Carlos? Posso ver?

– Claro. – Madame sorriu do meu entusiasmo. – Na verdade, pode lê-la em voz alta. Um trago de cordial doce para limpar o gosto amargo das palavras do meu marido. – Estendeu-me a carta.

Consciente de que o meu inglês não era tão puro como o de Madame, li lentamente:

– «Minha querida Minette…»

– Minette! Ele ainda pensa que sou uma criança – comentou Madame com um sorriso no rosto.

– «Primeiro tenho de a repreender, pois na sua última carta dirigiu-se novamente a mim como Vossa Majestade, não apenas uma, mas uma dúzia de vezes. Não me trate com tanta cerimónia, nem se dirija a mim com tantos majestades, já que entre nós os dois não devia haver outra coisa a não ser afecto…» – Fiz uma pausa. – As palavras dele são tão bondosas.

– É o homem mais bondoso do mundo – disse Madame, simplesmente.

– Fiquei sem dúvida com essa impressão o mês passado, em Dover. – A assinatura do tratado, o traité secrete como era chamado, fora feita sob o pretexto de celebrar o aniversário de Carlos. Durante duas semanas, o cortejo real, do qual tive a honra de fazer parte, velejara, fizera piqueniques, assistira a peças e participara em bailes. Quando o navio de Madame finalmente nos trouxe de lá, Carlos ordenou ao seu próprio iate que nos seguisse quase até à costa de França, para poder abraçar a irmã uma última vez, com os olhos cheios de lágrimas.

Madame sorriu perante a memória.

– Creio que foram as semanas mais felizes da minha vida.

– Como são diferentes as duas cartas – comentei, em tom neutro.

– É difícil, para o meu marido – disse Madame. Não conseguia falar mal de ninguém durante muito tempo, nem mesmo dele. Levou a mão à barriga e fez uma careta.

– Sente-se bem? – perguntei.

– Um bocadinho indisposta. Importa-se de me ir buscar uma chicória gelada? O abade Bossuet chegará em breve e temo que se demore. Quer discutir os preparativos para a conversão do meu irmão.

– Pensei que a altura ainda não tinha sido decidida.

Madame sorriu.

– O meu irmão é um homem bondoso e encantador, mas está tão frequentemente rodeado por pessoas que o cobrem de exigências que tem tendência para adiar as coisas. Receio que, se não o obrigar a cumprir a sua promessa imediatamente, acabe por se esquecer dela. – Esta observação, a propósito, era típica dela. Tinha uma grande capacidade para acreditar no melhor das pessoas, mas também para ver claramente as suas fraquezas e fazer disposições levando isso em conta.

– Claro. E gostaria que redigisse o rascunho de uma resposta para o seu marido? Algo delicado, que não a comprometa com nada?

– Obrigada.

Dirigi-me à pequena divisão que Madame usava como escritório e encontrei material de escrita. Mandei uma criada buscar a chicória. Seria melhor, decidi, manter-me afastada do confeiteiro italiano, pelo menos durante uns dias, até esta sua paixoneta passar. Não era a primeira vez que um homem me declarava o seu amor e supunha que não seria a última, mas já tinha reparado que, apesar de todo o sofrimento que juravam estar a sentir, regra geral, encontravam alguém para os consolar uma ou duas semanas depois. Por vezes tinha pena destes homens, se fossem sinceros; ou ficava furiosa, se não fossem; mas raramente experimentava algum sentimento de culpa pessoal, uma vez que há muito tempo que chegara à conclusão de que eram o meu rosto e a minha figura, esses acidentes de nascimento, a causa destas declarações ardentes, e não algo que eu própria pudesse ter feito – tal como não passava de um acidente de nascimento o facto de eu ter nascido numa família em tempos importante mas agora na miséria, o que parecia ter-me condenado a uma vida de celibato. Não que tivesse grande vontade de me colocar às ordens de um marido, claro, mas enquanto não casasse não possuía qualquer estatuto, era alvo de ridículo na corte e toda a minha vida dependia dos caprichos de terceiros.

Assim, resolvi não pensar mais no signor Demirco. Apesar disso, não consegui deixar de estar atenta à janela, à espera de o ver trazer a água de chicória gelada a Madame. Dei por mim surpreendida, e um pouco desapontada, quando foi entregue por um dos lacaios do palácio.

Havia tantas cartas para escrever – cartas de agradecimento ao embaixador francês em Inglaterra; cartas para nobres que tinham sido nossos anfitriões nos vários castelos em volta de Dover; tudo o que fosse possível para deixar uma impressão favorável da nossa visita, de modo a que uma aliança com França – o Grande Negócio, como lhe chamávamos – reunisse, assim que fosse finalmente tornada pública, o apoio de que necessitava. Ouvi murmúrios de vozes quando o abade chegou, mas não me juntei a eles. Madame chamaria se precisasse de mim e a correspondência era mais urgente.

Mais murmúrios, quando outros a visitaram. Olhei para o pequeno relógio na secretária, um presente do rei inglês para a sua irmã. Era quase hora do jogo de cartas, o único vício de Madame.

De súbito uma voz de homem gritou – um grito de horror. Ouvi um estrondo e o que me pareceu mobília a ser arrastada. Corri para o salão.

O abade estava a deitar Madame num divã cujas almofadas tinham sido apressadamente desviadas. As cartas de jogar estavam espalhadas pelo chão e a mesinha de jogo caída de lado. Várias senhoras da corte estavam de pé no meio da sala, como ovelhas assustadas.

Ao ver-me, o abade gritou:

– Vá buscar um médico, rapariga. Depressa. Pode ser veneno ou um ataque… ela bebeu aquele cordial mesmo antes de desfalecer.

Os meus olhos voaram para a garrafa de água de chicória gelada.

– Veneno? – repeti, estupidamente.

– Um médico, depressa – repetiu ele. – Ela tem de ser purgada.

– Vou mandar um lacaio. Será mais rápido. – Dirigi-me à porta e ordenei ao homem que estava do outro lado que fosse buscar o médico. Depois virei-me para a sala. O abade estava a rezar sobre o corpo de Madame.

– Temos de alargar as suas roupas – disse, interrompendo-o. – Ajude-me a levantá-la.

As mulheres reunidas no meio da sala soltaram mais exclamações abafadas quando erguemos o corpo inerte de Madame para eu abrir o seu espartilho. Assim que o alarguei ela tossiu, expelindo um coágulo de matéria acastanhada para o colo, e gritou de dor. Parecia que estava a tentar encolher as pernas. A sua respiração era superficial e a pele do seu pescoço estava suada e peganhenta. Vi, também, que tinha o ventre estranhamente inchado, quase como se estivesse grávida, embora eu fosse capaz de jurar que não estava tão proeminente poucas horas antes. Estava claramente a sofrer. Se o médico lhe desse um purgante, o esforço de vomitar iria com certeza matá-la.

Ouvi uma das mulheres repetir:

– Veneno! Podíamos ter morrido todos.

Outra disse:

– O médico avisou-nos para não bebermos bebidas geladas…

Peguei na água de chicória.

– Ela não foi envenenada. Nem isto podia ter sido causado por um bocadinho de gelo. Vejam. – Sem pensar nas possíveis consequências, levei o copo aos lábios e bebi. As mulheres sustiveram a respiração em uníssono, algo que teria sido cómico se não fossem as circunstâncias.

Pousei o copo vazio.

– Se eu desfalecer, podem purgar-nos a ambas. Caso contrário, é porque se trata de outra coisa.

O médico entrou apressadamente na sala.

– Onde está ela?

Mostrei-lhe. Ele ajoelhou-se ao lado de Madame, avaliando a situação, e depois carregou levemente na sua barriga. Madame gritou – um som hediondo de cortar o coração.

– Ela está doente há meses – disse-lhe eu –, com vómitos e febres. Bebeu um pouco de água de chicória mas estou certa de que o fez porque já sentia a aproximação do ataque… diz que lhe alivia as dores.

O médico levantou-se.

– Devíamos pô-la confortável – disse, pouco à vontade.

– Como assim, confortável? O que vai fazer? – inquiri.

– Não há nada que eu possa fazer. – O médico olhou para o abade, com ar impotente. – Padre, as suas orações serão agora mais úteis do que a minha medicina.

O abade caiu de joelhos ao lado do divã.

– Acredita em Deus? – perguntou baixinho a Madame. Eram as primeiras palavras do viaticum, a extrema-unção.

Madame abriu os olhos.

– Com todo o coração – murmurou.

– Esperem! – gritei, desesperada. – Deve haver alguma coisa que possa fazer.

– Louise. – Era Madame, a murmurar o meu nome com esforço. Também eu caí de joelhos ao lado dela.

– Será… – Madame fechou os olhos quando uma série de espasmos violentos lhe agitou o corpo frágil. – Estou preparada. Mas tem de se certificar… de que o meu irmão…

Toquei-lhe levemente no pulso, que estava também húmido e frio.

– Eu garantirei o tratado. Prometo.

– Certifique-se de que ele morre católico. – Abriu novamente os olhos, por breves instantes, e fixou-os em mim com expressão urgente, como que para garantir que eu compreendia que isso era o mais importante. – Certifique-se.

Foram as últimas palavras que pronunciou.

Morreu uma interminável hora depois, em agonia – tamanha agonia. Tal como era costume, toda a corte se reuniu para a ver morrer. Enquanto os que estavam mais perto dela choravam, os que se encontravam mais ao fundo da sala – principalmente os homossexuais preferidos do seu marido, que nunca tinham gostado dela – continuaram a trocar mexericos e a fazer intrigas, tão naturalmente como se estivessem a assistir a um bailado. Só quando o próprio rei apareceu e se veio ajoelhar à cabeceira da cunhada é que a atmosfera se tornou mais digna. Os mesmos cortesãos que minutos antes trocavam piadas e riam, competiam agora entre si para chorarem com tanta tristeza como o seu monarca.

Depois de o corpo dela ser levado, Luís, de olhos sombrios, chamou-me aos seus aposentos privados.

– Foi veneno? – quis saber.

– Vossa Majestade, creio que não. Eu própria bebi do copo de água de chicória dela, depois, e não sofri quaisquer efeitos nocivos.

– Bom, talvez os médicos possam dizer-nos mais amanhã. – Suspirou. – Obrigado, Louise.

Apesar do que eu dissera, os rumores recusaram-se a desaparecer. Era do conhecimento comum que Madame temia ser envenenada e que estava em conflito com o marido. Aqueles que sabiam que ela estivera envolvida em trabalho diplomático contra os Holandeses estavam ainda mais inclinados para acreditar em crime.

Pela minha parte, a morte dela deixou-me devastada. Não só perdera a mulher que idolatrava – a pessoa mais bondosa, inteligente e doce do mundo – como perdera também a minha patroa, a minha protectora e o meu lugar na corte. O projecto para o qual tanto trabalháramos estava também arruinado, pois os rumores rapidamente chegaram à corte inglesa: as notícias da dor terrível de Carlos e das suas próprias suspeitas chegaram até nós pelos mesmos meios. Também não ajudou nada quando o abade Bossuet, que pregou na sua cerimónia fúnebre, disse que ela fora «assassinada».

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