CARLO
Gelado de framboesas: faça um litro de leite-creme; quando arrefecer, junte-lhe um litro de framboesas vermelhas maduras, esmague-as, passe o preparado por um coador, ferva e congele. Mas não adoce demasiado: o sabor das framboesas fica ainda melhor se estiver um pouco ácido.
O Livro dos Gelos
Ela aguentou até Setembro – um ano completo desde que chegara a Inglaterra. Já ouvi dizer que ela sempre teve intenção de se deixar seduzir; que os seus escrúpulos eram apenas uma representação, a sua timidez um estratagema. Certamente que isso não explica que o homem mais determinado da Europa tenha levado doze meses para a deitar na sua cama.
Endureci o coração e tentei não pensar no que eles os dois faziam nela.
As consequências políticas, contudo, foram imediatas. Encontrou-se um pretexto para a guerra: o pequeno iate real passou pela frota holandesa e não foi saudado com todas as solenidades devidas a um grande navio de guerra. Os Holandeses pediram desculpa pela sua falha, mas os Ingleses, apesar disso, anunciaram o início das hostilidades. O governo interrompeu os pagamentos da sua dívida, para que o dinheiro pudesse ser canalizado para a guerra. E Carlos aprovou pessoalmente uma lei a que chamou a Declaração de Benevolência. Todos os homens e mulheres passariam a ser livres no seu coração. Livres para terem a religião que quisessem, livres para pensarem o que quisessem, livres para dizerem o que quisessem.
Contudo, a julgar pelas consequências, seria de pensar que ele anunciara que, daí em diante, todos os bebés ingleses seriam passados a fio de espada e todas as virgens inglesas violadas. O país explodiu. Os aprendizes amotinaram-se e incendiaram os bordéis. As prostitutas marcharam e incendiaram as lojas. Os lojistas entaiparam as suas lojas; os padeiros não conseguiam vender o seu pão; os padres denunciaram nos púlpitos a licenciosidade do seu próprio rei. Dizia-se que o exercito estava prestes a revoltar-se, embora nunca tenha sido claro contra quem, ou porquê.
– Mas com certeza que era isto que pretendia – disse eu a Hannah, exasperado. – Está sempre a falar dos direitos dos Ingleses. Agora Carlos tornou-os lei.
– Não percebe? O problema é precisamente esse. Temos esses direitos porque nascemos com eles. Não está no poder de Carlos concedê-los ou retirá-los. – Suspirou. – Além disso, toda a gente sabe que esta declaração é suspeita, não por causa daquilo que diz, mas daquilo que não diz.
– Como assim?
– O rei pretende na realidade beneficiar os católicos, e não os dissidentes, com estas liberdades. Depois, quando a Inglaterra for novamente católica, a Inquisição voltará para torturar os dissidentes.
Comecei a ver pessoas nas ruas com fitas verdes na lapela. Era um sinal, explicou-me Cassell, de que eram partidários de Shaftesbury e dos parlamentares.
– São pouco melhores do que Whigs, alguns deles – disse Cassell, com uma fungadela desdenhosa.
– Whigs?
– Ciganos. Amadores. – No entanto, parecia preocupado. – Não via uma situação tão grave como esta desde a Restauração – admitiu. – Com a maior parte do exército fora, em França, há pouco que possa impedir uma revolta aqui. Se isso acontecer, o parlamento ficará quase de certeza do lado da insurreição.
– Qual é a solução?
– Desconfio que o rei terá de retirar a declaração. A questão é, que mais lhe exigirá o parlamento? Depois de estarem na mó de cima, porque hão-de ficar apenas pela revogação de uma lei pouco popular? – Lançou-me um olhar de soslaio. – Tem de tomar precauções pela sua própria segurança, signor. Desconfio que qualquer católico poderá facilmente ser vítima da populaça, neste momento.
Na verdade, eu já o fizera. As ruas em volta de Whitehall estavam muitas vezes bloqueadas por multidões descontentes; quase não passava um dia em que não ouvisse uma ou outra pedra atingir a madeira da minha carruagem e, por mais do que uma vez, tivera de dar meia-volta e voltar para trás. Contratei dois criados corpulentos para viajarem do lado de fora, mas eram mais para as aparências do que por uma questão de segurança. Eu sabia que, num confronto a sério, eles dificilmente salvariam a minha vida à custa da sua.
Seria portanto de pensar que a atmosfera na corte estava tensa. No entanto, passava-se o oposto. Era como se a declaração tivesse introduzido um novo estado de espírito, de prazer e descontracção. Agora que finalmente tinha Louise, Carlos andava despreocupado; e, tal como ela sucumbira a ele, assim a corte sucumbia agora a ela. Todas as senhoras da alta sociedade usavam o cabelo au naturel, com risco ao meio; todos os vestidos foram modificados para terem uma racha de lado. Apareceram mais franceses em Londres. Le Nôtre veio de Versalhes para remodelar o Parque de St. James e estremeceu ao ver o canal à holandesa. Um alfaiate chamado Sourceau chegou para vestir o rei, monsieur de Pontac estava a cargo dos vinhos, enquanto os vestidos de Louise eram feitos por uma modista chamada Desborde. Até ouvi algumas das damas de companhia mais novas a falarem com um falso sotaque, como se – como Louise – o inglês não fosse a sua língua mãe. Não gostavam dela; na verdade, acho que a odiavam e se ressentiam dela em igual medida, mas Louise tinha a protecção do rei e isso era tudo o que importava.
E eu estava lá. Movia-me entre eles, distribuindo os meus cordiais e o meu granite, quase como se estivesse de novo em Versalhes. Estava presente nos bailes, nos jogos de cartas, nos jantares e nas representações e bailes de máscaras privados. Estava lá – Deus me ajude – enquanto o rei e a sua nova amante se divertiam: até estava no apartamento dela quando se deitavam juntos.
O rei era um homem físico: o exercício causava-lhe calor e, quando tinha calor, gostava de pedir algo que o refrescasse. Todos os dias eu fazia, para os amantes, cordiais frescos de sabugueiro, alfazema, borragem ou goivo. Fazia-lhes infusões doces de hortelã-pimenta e gengibre, derramadas sobre punhados de gelo esmagado. Fazia-lhes gelados de limão e alperce, de marmelo e de maçã, de amora silvestre e de baunilha e de figo. Levava-lhes taças de limonada feita com limões espremidos na hora, adoçada com mel de dente-de-leão e refrescada com neve prensada. Levava os meus gelos em travessas de prata até ao quarto dela, com a sua cama francesa trabalhada; atrás das cortinas fechadas, até à própria cama, até aos lençóis revolvidos. Sentia o cheiro dele nela; sentia o cheiro dela nele; servia-os a ambos, com um sorriso insondável, e ela agradecia-me com um sorriso igualmente dissimulado.
Só por uma vez, nessas primeiras semanas, consegui falar a sós com ela. O rei fora chamado – na maior parte das vezes, recusava-se a ouvir os pedidos de atenção aos assuntos de Estado dos seus ministros. Contudo, se fossem suficientemente persistentes, lá ia de mau humor ler apressadamente uma pilha de papéis ou assistir a uma reunião do conselho, embora raramente ficasse até ao fim. Desta vez, deixara a cama dela precisamente quando eu estava a chegar, ainda a tempo de tirar um copo de sumo de pêssego gelado da bandeja que eu trazia e de lhe dizer por cima do ombro:
– Venho já… não saia daí. – Mal se deu ao trabalho de abotoar as roupas.
Por um momento, nenhum de nós falou.
– Então – disse eu, por fim. – É aquilo que esperava?
– Isto? – Ela encolheu os ombros. – Isto seria o meu dever de qualquer maneira, quer o fizesse como esposa ou como amante. Pelo menos faço-o com alguém para quem eu não sou apenas um dever. Torna mais fácil fingir.
– Fingir? Então é só isso que faz?
Não devia ter perguntado – era como tocar numa ferida: não conseguimos evitar, apesar de sabermos que não é boa ideia.
– Às vezes sim – disse ela suavemente –, e às vezes não.
– Mas ama-o, agora?
– Não penso nisto como amor ou prazer – respondeu ela. – Sei apenas que estou em posição de alcançar aquilo que vim fazer a Inglaterra. Será amor? Será prazer? Seja o que for, estou-lhe grata por isso.
A minha própria posição na corte, claro, subira novamente a par da dela. Não havia nada mais francês do que gelos; logo, não havia nada mais na moda. Desde Newmarket, os meus serviços tinham-se tornado tão indispensáveis para qualquer grande reunião como a presença da própria Louise de Keroualle.
Contudo, havia um prato que eu nunca fornecia. Servia cordiais, granite, sorvetes e até gelos de leite; mas, a menos que o rei estivesse presente, não havia gelado. O gelado, conforme criado por mim próprio e pelos virtuosi, era o prato real; a menos que o próprio rei o oferecesse a um convidado, mais ninguém podia comê-lo.
Houve muitos que tentaram. Perdi a conta ao número de vezes que me pediram para preparar um pouco, «por curiosidade»; a minha resposta era sempre um franzir de sobrolho e a frase:
– Receio que tal não será possível.
Alguns, claro, não admitiam ser envergonhados desta forma. Lorde Rochester entrou certa manhã no Red Lion e atirou uma bolsa para cima do balcão da copa onde eu estava a trabalhar.
– Quero provar o gelado de framboesa que o rei comeu ontem à noite.
– Receio que tal não será possível.
– Ele disse que foi a melhor coisa que já provou.
– É verdade.
Apontou para a bolsa com um gesto impaciente.
– Tem aí vinte pistoles. Tire o que quiser.
Peguei na bolsa e devolvi-lha.
– Já tenho tudo o que preciso.
Ele fitou-me. Os seus olhos, posso acrescentar, eram como os olhos de um lagarto, totalmente desprovidos de humanidade, e mesmo àquela hora já tresandava a vinho.
– Está a desafiar-me, signor De hirto? – murmurou.
Devolvi o olhar, bastante calmo.
– Parece-me que talvez o senhor esteja a desafiar o rei.
Passado um momento ele assentiu.
– Pensa que porque a sua amiga francesa tem a atenção do rei, pessoas como o senhor estão protegidas de pessoas como eu. E, de certa forma, é verdade. Mas lembre-se de uma coisa: ela tem a atenção do rei porque o tem preso pela braguilha. Quando ele se cansar disso, a atenção também se acaba. E o que será então do pobre signor De hirto?
Outros eram mais circunspectos. Vi Chiffinch, o intendente, pegar numa taça para a passar ao rei. No meio de floreados elaborados, o manuseamento de guardanapos e por aí fora, reparei que quando foi apresentada, momentos depois, a taça tinha significativamente menos gelado do que antes, apesar de o rosto de Chiffinch continuar impassível.
A famosa Barbara Villiers, duquesa de Cleveland, anterior amante de Carlos, mandou-me chamar a sua casa – ou melhor, ao seu palácio, pois Carlos dera-lhe Nonsuch, uma das melhores residências reais, como paga pelos seus serviços. Ostensivamente, a nossa reunião era para discutir os cordiais que eu podia fornecer para um baile; mas rapidamente se tornou claro que aquilo que ela realmente queria era gelado e que, em troca, tencionava fornecer-me os mesmos favores de que o rei em tempos gozara. Quando deixei claro que não era tão fácil de comprar, ela perdeu a cabeça – nunca tinha visto uma fúria assim; parecia uma mulher possuída, arremessando todos os objectos a que conseguiu deitar a mão, com o belo rosto contorcido de raiva.
Foi isto – o facto de apenas Carlos e Louise comerem os meus gelados – que me deu uma ideia na qual, provavelmente, nunca devia ter pensado duas vezes.
Estava a trabalhar na minha copa ao final da tarde, quando não havia mais ninguém por perto. Olhei para a alcova de Hannah e reparei que estava deserta.
Hesitei, depois dirigi-me à prateleira onde ela guardava os seus livros. Passei o dedo pelas lombadas. O Guia do Cozinheiro: Ou, Raras Receitas de Culinária… Medicina, Beleza e Culinária… Receitas Excelentes & Aprovadas…
O Herbário Completo, de Nicholas Culpeper.
Tirei-o da prateleira e comecei a virar as páginas.
– O que está a fazer?
Era Hannah, atrás de mim.
– Não foi com má intenção – assegurei-lhe. – Estou apenas à procura de alguma informação.
– Nesse caso, é melhor dizer-me o que precisa. Conheço esse livro de cor e não é objecto que deva andar por cima das mesas.
– A medicina de que preciso não é para mim. É para… – Hesitei. – Para um dos meus clientes nobres. Ele deseja evitar as paixões do amor.
– Evitá-las?
Assenti.
– Definitivamente. É um homem muito ocupado, com o seu tempo muito requisitado. Não pretende ser perturbado por pensamentos de natureza libertina.
– Bom, não há dúvida de que isso é invulgar – disse ela. – A maioria das pessoas pergunta se existe uma erva que consiga precisamente o oposto. Mas sim, por acaso há várias infusões que têm o efeito que pretende.
– Que o meu cliente pretende – corrigi.
Ela fez um gesto impaciente, como que a dizer que era a mesma coisa, para ela.
– Presumo que estamos a falar do desejo, e não do desempenho?
– Ambas as coisas, se for possível.
– Bom, deixe-me ver – disse ela, tirando-me o livro das mãos e folheando as páginas. – Sim… a camomila é boa para isso e… e a flor de sabugueiro, quando a lua está cheia. Mas o tratamento mais eficaz seriam groselhas uva-crespa.
– Groselhas uva-crespa?
Ela assentiu e leu em voz alta.
– Por vezes chamadas groselhas verdes, estas bagas subjugam as paixões, particularmente as paixões de Vénus, sob cujo domínio se encontram. Uma infusão das folhas arrefecerá mais ainda o sangue e acalmará todas as formas de cólera e imoderação.
– Tem essas bagas?
– Posso arranjar-lhe algumas em conserva, em frascos. No entanto, se as vai usar para gelado, é melhor deixar-me mostrar-lhe como fazer uma mousse de groselha verde. É demasiado tentador tentar disfarçar a acidez das bagas com demasiado açúcar e, se o fizer, o gelado nunca solidificará.
Estranhei mais uma vez o conhecimento que ela parecia ter destas questões e a cautela fez-me hesitar. Com uma leve impaciência, ela disse:
– Ainda acha mesmo que lhe vou roubar os segredos? Seja como for, ensiná-lo a fazer uma mousse de groselhas verdes é mais o contrário.
Após um instante, acenei com a cabeça em sinal de concordância.
– Obrigado.
E assim ela ensinou-me o método de fazer este simples prato inglês: cozeu as frutas em água, juntamente com duas cabeças de flor de sabugueiro; depois esmagou, coou e adoçou, e finalmente misturou o puré com leite-creme e um pouco de noz-moscada ralada. Era tão fácil e tão perfeito para um gelado que me espantava que os meus colegas confeiteiros na Europa ainda não o tivessem descoberto.
Como se adivinhasse os meus pensamentos, ela disse:
– Talvez um dia alguém consiga congelar uma mistura destas.
– E destruir o meu meio de subsistência, é isso que quer dizer?
– Os cozinheiros são pagos pelos seus segredos ou pela sua perícia? Não há segredo nenhum para fazer tartes, e no entanto as minhas são mais procuradas do que quaisquer outras em Vauxhall. – Disse-o com naturalidade, sem falso orgulho mas também sem falsa modéstia.
– Talvez seja por isso que não há nenhum fazedor de tartes com o alvará real – resmunguei.
Ela encolheu os ombros.
– Talvez. Seja como for, deixo-o. Tenho de acabar o meu outro trabalho. E espero – hesitou –, espero que o seu amigo encontre alívio dos seus anseios. Se as groselhas verdes não resultarem, diga-me, está bem? Há vários outros remédios que ele pode tentar.
Fiz os meus gelados de groselha verde e enviei-os ao rei. Uma semana mais tarde, quando perguntei a Louise se o ardor dele diminuíra, ela fitou-me com estranheza e perguntou porque queria eu saber. Tentei insinuar que estava apenas preocupado com o facto de as suas obrigações continuarem a ser tão desagradáveis como antes.
– Bom, ele está um pouco mais lento – disse ela. – É melhor, na verdade. Agora, às vezes, preocupa-se realmente com o meu prazer.
Era um desfecho que eu não antecipara e, depois disso, não mandei mais groselhas verdes ao rei.