CARLO

Para fazer uma ratafia de nozes verdes: parta as nozes, ainda não completamente maduras, em quartos, com cascas e tudo, e depois macere-as durante um mês em cinco litros de aguardente, com um limão e umas folhas de árvore de lima doce. Este cordial, em França, é conhecido como liqueur de noix, e congela bastante bem, embora não fique duro.

O Livro dos Gelos


Em Paris, tivemos de nos mover rapidamente para conseguirmos uma audiência com o rei antes de as nossas ervilhas descongelarem. Felizmente, monsieur Bontemps, o criado particular do rei, revelou-se tão corruptível como Audiger previra e, poucos dias depois, fomos levados à presença de Luís XIV, do seu irmão e de vários outros nobres. Audiger estava tão maravilhado que quase não conseguia falar. Felizmente, o nosso presente não precisava de grandes introduções e a oratória balbuciante de Audiger rapidamente foi ignorada enquanto os aristocratas se reuniam à volta da caixa de ervilhas, provando-as.

O rei pediu ao criado para levar as que restavam ao administrador dos alimentos para as dividir: uma parte para a rainha, outra para a rainha-mãe, outra para o cardeal e a última para si próprio.

– Quanto a estes intrépidos cavalheiros, Bontemps – disse, gesticulando na nossa direcção –, por favor recompense-os pelo seu trabalho.

Olhei para Audiger. Era neste momento que, segundo o nosso plano, devíamos ter pronunciado o discurso que tínhamos preparado. Contudo, o meu companheiro, invulgarmente, parecia estar mudo e fitava o rei com olhos arregalados e uma expressão de adoração.

– Com a licença de Vossa Majestade – disse eu, com uma vé­nia –, não desejamos qualquer recompensa, excepto o privilégio de poder fazer gelos e outras confecções frescas para o prazer real.

Luís ergueu as sobrancelhas.

– Gelos?

Audiger encontrou finalmente a sua voz.

– O meu assistente, senhor, trabalhou até há pouco tempo na corte dos Médicis e é exímio nesta arte.

O rei estudou o meu rosto.

– Como se chama, signor?

– Demirco, senhor.

– E quantos anos tem?

– Dezoito – menti.

– Hum… Uma boa idade… a mesma idade que eu tinha quando assumi o governo de França. Aguardarei ansiosamente para provar as vossas confecções. O cardeal Mazarin há muito que tem ao seu serviço um limonadier italiano e por várias ocasiões tive motivos para admirar o seu trabalho. Chama-se Morelli… talvez o conheça?

Abanei a cabeça.

– Não, senhor.

– É um homem muito inventivo. Mas talvez… – senti o rei inspeccionar-me ainda mais atentamente – …venha a provar igual valor. Espero bem que sim. Dar-me-ia grande prazer superar o cardeal à mesa.

Tive então um vislumbre da personalidade deste rei. Rivalidade – era isso que o movia. Tudo o que fazia, ou tinha, ou patrocinava, tinha de ser o melhor, e qualquer cortesão ou estadista que lhe oferecesse algo – mesmo algo tão insubstancial como uma guloseima de gelo aromatizado – estava apenas a alimentar o apetite insaciável de Luís para o superar.

Curvei-me de novo numa vénia.

– Darei o meu melhor, Vossa Majestade.

Ao meu lado, Audiger acrescentou:

– Uma tarefa, senhor, que seria certamente mais fácil se pudéssemos estabelecer uma corporação… uma corporação de confeiteiros… com uma patente real, um conselho e o direito de atribuir o cargo de mestre…

– Sim, sim. Façam um gelo e mandem-mo esta noite à hora de jantar. Se o achar aceitável, essa honra será vossa. – O rei saiu, seguido pelos restantes.

Audiger olhou para a porta e depois agarrou-me na manga.

– Esta noite! – sussurrou. – Temos de lhe mandar um gelo esta noite!

– Não há problema – disse-lhe, em tom confiante. – Traz-me nozes verdes do mercado, procura uma loja de cordiais e compra-me liqueur de noix. O licoreiro já terá feito a maior parte do trabalho duro por nós. – Não tinha a mínima intenção, agora que chegara finalmente a França, de alguma vez me voltar a limitar aos quatro sabores de Ahmad.

Foi o princípio de uma fase notável. Em Florença eu fora me­nos do que um criado: aqui, em Paris, era quase um cortesão. Audiger tratou de me vestir ao estilo de um professor de dança ou pintor de retratos, com uma casaca resplandecente com vinte e quatro botões que nunca eram usados, umas calças brancas suficientemente apertadas para exibir a barriga da perna, um chapéu com três bicos, uma cabeleira – a primeira que alguma vez usara – comprida e liberalmente empoada com giz. Esta última causava uma comichão insuportável. Depois de a usar durante uma semana, apercebi-me de que teria de rapar a cabeça, como Audiger fazia, ou livrar-me da cabeleira. Livrei-me da cabeleira. No entanto, estou certo de que o resto das minhas roupas me ficava bastante bem e, quando vislumbrava o meu reflexo num dos espelhos de corpo inteiro que apainelavam os novos salões do rei, não podia deixar de ficar impressionado.

Foi-nos dada uma cave na residência de campo do rei, em Marly, e em Paris arranjámos residência em Saint-Germain-des-Prés, convenientemente perto do Louvre. O trabalho que eu era obrigado a fazer em Florença, arrastar blocos de gelo desde a casa de gelo até ao palácio, era aqui feito por outros – Paris já tinha um comércio florescente de gelo e neve prensada para refrescar os vinhos da nobreza, e era possível obter material de boa qualidade durante todo o ano. Até o trabalho de partir e ralar era feito por aprendizes, e Audiger tinha sempre pelo menos quatro ao seu serviço.

No entanto, era no novo palácio do rei, em Versalhes, que passávamos a maior parte do tempo. Audiger não mentira quando falara da sua magnificência. Embora o trabalho de construção não estivesse de forma alguma terminado – na verdade, nunca ficou concluído ao longo de todo o tempo que lá estive; assim que um projecto terminava, Luís lançava-se imediatamente noutro, as suas ambições ultrapassando sempre as capacidades dos arquitectos para as realizarem – a velha casa já estava envolvida por uma grande e nova façade, com janelas simétricas colocadas a intervalos regulares, mais fabulosas do que tudo o que eu vira em Florença, que nesse tempo era considerada a cidade mais bela do mundo. Versalhes – ou «o novo palácio», como nos referíamos geralmente a ele – tinha as proporções elegantes do Uffizi ou do Pitti, mas estava rodeado por terreno aberto, como uma mansão de campo; era do tamanho de um castelo, mas totalmente desprovido de qualquer tipo de fortificações, numa demonstração de confiança suprema; cumpria as funções de uma corte, mas não tinha pequenos gabinetes nem aposentos para funcionários, apenas salões deslumbrantes e galerias sumptuosas. Em suma, era um tipo de palácio completamente novo, e nele Luís exercia um tipo de governo completamente novo – em que não havia distinção entre questões de Estado e questões de moda; onde os ministros eram respeitados pela urbanidade do seu discurso ou pela elegância das suas roupas, tanto como pela sabedoria dos seus conselhos; e onde tudo, desde o comprimento de uma unha às questões de guerra, girava à volta da impecável pessoa do próprio rei: o seu estado de espírito, os seus modos e, acima de tudo, os seus gostos.

Pois Luís era um gourmet – havia até quem dissesse um glutão. Trabalhavam mais de trezentas pessoas nas suas cozinhas, que ocupavam um edifício inteiro adjacente ao palácio, e sessenta dessas pessoas não preparavam mais nada a não ser sobremesas. Havia uma equipa de nove pessoas que fazia macaroons, biscoitos arredondados, de consistência semelhante a merengue, recheados com pastas coloridas de pistácio, alcaçuz, groselha negra ou amêndoa. Havia confeiteiros especializados nas subtilezas do açúcar caramelizado, ou que faziam rebuçados de sementes açucaradas, ou que preparavam orchata, uma pasta de amêndoas escaldadas, flor de laranjeira e coentros, da qual o rei gostava particularmente. Eu fazia questão de passar tempo nas cozinhas com estes especialistas, com a desculpa de aquecer as mãos frias por causa de trabalhar o gelo, mas na realidade para ver como eles trabalhavam. Em breve, para grande satisfação do rei, eu estava a produzir gelos de espécies que nunca tinham sido feitas antes – cordiais gelados aromatizados com orchata, ou gelos de leite ensanduichados entre camadas de merengue que pareciam macaroons, ou sorbetti que podiam ser segurados com a mão, dentro de uma pequena taça entrançada feita de fios de açúcar caramelizado, de modo a não pingarem as belas roupas da corte enquanto derretiam.

Agora não havia ninguém para me dizer o que eu não podia fazer: na verdade, rapidamente ficou evidente que a novidade era uma parte essencial do serviço que Audiger e eu fornecíamos. De cada vez que o rei dava um jantar ou um piquenique, uma das mesas era reservada para as nossas iguarias. Em torno de um centro de mesa de gelo esculpido, colocávamos um tableau de geleias, sorvetes, licores gelados, águas perfumadas, frutas envoltas em gelo e outras delícias geladas. E depois – talvez algumas horas mais tarde, talvez na semana seguinte, conforme os caprichos da corte, ou seja, os caprichos de Sua Majestade Cristã – voltávamos a fazer tudo de novo, sem que pudéssemos repetir uma única receita ou sabor. Se um gelo de flores cristalizadas era um dos pratos oferecidos na terça-feira, tinham de passar pelo menos duas semanas antes que pudesse surgir novamente na mesa do rei. Se fatias de pêssego cortadas como raios de sol e aromatizadas com galanga deslumbravam a corte numa quarta-feira, tinha de passar pelo menos outra quarta-feira antes que pudessem brilhar de novo. Uma eau glacée de cubebas e pimenta de Caiena, ou um sorvete de cordial de meloa intensificado com cássia podia divertir os cortesãos e as suas damas hoje, mas amanhã já não seria novidade, e depois de amanhã apenas os enfadaria.

Depois de estar na corte há alguns meses, fui chamado à presença do rei. Primeiro, presumi que ele queria que lhe levasse um gelo; mas quando perguntei quantos convidados tinha consigo, disseram-me que era apenas um e que, desta vez, não era preciso levar nenhum gelo. Concluí de imediato que a minha última produção – um sorvete de leite aromatizado com grãos do paraíso – fora, de alguma forma, inaceitável. Com o coração aos saltos, certo de que estava prestes a cair em desgraça, segui o lacaio pelos corredores intermináveis até à sala de audiências.

Encontrei o rei em conversa com um homem cujo casaco estava sujo de musgo, as meias brancas e as presilhas de linho dos sapatos salpicadas de lama. Contudo, o rei estava a conversar com ele com tanta afabilidade como com qualquer outro cortesão.

– Ah, Demirco! – exclamou Luís. Vi que ele tinha na mão uma pequena faca de fruta e uma pêra. – Já conhece monsieur la Quintinie?

Eu já ouvira falar dele. Era um advogado de formação, que su­pervisionava as hortas do rei, mas nunca o conhecera pessoalmente. Curvámo-nos ambos numa vénia.

– Cheire isto – ordenou o rei, passando-me uma fatia de pêra da sua própria mão. – Vamos… cheire!

Inalei profundamente, permitindo que o aroma da pêra me invadisse as narinas. Era muito agradável, com um perfume fresco e floral que me fez lembrar uvas moscatel. A fatia em forma de crescente que o rei cortara da fruta revelava que a casca era áspera, quase verrugosa, e tingida com uma sombra vermelha, como uma maçã; mas a polpa era branca e fresca, como um bloco de mármore antes de ser esculpido.

– Agora prove – disse-me ele.

Enfiei a fatia de pêra na boca. A fragrância tornou-se líquida, inundando-me o palato: esmaguei a polpa com os dentes, libertando mais dos seus sucos maravilhosos.

– Senhor, é magnífica – disse, com sinceridade, depois de engolir.

Ele acenou.

– Uma variedade nova. Os jardineiros de monsieur la Quintinie estão a cultivá-la há três anos e esta é a primeira vez que deu fruto. – Ficou em silêncio por um momento. – Em boa verdade, Deus é o maior de todos os cozinheiros, e só podemos prestar homenagem às suas receitas com toda a nossa humildade.

– É verdade, senhor – disse, sem perceber bem onde é que ele queria chegar.

– A perfeição é simplicidade, Demirco.

Inclinei a cabeça, em sinal de concordância.

– Sei que gosta muito de pós e especiarias e por aí fora, e isso é tudo muito bonito. Mas as produções da horta, simples e sem adornos, ensinam-nos a glória de Deus. Conseguirá captar estes sabores em gelo?

– Creio que sim, majestade – respondi, cautelosamente. – Não estou certo de conseguir reter o aroma que esta pêra tem, por exemplo. Mas seria uma honra tentar.

O rei abriu as mãos para nos abranger a ambos.

– La Quintinie e Demirco. Falem um com o outro. Estou ansioso por provar os frutos da vossa polinização.

*

E assim aprendi as virtudes da simplicidade e enviei ao rei sorbetti gelados da fruta mais recente da estação, adornados apenas com um pouco de açúcar. Descobri que, embora o processo de congelamento pudesse de facto roubar algum do aroma da fruta, tinha também o efeito de concentrar o sabor, capturando a sua essência em alguns cristais doces na ponta de uma colher. Isto foi antes de la Quintinie ter completado a vasta potager du roi, a maior da Europa, que o próprio Luís considerava a parte mais bela da sua propriedade. Mas os pomares, hortas e estufas que já tinha ao seu dispor produziam resultados extraordinários. Luís adorava pêras, por exemplo, mais do que qualquer outro fruto, e assim la Quintinie dedicou-se a cultivar as melhores variedades de França, além de criar variedades novas para agradar ao rei. Globulares, redondas, pendentes, esguias; verdes, amarelas, acastanhadas, vermelhas; de casca áspera ou lisa; com nomes extravagantes como Bom Chretien d’Hiver, Petit Blanquet, Sucrée Verte, ou a preferida do rei entre todas, a doce e perfumada Rousselet de Reims – ele cultivava-as a todas e dava-me os preciosos frutos para fazer com eles o que muito bem entendesse. Uma vez, enviei ao rei uma simples tábua de madeira contendo apenas meia dúzia de sorvetes, cada um feito de uma variedade diferente de pêra, culminando numa pêra sanguinello, ou de sangue, de um rosa vivo, que fora suavemente assada apenas para caramelizar a casca; ele ficou tão encantado que pôs de lado os assuntos da corte e convocou Audiger e eu à sala de audiências, onde toda a corte nos recebeu com uma ovação pelas nossas proezas. Noutra ocasião, fiz-lhe uma taça de cerejas que, quando examinadas atentamente, eram vinte gelados de creme de cereja individuais que eu congelara um a um, num molde; enquanto os meus sorvetes de mandarina – servidos dentro da casca de uma mandarina recém-colhida, com a casca aparentemente intacta, como um barco de brinquedo dentro de uma garrafa – eram uma maravilha que a corte discutiu durante dias.

Por vezes, o rei organizava grandes divertissements, alguns para mil convidados, em que eram construídos de papier mâché teatros e grutas quase tão grandes como o próprio palácio, para a estreia de pantomimas e comédies-ballets especialmente encomendados para a ocasião. O facto de estes edifícios elaborados serem para destruir depois de uma única noite de entretenimento era apenas outro aspecto da sua magnificência. Nestas ocasiões, criávamos gelos que nunca mais eram repetidos em honra de um convidado especial, da mesma forma que um cozinheiro pode dar a um molho novo o nome do cliente que o inspirou. Audiger levava muito a sério a ordem implícita do rei para superar o limonadier do cardeal Mazarin, e até subornava criados nas casas dos outros grandes nobres para nos contarem o que andavam a fazer os seus confeiteiros. Foi, de facto, um dia feliz, quando ouvimos dizer que o famoso Signor Morelli se vira reduzido a copiar a nossa ideia de um sorvete de groselha amarga, servido numa colher de prata reluzente que, quando colocada na boca, revelava ser feita de açúcar.

No entanto, para Audiger, o nosso sucesso estava sempre misturado com frustração. A fundação da corporação – o seu grande sonho – estava atolada em burocracia e, a cada passo, exigia mais um suborno para avançar. O intendente do rei, monsieur le Tellier, não previa quaisquer dificuldades, mas levou o assunto ao Conselho Privado. O Conselho não podia considerar a criação da corporação sem um relatório do escrivão principal. O escrivão principal levou o assunto ao chanceler. O chanceler só se envolveria se a medida tivesse o apoio de um nobre. O nobre que Audiger escolheu, infelizmente, andava a dormir com uma dama que não era a sua esposa: não se tratava propriamente de uma ocorrência invulgar, mas a esposa era, por azar, neta do chanceler… E por aí fora, sempre às voltas, sem que ninguém mostrasse grande vontade de conceder a patente que criaria a corporação, enquanto cada oportunidade de lucro, progresso, intriga e corrupção não estivesse devidamente esgotada.

– Mas porquê tanto interesse? – perguntei por fim, quando Audiger estava novamente furioso por causa do mais recente revés. – Porque é uma corporação tão importante, se estamos a fazer os gelos que queremos?

– Não compreendeste nada? – inquiriu Audiger. Aproximou-se abruptamente de mim, enquanto eu despejava leite perfumado com cravo-da-índia num molde de estanho. – Quem é que pensas que paga por este equipamento? – perguntou, furioso. – Pelas tuas roupas? Pelo teu belo chapéu? Por estas instalações? Quem é que dá de comer aos nossos aprendizes? Quem paga os nossos subornos? Quem compra estes ingredientes caros que usas de forma tão liberal? – Enfiou os dedos numa caixa de cravos-da-índia e atirou um punhado ao ar. – Nunca fizeste essas perguntas a ti próprio?

Olhei para ele, estupefacto, enquanto os cravos-da-índia caíam no chão. O que ele dissera era absolutamente verdade. Eu nunca pensara sequer vagamente no aspecto financeiro daquilo que fazíamos. É a única liberdade que o escravo partilha com o cavalheiro; não se preocupar com dinheiro.

– Mas… o rei não nos recompensa?

Audiger soltou uma risada trocista.

– Às vezes. Mas nunca a tempo e horas, e nunca o suficiente. Sabe que a moeda em que nos paga é a sua protecção, não ouro. Já gastei quase mil livres neste empreendimento… tudo o que tinha. E, a menos que consigamos a corporação… a menos que tenhamos outros homens a pagarem-nos para se juntarem a ela… a menos que possamos cobrar às pessoas para aceitarmos os seus filhos como aprendizes e depois lhes vendermos o direito de se tornarem por sua vez mestres… estarei na bancarrota dentro de seis meses.

– Audiger, lamento muito. Não fazia ideia. Tens toda a razão… tenho sido negligente.

– Bom – disse Audiger, o mau humor evaporando-se tão depressa como aparecera –, não importa. Deixei que te concentrasses nos gelos e não no negócio, uma vez que é essa a tua verdadeira vocação. Porém, se de vez em quando me achares um pouco irascível, já sabes porquê. Se falharmos, perderei tudo.

Foi uma pequena discussão, rapidamente esquecida, mas teve uma consequência importante. Daí em diante, eu comecei a interessar-me pelo aspecto financeiro da nossa actividade. Comecei a compreender a curiosa economia da nossa profissão, na qual não eram os ingredientes que custavam muito dinheiro, nem o próprio gelo, mas os aprestos que os acompanhavam: as nossas roupas de corte, os nossos empregados de uniforme, as belas taças e colheres de ouro para que um rei ou um nobre pudesse apreciar o nosso trabalho. Ahmad tivera razão em relação a isto, pelo menos: era a nossa mestria que nos fazia valer as somas exorbitantes que cobrávamos, tal como um cantor é pago pela beleza da sua voz, ou um pintor pela sua habilidade e não pelo custo das tintas. E era por isso, claro, que tínhamos de manter sempre o nosso conhecimento secreto: assim que fosse partilhado por outros, deixaria de ter valor. Com isto em mente, persuadi Audiger de que devíamos cobrar ainda mais pelas nossas criações. O rei encorajava a extravagância nos seus cortesãos: se Luís elogiava um sorvete, ou um gelo feito com algum ingrediente novo e elegante como jasmim, amora ou hortelã, mais cedo ou mais tarde todos os cortesãos dignos desse nome teriam de cerrar os dentes e pagar valores exorbitantes para poderem ter o prazer, mais cedo ou mais tarde, de concordar com o rei que sim, era realmente delicioso. Seguindo este plano, fomos acumulando lentamente riqueza, além de privilégio, os nossos casacos foram ficando mais ricos, os nossos botões passaram a ser feitos de pérolas em vez de osso – embora isso não tenha impedido Audiger de continuar, ainda assim, a suspirar pela sua corporação.

Porém, se Audiger tinha a sua frustração privada, eu também tinha a minha. Em Florença sempre imaginara que, assim que tivesse liberdade para combinar os sabores e texturas que desejasse, acabaria por encontrar uma substância que, depois de congelada, teria a riqueza suave de natas ou de chocolate derretido, para que as minhas confecções se dissolvessem doce e rapidamente na língua, como creme de chantilly ou a pasta no centro de um macaroon, sem o rangido denunciador de gelo. Contudo, embora tivesse tentado congelar cada uma destas misturas e uma dezena de outras, a resposta continuava a escapar-me. Não parecia, pura e simplesmente, haver forma de produzir um gelo verdadeiramente suave.

Havia contudo uma coisa na qual me tornei mais eficiente. Enquanto os Médicis tinham uma tendência para a rigidez em questões morais, como convinha aos banqueiros da Europa, a corte de Luís XIV era mais sofisticada. A nobreza de França casava por motivos políticos e financeiros: o seu ardor era reservado para as aventuras extraconjugais. Mesmo aos níveis mais baixos da corte, ninguém via motivos para não se entregar a liaisons. Um jovem italiano talentoso – que, modéstia à parte, ficava bastante elegante num chapéu de três bicos – não podia continuar a ser ignorado muito mais tempo.

Um dia, estava a preparar cordiais gelados para os convidados do rei quando uma dama da corte parou para me ver trabalhar.

– O senhor é o tal que é meu conterrâneo – disse, em italiano.

Ergui os olhos, surpreendido por ouvir a minha língua mãe. Ela era baixa, de rosto redondo e olhos escuros, e tinha no olhar uma expressão de malícia indolente.

– Cresci em Roma – explicou. – O meu tio trouxe-me para Paris para arranjar marido.

– E arranjou? – perguntei, ousado.

Ela acenou.

– Vários, na verdade. Um meu, e alguns que já pertenciam a outras. – Olhou para o rei, rodeado por um grupo de cortesãos.

Percebi então com quem estava a conversar. Até eu já ouvira falar de Olympe de Soissons, a beleza italiana que contava o próprio rei entre as suas conquistas. Ela e as suas quatro irmãs eram conhecidas como as Mazarinettes, por causa do nome do tio, o poderoso cardeal Mazarin.

– O que está a fazer? – perguntou-me, enquanto me via coar o líquido através de uma musselina.

– Um cordial. Pêras moscatel e gengibre, com um pouco de…

– Faça um para mim – interrompeu. – Mas esse não. Nunca gosto de comer o mesmo que as outras pessoas. – Afastou-se para se juntar aos outros mas, ao fazê-lo, lançou-me um breve olhar atrevido por cima do ombro.

Depois de distribuir os cordiais de gengibre, fiz algo diferente e levei-lho.

– O que é? – perguntou ela delicadamente.

– Uma tisana gelada de folhas de chá verde da China, com essência de lima e algumas sementes – respondi com uma vénia.

Ela acenou e bebeu um gole. Era uma receita que eu andava a trabalhar há alguns dias, um pouco fora do comum, usando os ingredientes mais recentes e na moda. O sabor começava por um golpe forte e fresco de lima, a que se seguia um pequeno jacto de folhas de chá verde. Depois havia uma sugestão de jasmim e um travo leve e quente de cardamomo picante.

– Interessante – foi tudo o que ela disse. E depois, enquanto eu me afastava: – E surpreendentemente refrescante. Obrigada.

No dia seguinte recebi ordens para preparar os ingredientes para vinte litros de cordial.

– Vinte litros? – repeti ao lacaio que trouxe a ordem. – Tem a certeza? Isso seria suficiente para toda a corte.

– É apenas para madame la comptesse. Ela deseja aquele que lhe fez ontem. Leve os ingredientes directamente aos aposentos dela.

Era fácil perder-me no palácio enorme e por várias vezes tive de pedir indicações a um dos criados de peruca que estavam de serviço nos corredores intermináveis. Por fim, encontrei a porta certa. Foi-me aberta por uma criada, que me convidou a entrar. Mesmo pelos padrões de Versalhes, o apartamento era sumptuoso. Papel de parede de seda vermelha estava por sua vez coberto com obras de arte, sendo a peça central uma pintura da própria Olympe, vestida com pouco mais do que umas cortinas de veludo.

A criada introduziu-me numa antecâmara onde havia uma banheira e uma fila de jarros fumegantes. Não vi mais nada a não ser um biombo de seda bordada, uma cadeira e uma chaise-longue estofada a veludo vermelho, sobre a qual fora colocada uma pilha de grossas toalhas de linho.

Madame, o confeiteiro chegou – disse a criada, fazendo uma reverência na sala vazia.

– Obrigada, Cecile.

A cabeça de Olympe apareceu por cima do biombo. Estava a soltar o cabelo com uma mão, libertando os caracóis elaborados.

– O seu cordial estava tão delicioso que decidi que gostaria de me banhar nele – disse, simplesmente. – Importa-se de o preparar para mim, por favor?

Fiz o que ela me pediu. Em vez de encher a banheira com folhas de chá e rodelas de lima, coloquei os sacos de musselina que continham os ingredientes directamente na água e deixei-os macerar. A água estava bastante quente – se soubesse, teria alterado ligeiramente as proporções; o calor ia realçar mais o sabor das folhas de chá, enquanto o gelo favorecia a lima…

– Está pronto? – perguntou ela.

– Devia estar mais algum tempo de infusão.

– Nesse caso, eu ficarei de infusão com ele. – Olympe saiu de trás do biombo. Vestia o seu déshabillé – uma peça de renda fina como gaze, fechada à frente, que mal lhe cobria os joelhos. Se reparou na minha reacção, não deu quaisquer sinais disso.

Madame – disse, inclinando a cabeça e preparando-me para sair.

– Espere – ordenou ela em tom imperioso, enfiando uma perna na banheira para testar a temperatura. – Posso querer alterar as quantidades e, além disso, gosto de falar italiano enquanto tomo banho. Sente-se na cadeira e fale comigo.

Dirigi-me à cadeira e sentei-me, um pouco atrapalhado. O biom­bo, percebia agora, estava posicionado de modo a que, de onde eu estava sentado, ocultava um pouco – muito pouco – a banheira; embora não conseguisse ocultar, descobri, as costas nuas de Olympe quando se despiu e se instalou na água com um suspiro.

– Como se chama? – perguntou em italiano.

– Demirco, madame.

– Eu sei disso. Refiro-me ao seu outro nome.

– Carlo.

Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual ouvi o chapinhar suave da água enquanto Olympe a derramava sobre o corpo com as mãos em concha. O aroma de lima, chá verde e jasmim chegou até mim. Permaneci muito quieto.

Por fim, ela disse:

– Afinal não quero falar, Carlo. Hoje parece que tenho a língua tão presa como a sua. Pode juntar-se a mim.

Madame?

– Junte-se a mim – repetiu ela. – Na banheira.

Mais tarde, ela disse:

– Então, foi tão agradável como esperavas?

– Sem dúvida. Mas precisas de mais lima.

– Preciso é de mais amor. – Espreguiçou-se voluptuosamente como um gato, tão à vontade sob o meu olhar como se ainda estivéssemos ambos completamente vestidos. Estávamos agora na chaise-longue: eu rapidamente percebera que, tal como a banheira e o biombo, não fora ali colocada por acaso.

Estendi a mão para ela.

– Espera – disse, pousando a mão no meu peito. – Foi bastante bom, para a primeira tentativa. No entanto, para a próxima, tens de ser mais lento. E um bocadinho mais inventivo.

– Inventivo! – exclamei, ferido no meu orgulho.

Ela riu-se.

– Não fiques ofendido. Simplesmente já fiz isto muito mais vezes do que tu e, como qualquer outra competência, é algo que é preciso praticar. Além do mais, há modas para fazer amor, como para tudo o resto, e especialidades nacionais também. Os Franceses são bastante bons; quase tão bons como a fazerem pastéis e sobremesas.

– O que pode um francês saber que um italiano não saiba? – perguntei, secamente.

Ela sorriu.

– É isso que te vou mostrar agora.

Quando acabou de me mostrar e eu estava finalmente a preparar-me para sair, acrescentou:

– Para a próxima, quando vieres, tens de trazer uns gelos e eu mostrar-te-ei uma utilização para eles que talvez nunca te tenha ocorrido.

Audiger ficou furioso.

– Foste visto a sair do apartamento dela. Queres que sejamos ambos banidos da corte?

– Todos o fazem – respondi. – Porque não posso eu fazer o mesmo?

Audiger ergueu as mãos.

– Porque as posições deles estão seguras e a nossa não.

– Não me importo – disse. – Não vou deixar de a visitar apenas porque alguém pode não gostar. Não consigo viver assim.

– Nesse caso, és um idiota – disse Audiger num tom seco. – A cor­te não é lugar para um homem se apaixonar.

– Quem é que falou em apaixonar-se? – Disse-o sem pensar, como qualquer jovem poderia dizer, mas sabia também que era verdade; o estilhaço de gelo estava cravado demasiado profundamente para isso acontecer.

– Muito bem – disse Audiger, com relutância. – Mas tem cuidado para não perderes o coração. Ou então, podes acabar por perder outra parte também… a cabeça, que, ao contrário desse outro órgão, não tem como sarar.

Acenei. Sabia que Audiger não me podia proibir isto. O equilíbrio entre nós mudara durante esses anos na corte. Eu tinha agora tudo o que sempre quisera – riquezas, posição, os meus apetites carnais saciados por uma das maiores amantes da época e a protecção do rei mais poderoso da Europa.

Da próxima vez que visitei Olympe, entrei com confiança no seu apartamento, levando um tabuleiro no qual estavam dispostas quatro taças de vidro com sorvetes. Cada um era de uma cor e de um sabor diferente: dióspiro, pistácio, pêssego branco e mel dourado. Não levava colheres.

Levantei a mão para bater mas, quando o fiz, um lacaio materializou-se do nada e colocou-se entre mim e a porta.

Madame la comptesse não quer ser incomodada.

Apontei para os gelos.

– Trouxe-lhe estes gelos.

– E eu tratarei de que ela os receba – disse ele, retirando-me habilmente a bandeja da mão. Não protestei. Reconhecia agora o homem: era um dos criados pessoais do rei. Enquanto me afastava, ouvi a porta abrir-se para ele entrar com os gelos.

Esperei por perto. Tal como calculara, cerca de meia hora depois vi o rei sair dos aposentos de Olympe e descer a grande escadaria que levava aos seus aposentos. Ia a puxar o punho da camisa, como se tivesse acabado de a vestir.

Voltei para trás para ir buscar a bandeja. Olympe estava na banheira mas a criada disse que ela me receberia.

– O rei ficou muito impressionado com os teus gelos – disse Olympe sem preâmbulos, quando me viu. – Na verdade, era mesmo o retemperador de que ele estava a precisar. Hoje em dia, são raras as vezes em que consegue fazer amor comigo duas vezes; ficou muito satisfeito consigo próprio, o que significa que está satisfeito comigo. Obrigada.

Olhei para ela, estupefacto com o tom casual.

– Ainda és amante dele? Mas pensei…

– Que ele se deitava nos braços de madame de la Valliere? E deita… a maioria das vezes. Mas há alturas em que ela está indisposta, ou que lhe apetece alguma variedade. Outras vezes, namorisca com uma nova dama de companhia e é rejeitado: nesses casos, traz-me a sua vaidade ferida para eu a restaurar. Há muitas razões para um homem escolher deitar-se com uma mulher, e nem todas são simples. Neste momento, o rei sente alguma nostalgia da minha companhia.

– Então… não queres que volte? – perguntei, um pouco ferido na minha própria vaidade.

Olympe riu-se.

– Nada disso. Contigo, Carlo, as coisas são completamente simples, e é esse o seu encanto. Hoje estou cansada, e espero que o rei possa voltar a procurar-me amanhã, mas volta dentro de alguns dias e veremos como estão as coisas – disse, lançando-me um olhar malicioso. – Seja como for, não é justo que eu te queira açambarcar só para mim.

– Como assim?

– Quero simplesmente dizer que te falta experiência. Não, não fiques triste… todos estivemos no mesmo barco em tempos e, além disso, para uma pessoa como tu, esse problema é fácil de resolver. O palácio está cheio de mulheres que teriam todo o prazer em ser tuas professoras nesta matéria.

– Sim? – perguntei, espantado.

– Claro que sim. Porque pensas que madame de Corneil man­da vir os teus cordiais todas as noites? Porque pensas que madame Roussoulet está sempre a convidar-te para jogar às cartas? E porque pensas que fiz questão de te seduzir antes de qualquer uma delas?

– Quer dizer… que estavas a provar alguma coisa?

Olympe sorriu.

– Entre outras razões. – Com as mãos, deitou água sobre o corpo.

– E não terias ciúmes se eu dormisse com outras mulheres?

– O ciúme é para a gente vulgar – disse ela, em tom indiferente. – Pessoas cujas migalhas de prazer são tão poucas e raras que têm de lutar por elas como mendigos por uma côdea de pão. Aqui na corte, onde somos empanturrados com a possibilidade de sensações agradáveis, podemos dar-nos ao luxo de sermos mais exigentes. – Olhou para mim, divertida. – No entanto, se fores sensato, deixarás que seja eu a guiar-te nesta matéria. Tal como a escolha de uma colónia ou o gosto por uma sarabande diz muito sobre se alguém é um verdadeiro conhecedor, da mesma forma a escolha de amantes indica a quem nos rodeia se somos pessoas de gostos refinados ou impostores.

– Impostores? – repeti, algo atrapalhado. Suponho que ainda estava um pouco receoso de poder trair as minhas origens humildes com um passo em falso.

Ela acenou.

– Por exemplo, ninguém a não ser um bruto seduziria alguma vez uma criada. Deitar-se com alguém grosseiro, por mais disposta a isso que a pessoa esteja, é correr o risco de nos tornarmos também grosseiros. E, aconteça o que acontecer, nunca deves permitir deixar-te levar. O amor é muito bonito, contudo, tal como a fome não desculpa a falta de maneiras à mesa, a paixão não desculpa o comportamento de um labrego na cama. Excesso de emoção numa aventura amorosa é tão feio como excesso de rosmaninho num prato, ou excesso de violência numa música. É possível… na verdade, é necessário… mostrar elegância nos nossos amours, tal como no resto dos assuntos.

Disse tudo isto numa voz ligeira e indolente, como se o tema fosse algo em que reflectira já tantas vezes que não havia nada mais a dizer sobre o assunto. Era o modo como falavam na corte, particularmente as mulheres: eu já o ouvira ser descrito como préciosité, e as mulheres que o cultivavam nos salões e salas da Paris elegante eram conhecidas como les précieuses. Mas o brilho de malícia nos seus olhos indicava que este era um projecto que ela na realidade levava muito a sério.

Curvei-me ironicamente.

– Ficaria muito grato por toda a instrução que puder dar-me nesta questão, madame.

– Óptimo – disse ela. – Assim sendo, está combinado. Traz-me um gelo dentro de dois dias e, entretanto, vou pensar em quem deverá ser a tua próxima conquista.

E assim começou a próxima fase da minha educação. Tal como em Florença eu fizera experiências com vários sabores e técnicas de gelo, assim aqui em Versalhes provei os diferentes sabores e gostos do amor. Olympe tinha razão: rapidamente descobri que havia muitas mulheres na corte felizes por serem minhas acompanhantes. Descobri também outra coisa: eu gostava de mulheres e elas, regra geral, gostavam também de mim. Pode parecer uma afirmação curiosa, mas não era de forma alguma evidente por si mesma: muitos dos mais famosos amantes da corte pareciam quase cansados das suas aventuras, como se apaixonarem-se fosse um dever tão árduo e inevitável como assistir a mais um baile. De vez em quando, Olympe tinha de me prevenir contra o excesso de entusiasmo – «Se andares sempre com um sorriso desses na cara, as pessoas pensarão que és um simplório» – mas, de uma maneira geral, tratava-me com uma indulgência divertida; pela minha parte, aprendi rapidamente a apresentar ao mundo aquele ar de cinismo divertido e altivo que era a grande moda da época.

Descobri também que, se uma mulher tivesse de ser cortejada, eu tinha ao meu dispor o meio perfeito de o fazer. Parecia que não havia nada tão persuasivo como anunciar que estava a tentar aperfeiçoar um novo sabor ou combinação de gelos, que ninguém saboreara até agora, e que precisava da ajuda da dama em questão para provar o meu trabalho e me dar a sua opinião. Havia uma certa habilidade, e prazer também, em fazer condizer o sorvete com a mulher: as mais jovens e inocentes – não que existisse algo como verdadeira inocência naquela corte – podiam ser tentadas com sabores mais sofisticados, enquanto as mulheres mais velhas preferiam a inocência e juventude dos sabores simples.

À medida que me fui tornando mais exímio, tornei-me ainda mais inventivo, tanto nos gelos que fazia para o rei como nos que produzia para as minhas amantes. Continuava a fazer os sorvetes de um só fruto de que o rei tanto gostava, claro. No entanto, depois de ter colhido todos os frutos existentes na Natureza, comecei a criar pomares novos e imaginários e as minhas próprias hortas, onde cresciam extravagâncias como uma árvore que era metade limão, metade lima, ou um arbusto que dava pão de centeio, ou uma planta cujo pólen era as ovas do esturjão da Aquitânia. Até os canteiros de flores trocavam os seus botões por sorvetes de perfumadas folhas de gerânio ou alfazema, ou emprestavam os seus aromas a granites perfumados de erva-cidreira, violeta ou rosa. O facto de estes sabores poderem sequer existir, quanto mais estarem presos nos cristais gelados das minhas eaux glacées, nunca deixava de espantar os convidados do rei: a minha estrela subiu cada vez mais e o meu nome tornou-se conhecido até fora dos limites da corte.

E depois, um dia, levei um prato de gelo de morango aromatizado com pimenta branca ao rei e, embora não me tenha apercebido de imediato, a minha vida mudou completamente.

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