CARLO
A diferença entre um simples sorbetto e um gelado é tão grande como a diferença entre giz e queijo.
O Livro dos Gelos
Tinha pouco com que me ocupar enquanto aguardava a chegada do ananás. Mandava geleias e cordiais gelados para a corte e passava o resto do tempo a fazer experiências.
Na verdade, sabia que era tão novato nisto como fora em tempos na feitura de gelos, e precisava desesperadamente da orientação de Boyle ou de outro filósofo natural. No entanto, Boyle deixara bem claro que não me ajudaria a menos que eu concordasse em tornar públicas as minhas descobertas, portanto, até ver, estava por minha conta.
Determinado a prosseguir usando a mesma abordagem lógica que um químico como Boyle empregaria, comecei por regressar ao gelo de pêra que fizera em França e tentei recriá-lo exactamente como antes. Mas o processo acabou por não se revelar simples. Parecia que a relação entre os vários ingredientes era quase impossivelmente complexa – reduzir a quantidade de açúcar tornava a textura menos gelada, mas também tornava quase impossível congelar a mistura: o crème anglaise por vezes congelava suave, mas outras vezes formava grumos, como ovo mexido, enquanto alterar as proporções de pêra e nata o transformavam de um gelo cremoso e suave numa porcaria líquida e peganhenta.
Durante estas experiências, Hannah lavava os meus pratos e Elias ralava o meu gelo. Com alguma surpresa, percebi que ambos eram bons trabalhadores, e não tinha quaisquer queixas da sua aplicação. Lembrei-me das palavras do espião francês. Acreditam em trabalho duro, estes protestantes, quase religiosamente, poder-se-ia mesmo dizer. Não voltara a repetir-se a atitude de desafio em relação às juras e, pela minha parte, decidi não falar mais no assunto.
No entanto, era evidente que Hannah não era o tipo de criada a que eu me habituara em França.
– Porque é que um cordial gelado é melhor do que ao natural? – perguntou-me Elias, um dia.
– Porque refresca o palato dos cortesãos suficientemente afortunados para o provarem.
– Mas porque é que simplesmente não despem os casacos para refrescar?
Era tentador dizer-lhe que parasse com as perguntas; mas havia qualquer coisa no rapaz que me fazia lembrar a minha própria curiosidade quando comecei a trabalhar para Ahmad.
– Porque um gelo cremoso é mais delicioso do que despir o casaco – respondi, pacientemente.
– Posso provar um bocadinho?
– Não.
– Porquê?
– Não é para o gosto de crianças.
– Então porque é que os cortesãos gostam, se as crianças não gostam?
– Porque os cortesãos são idiotas. – Era Hannah, a interromper sem que ninguém lhe tivesse dirigido a palavra. Viu a minha expressão. – É apenas a verdade – disse, nada atrapalhada. – E mais vale que ele a saiba desde já.
Não lhe respondi directamente, mas falei com o rapaz.
– Os cortesãos estão habituados a magnificência. Conseguem apreciar coisas especiais, às quais têm direito em consequência da sua nobreza e dos seus serviços ao rei.
Um som vindo da direcção de Hannah indicou o seu desacordo.
– A corte é a origem de todos os nossos problemas.
– Sem a corte, não haveria governo – observei.
– Neste país, temos a felicidade de ter um parlamento, que governou o país perfeitamente bem enquanto o rei vivia no estrangeiro.
– Quando o último rei foi sido assassinado pela populaça – respondi, em tom cortante –, e o seu filho se viu obrigado a ir para o exílio, dizem-me que este país ficou nas mãos de um ditador.
– O parlamento não é perfeito – admitiu ela. – Quanto ao rei Carlos… não há dúvida de que, desde a morte da irmã, ele tentou livrar-se de alguns dos libertinos e sanguessugas que o rodeavam. Mas é também um fraco e, quando a sua dor passar, voltará ao que era antes. Quer isto dizer – disse, lançando-me um olhar de soslaio –, aos seus costumes de católico. Facilmente se deixa distrair por todo o tipo de prazeres e novidades, especialmente se tiverem o elegante selo de aprovação de França.
Esta avaliação era, claro, tão idêntica à das pessoas que me tinham enviado que, por um momento, não soube o que dizer.
– Bom, não será distraído pelos meus gelos, pelo menos – disse, por fim. – São apenas águas e cordiais gelados. Não há neles nada que possa mudar o carácter de uma pessoa, quanto mais a sua religião.