CARLO

As pêras de cozer, tal como os marmelos, têm de ser amaciadas antes de usar, e são melhores de adoçar depois de cozinhadas ou com a adição de outra fruta.

O Livro dos Gelos


O rei mandara-me chamar. Caminhámos lado a lado no Parque de St. James, com os spaniels a correrem entre as nossas pernas. Sua Majestade estava com vontade de passear, hoje – deambular, como ouvira os cortesãos chamar-lhe, as longas pernas reais a cobrirem terreno sem esforço, mas sem nenhuma direcção em particular.

Eu levara-lhe um gelo novo no qual estava a trabalhar, um cre­me com passas brancas e as duras pêras de Inverno a que os Ingleses chamam «pêras de cozer».

– Isto está muito bem feito – comentou ele, enquanto caminhávamos.

– Obrigado, senhor.

Com a colher, apontou para o lado mais distante do parque.

– A minha casa de gelo está a ser reconstruída de acordo com as suas instruções. Disse-lhes que dessem prioridade a esse trabalho.

Assenti.

– Tem de estar terminada antes da chegada das geadas, caso contrário a colheita deste ano estará também arruinada.

Ele sorriu com a minha escolha de palavras.

– Penso que não está familiarizado com os nossos Invernos ingleses.

– Não, senhor.

– O gelo é uma das poucas colheitas em que raramente passamos necessidades. – Estendeu-me a taça vazia. – Todos os meus ministros estão a construir casas de gelo, sabia? O Arlington em Newmarket, o Clifford em Chudleigh. O senhor e eu começámos uma moda, e agora todos querem superar-me.

– Ou talvez, senhor, queiram apenas superar-se uns aos outros, na ânsia de serem tão parecidos convosco quanto possível.

– Sim – disse ele com ar pensativo. – Sim, é exactamente isso. Bem dito.

Encolhi os ombros.

– Os cortesãos são assim em todo o lado.

Ele virou para um caminho de gravilha.

– No próximo ano, celebrarei um aniversário especial. Fará dez anos desde a minha coroação… da minha segunda coroação, claro, a restauração do meu trono. Tenciono que seja uma grande celebração: um Verão de esplendor e festas, começando por um grande banquete… um divertissement, como creio que Luís lhe chamaria. Para a Ordem da Jarreteira. Mais de mil convidados.

– Mil!

O rei acenou afirmativamente.

– Todos os homens e mulheres de nascimento nobre do meu reino. Vou mandar reconstruir o castelo de Windsor propositadamente para a ocasião. Terá um Grande Salão novo, tão grande como qualquer salão de Versalhes, onde terá lugar a festa. E será tudo moderno… quer isto dizer, francês. Nada de grifos ou aves canoras ou rosbif seco para nós, signor. Terei gelo… grandes recipientes de gelo, para refrescar os meus caranguejos, os meus morangos e espargos; banheiras de gelo para refrescar o meu champanhe… talvez até algumas dessas fontes de gelo movidas a corda de que tenho ouvido falar.

– Eu não poderia… – comecei, mas depois calei-me. Ninguém dizia que não, directamente, a um rei. – Seria preciso muito gelo, senhor… mais do que alguma vez foi usado neste país.

– E, signor, quero que crie um prato especialmente para a ocasião – continuou ele, como se eu não tivesse falado. – Algo ainda mais esplêndido do que os gelos que criou para o Rei Sol.

– Este gelo seria em honra de algum convidado em particular, senhor?

– Sim, seria. – Fez uma pausa, mas eu já sabia o que ele ia dizer. – É para mademoiselle de Keroualle. Quero que faça algo para ela.

– E será para servir a toda a gente?

O rei abanou a cabeça.

– Apenas para a mesa real. Será como esturjão, ou golfinho, ou cisne… um prato reservado para mim e para aqueles que eu entender. Para ela e para mim, e para mais ninguém.

Percebi, então, as intenções dele. Pois cada banquete, quer seja de Estado ou não, tem um tema. Cada refeição exprime a visão que o seu anfitrião tem de si próprio e do seu lugar no mundo. Desde o chefe da casa a trinchar a ave de domingo à mesa de família, a um círculo silencioso de puritanos a abençoar o seu pão diário, todas as refeições, humildes ou elaboradas, falam uma linguagem de cerimónia para aqueles que a conseguem descodificar.

Que melhor forma para Carlos expressar a sua submissão às modas, às políticas e aos prazeres de França, do que através de uma exibição extravagante do alimento mais fino e elegante de França?

E que melhor forma de simbolizar o seu próprio estatuto do que ao servir como peça central da refeição um prato que os seus próprios convidados estavam proibidos de comer?

Ele não estava apenas a mostrar os seus gostos continentais. Estava a fazer uma declaração política. Ao dedicar este prato a Louise, estava a dizer que não lhe importava o que qualquer pessoa pensasse sobre o facto de dar abertamente preferência a França. Tal como Luís XIV era o governante incontestado e autocrático de França, assim o gelado de Carlos diria que este era o papel que ele tencionava assumir em Inglaterra – o de monarca absoluto e arbitrário.

Era tudo a que o parlamento o obrigara a renunciar quando o tinha restaurado no trono. E seria o meu trabalho fornecê-lo.

Curvei-me de novo.

– Esforçar-me-ei por criar algo digno da ocasião, senhor.

– Estou certo disso, signor – disse ele, com aquele sorriso charmoso. – Quero que este banquete mostre ao mundo aquilo de que somos capazes, o senhor e eu. Sei que não me desiludirá.

– É bom para nós – disse lorde Arlington imediatamente. – Ele não tem dinheiro para isso.

– Terá então de se conter nos seus planos?

Arlington abanou a cabeça.

– O rei considera-se acima das questões económicas. Não… se ele se comprometer com a reconstrução de Windsor e com um banquete para mil convidados, não terá alternativa senão ir para a guerra. Sem a pensão de Luís, estará na bancarrota em menos de seis meses. Faça o que ele lhe pede, Demirco. E certifique-se de que não poupa despesas.

A água em Londres era notoriamente nauseabunda e o Tamisa estava negro com excrementos. Bem antes de os rios congelarem, comecei à procura de uma boa fonte de gelo fresco.

Encontrei-a por trás de Hampton Court. Uma série de lagos alimentados pela sua própria nascente. Solo nivelado, fácil de percorrer com uma carroça, e já era propriedade do rei. Expliquei a um intendente perplexo aquilo de que precisava.

– Quer cortar o gelo? E guardá-lo?

– Exactamente. Vou precisar de trabalhadores… um bom número deles. E ferramentas especiais que terão de ser feitas por um serralheiro. Vou fazer os esboços.

Ordenei a construção de um celeiro para guardar o gelo à medida que fosse retirado do lago e ele recusou directamente.

– Não há dinheiro para construções. O rei não paga ao seu próprio pessoal doméstico há três meses.

– Pagará por isto – respondi, confiante. – É necessário, se ele quer os seus gelos.

Disse a Elias que passaríamos o Inverno em Hampton e ele fez uma expressão desolada.

– O que é, rapaz?

Com alguma hesitação, respondeu:

– É só porque vamos perder o Natal.

– Elias! – exclamou a mãe, que estava a ouvir a conversa. – Natal? O que é isto que estou a ouvir?

Ele inclinou a cabeça, envergonhado.

– Algumas das outras crianças dizem que vai ser uma festa.

Sem me pedir permissão, ela agarrou nele e puxou-o para um canto. Pensei que estaria a repreendê-lo pela sua falta de entusiasmo pelo trabalho, até me aperceber de que as objecções dela eram outras. Estava a tentar falar em voz baixa, mas a irritação era muita.

– …já é suficientemente mau trabalhares para um papista, mas não te admito que celebres também os festivais papistas. Agora desaparece e não quero ouvir falar mais de Natal.

Esperei até o rapaz sair e Hannah estar a bater com as panelas, irritada, antes de falar. Para dizer a verdade, estava divertido: nunca me ocorrera que, enquanto eu estava preocupado com a decência de ter ao meu serviço o filho de uma meretriz, a meretriz em questão estivesse preocupada com a decência de ele estar ao meu serviço.

– Então não celebram o Natal, presumo? – perguntei, em tom neutro.

– Não.

– Posso perguntar porquê?

– Sob o regime do lorde Protector, percebeu-se que não havia necessidade disso.

– Enquanto o aniversário do próprio lorde Protector, estou certo, era feriado público.

Ela lançou-me um olhar furioso.

– Mostre-me onde é que diz nos Evangelhos que o dia vinte e cinco de Dezembro é o aniversário de Cristo, e serei a primeira a celebrá-lo. Até lá, o domingo é Dia do Senhor suficiente para nós.

– Realmente parece ser mais do que suficiente – respondi. – Desde que aqui estou, ainda não vi um único dos criados desta estalagem ir à igreja, nem mesmo no domingo.

Ela respondeu de forma inexpressiva:

– Vamos quando temos de ir. Em Inglaterra, agora, é assim. Temos de ir à igreja quando nos mandam, ou seremos identificados como dissidentes.

– Nesse caso, parece-me que precisam de mais festivais, e não de menos.

– Porquê? – perguntou ela, irritada. – Para ouvirmos sermões de homens com vestes sagradas que afirmam ser os únicos a conhecer a palavra de Cristo? Que murmuram as orações como se fossem feitiços e falam do Espírito Santo e de Deus como se fossem magos invisíveis?

– Parece-me também – continuei, em tom ligeiro –, que embo­ra os vossos bispos pudessem chamar-me sem dúvida um papista iludido, não ficariam muito mais satisfeitos consigo.

– Bispos! – exclamou ela, com repugnância.

– Não podem ter uma igreja sem bispos.

Por um momento, pareceu-me que ela se estava a esforçar por não responder. Depois disse:

– Mas tivemos. Pelo menos, durante algum tempo.

– O quê? Sem Natal e sem bispos?

– Estávamos a construir o reino de Deus – disse ela, com uma espécie de orgulho estranho e desafiador. – Uma experiência sagrada. Foi o que nos disseram. E conseguíamos ver a verdade nisso… senti-la, quando o Espírito se movia dentro do nosso peito. Um reino sem reis. Uma Igreja sem igrejas. Um país onde não haverá vínculos: nem de propriedade, nem de privilégio, nem de nascimento. Um sítio onde nenhum homem nascerá com estribos nas costas, para ser montado por outros homens. Onde cada homem poderá escolher a sua forma de veneração; sim, e cada mulher também, e as únicas leis a que deveremos obediência serão as que estão escritas no nosso coração. – Disse tudo isto em tom monótono, como se fosse uma litania que já recitara muitas vezes e que sabia que não devia estar a dizer agora. Fitou-me directamente nos olhos. – E ain­da acredito que um dia acontecerá de novo, aqui, quer eu esteja viva para o ver, quer não. O rei Carlos deixar-nos-á e o rei Jesus sentar-se-á no trono em seu lugar. Não nos ajoelharemos perante qualquer homem e seremos todos livres.

– Basta – disse-lhe, subitamente assustado. – Isso é traição e heresia, mulher. Controle a língua e não quero ouvir mais essa conversa.

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