CARLO

Para fazer um sorvete de nêsperas: leve a ferver um quilo de polpa de nêspera com uma chávena de açúcar e o sumo de um limão, mexendo sempre com uma colher ou vara. Ficará melhor se adicionar um ou dois copos de cordial feito de bagas de espinheiro-negro ou dos abrunhos selvagens que crescem em climas setentrionais.

O Livro dos Gelos


De todas as árvores do pomar, a nespereira deve ser a mais estranha. Na árvore, os frutos são duros e amargos. Contudo, se os deixarmos no Inverno, as geadas quebram a polpa dura. Só quando a pele fica castanha é que a polpa está suficientemente macia para se comer, com algo da suculência almiscarada de caça fumada, ou de queijo que foi envelhecido em caves húmidas. É um processo que sugere ao mesmo tempo amadurecimento e apodrecimento.

A primeira vez que eu falara com Louise fora numa pequena mata de nespereiras.

Fiz um gelo de nêsperas e adocei-o com um licor fragrante, levemente medicinal, feito de bagas de espinheiro-negro. Coloquei-o numa cama de neve fresca do campo e levei-lho.

*

Nos aposentos dela havia grande actividade. Uma parede fora derrubada, abrindo o espaço para as salas do lado. Os trabalhadores estavam a pintar as paredes com novos frescos e colunas trompe l’oeil. Outro pintor estava a fazer o retrato dela. E um bando de damas de companhia observava e coscuvilhava do outro lado da sala.

– Trouxe-lhe um gelo – disse, com uma vénia.

– Signor Demirco. – Virou-se para o pintor e disse: – Já retomamos o trabalho. – Ele pareceu furioso, mas pousou o pincel com um aceno da cabeça.

– Venha. – Conduziu-me para uma alcova privada.

– O que se passa? – perguntei, enquanto lhe entregava o gelo.

– Isto? Oh, estão a remodelar os meus aposentos. Ao que pare­ce, tenho de ter um quarto do tamanho de um salão de baile, para a minha ruelle matinal, quando ele me visita com os amigos. E uma sala de baile para quando ele quer dançar. – Ele, reparei. Já não era o rei, nem sequer Carlos.

O vestido dela estava salpicado com centenas de pérolas. Estava vestida para o pintor do retrato, claro, mas também mudara. Já não era uma rapariga, uma criança, mas sim uma senhora – uma grande dama de França, refinada e elegante.

Ou estariam estas diferenças não nela, mas na forma como eu a via, por causa dos adereços que a rodeavam – o vestido, as sedas, as damas de companhia, o pintor de retratos, os próprios aposentos sumptuosos?

– Como foi o seu Inverno? – perguntou ela. – Conseguiu o seu gelo?

Acenei afirmativamente.

– O suficiente para fornecer gelados à Europa inteira. E o seu? Como estão as relações com Sua Majestade?

– Oh, Carlo – suspirou ela.

– O que se passa?

– O rei está apaixonado por mim.

– E então? Já estava apaixonado por si antes de eu me ir embora.

– Mas agora parece quase… tresloucado. Como se estivesse em sofrimento. Lidei mal com ele. Agora estamos ambos encurralados. Ele não pode casar comigo; não suporta deixar-me partir; e nenhum de nós pode voltar para casa enquanto esta guerra não acontecer. O que hei-de fazer?

– O que desencadeou isto?

– A mulher do irmão dele, Anne Hyde, morreu.

– Eu soube. – Dizia-se que, no leito de morte, ela recusara o padre, dizendo que preferia morrer sem absolvição na Fé Verdadeira do que abençoada numa fé falsa. As pessoas com quem eu falara, na província, estavam mais convencidas do que nunca de que os Stuart eram católicos secretos.

– A questão é, com quem casará Jaime a seguir? Uma mulher jovem, diz ele, bonita e, claro, católica.

De súbito, percebi.

– A Louise?

Ela acenou.

– Ele falou com Carlos sobre o assunto, pelo menos. Houve uma discussão tão grande… Carlos pensou que eu o encorajara. Não é verdade, claro. Estava apenas a tentar obter o apoio dele para a guerra.

– Então o que aconteceu?

– Disse a ambos que nunca poderia aceitar.

Eu sabia o que isto devia ter significado para ela: recusar uma oferta de casamento do herdeiro do trono inglês.

– Não tive escolha – acrescentou. – O Colbert e o Arlington deixaram-no perfeitamente claro. Serei amante de Carlos, ou nada.

– E a guerra?

Ela encolheu os ombros.

– Receio que, agora, esteja mais longe que nunca. Consegui influenciá-lo em pequenas coisas, sim. Mas não nisso.

Ela parecia tão abatida, ali sentada, que tomei uma decisão súbita.

– Fuja comigo – disse-lhe. – Agora. Hoje mesmo. Apanharemos um barco para Espanha ou para a Sicília. Case comigo ou não, é consigo. Podíamos estar em Dover ao nascer do dia. Em Madrid dentro de uma semana. Os meus gelados são os melhores da Europa; os espanhóis são grandes apreciadores, nunca passaríamos fome…

Ela abanou a cabeça.

– Não – disse, baixinho. – Carlo, não faça isso. O rei ama-me.

– E ama-o a ele?

Ela abanou novamente a cabeça e percebei que não estava a responder-me, mas apenas a avisar-me para nunca mais lhe fazer essa pergunta.

Voltei ao Red Lion. Admito: parei noutra taberna pelo caminho, a primeira que encontrei, e bebi três canecas de cerveja forte.

Depois entrei no Lion à procura de uma mulher.

Podia ter sido qualquer uma delas. Por acaso, foi Hannah que encontrei nas escadas.

– Venha – disse, abruptamente. – Preciso dos seus serviços.

– Leite-creme para os seus gelos?

– Refiro-me aos seus outros serviços. Os serviços que presta a certos homens. Quanto cobra?

Ela fitou-me nos olhos por um momento. Estava sem dúvida a calcular que preço poderia levar-me.

– Um xelim – disse, por fim.

– Muito bem. Vamos para o meu quarto.

Ela seguiu-me pelas escadas sem uma palavra. Apontei para a cama e disse-lhe onde se colocar. E depois…

Oh, tenho vergonha de escrever isto. Mas jurei contar tudo, sem embelezamentos nem rodeios.

Tomei-a na cama, como uma besta de quinta, sem sequer tirar as botas.

Ela não soltou qualquer som enquanto eu o fazia e fiquei-lhe grato por isso. Não teria aguentado se ela tivesse guinchado e gemi­do e elogiado, num fraco simulacro de prazer. Não havia qualquer prazer naquela cópula. Nem para ela, nem para mim. A única coisa que senti foi uma leve agonia de desejo a ser purgada do meu ventre, como se tivesse sangrado uma veia, deixando a dor no meu coração ainda mais clara.

Depois, fiquei deitado na cama a olhar para o tecto.

– Porque chora? – perguntou ela. Eram as primeiras palavras que pronunciava desde o princípio. Cuidadosamente, como se eu fosse um fogo que a pudesse queimar, pousou a mão no meu rosto.

– Não estou a chorar – respondi, virando a cara. Ela não disse mais nada e levantou-se.

– O dinheiro está na minha bolsa, ao pé da janela – disse-lhe. Ouvi-a pegar-lhe, o tilintar de moedas, e depois fiquei sozinho.

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