CARLO
Faça uma infusão da casca de quatro ou cinco limões, cortada muito fina, com o sumo; adicione um litro de leite de vaca gordo, e trezentas e quarenta gramas de açúcar; leve a ferver em lume brando, coe por um guardanapo, congele, e está feito.
O Livro dos Gelos
Depois da grandiosidade de Versalhes, o labirinto que era o palácio de Whitehall de Carlos II foi uma surpresa. Algumas partes pareciam quase abandonadas; outras continham estátuas e relógios de sol admiravelmente executados, mas colocados aparentemente sem reflexão ou cuidado. A dada altura, passámos por uma antiga casa de campo, de madeira, que parecia embutida no próprio palácio, como se este, ao crescer, tivesse simplesmente engolido as estruturas que o rodeavam.
– Estão sempre a dizer que vão demolir este castelo velho – disse Cassell enquanto me conduzia pelo labirinto. – Carlos quer construir a sua própria Versalhes, em Windsor, mas o parlamento considera que lhe está a dar dinheiro para política externa, não para palácios estrangeiros. Por aqui.
O capitão, que estava obviamente familiarizado com o caminho, abriu uma porta e entrámos numa vacaria fria, com chão de pedra. Quatro vacas castanhas olharam para nós com olhos tristes. Por baixo das suas barrigas, as criadas puxavam-lhes as tetas com movimentos experientes e fluidos. O cheiro a leite quente e a comida ruminada enchia o ar. Cassell atravessou a sala sem uma pausa e abriu outra porta.
Uma passagem estreita e depois um portão. Dava para um claustro onde vi um pequeno campo de tiro ao arco. Um grupo de mulheres disparava contra um alvo de palha.
– A rainha – murmurou Cassell, indicando uma figura esguia com um aceno. – Pratica todos os dias, pobrezinha. É a única coisa que tem para se ocupar.
Mais uma porta. Agora, sem aviso, estávamos num grande salão, com as paredes cobertas de frescos. Numa cadeira ornamentada estava sentado um cortesão, com uma mulher ao colo, virada para ele, o vestido aberto até à cintura. A mulher lançou-nos um olhar indiferente quando passámos; o homem nem ergueu os olhos. Cassell ignorou-os a ambos.
Antes de abrir as portas seguintes, parou.
– Dinheiro – disse, estalando os dedos. Procurei a primeira das três bolsas que trouxera comigo.
– Dê cá, eu seguro nisso. – Cassell tirou-me a caixa de gelo das mãos.
– Não a abra – pedi, ansiosamente.
– Não se preocupe, sei quais são as minhas ordens. Encontrou a bolsa?
Peguei na bolsa de cabedal apertada dentro da qual tilintavam as moedas.
– Sim.
– Dê-a ao criado.
Bateu à porta. O lacaio que a abriu enfiou o dinheiro no bolso sem uma palavra.
Subimos alguns degraus e saímos numa varanda, atrás de um grupo de pessoas que pareciam, pela indumentária, gente comum. Estavam a olhar para baixo, para um enorme salão de banquetes, onde havia uma dúzia de cortesãos sentados a uma mesa que tinha espaço para quarenta.
– O rei – disse Cassell, acenando com a cabeça na direcção da mesa. – Está pronto?
– Acho que sim.
– Dê-me as outras bolsas, então.
Enquanto eu abria a caixa de madeira, Cassell colocou as duas últimas bolsas na mão de outro criado. Depois virou-se e chamou-me com um gesto.
Tirei a bandeja de prata de dentro da caixa. Embora o monte de gelo tivesse amolecido ligeiramente durante a viagem desde Vauxhall, ainda estava intacto e apenas uma certa suavidade nas curvas indicava que não estava tão gelado como já fora. O cheiro a limões – limpo e fresco – ergueu-se do conteúdo.
– Depressa – disse Cassell, impaciente. – Assim que ele acabar de comer não se demorará muito.
– Come sempre em público, o rei? – perguntei, enquanto descíamos outras escadas.
– Só ao meio-dia. As refeições da noite são privadas. Por aqui. Boa sorte.
Cassell abriu uma última porta e recuou para me deixar passar. Enquanto avançava na direcção da mesa senti olhares sobre mim – não apenas os do homem moreno e alto no centro da mesa, que depenicava um prato de fruta, mas também os dos criados que o rodeavam, dos guardas de serviço à porta e do público lá em cima, na galeria.
Por fim, estava suficientemente perto para fazer uma vénia. Fi-lo à maneira italiana, com um pé para a frente, o outro joelho dobrado, o braço esquerdo erguido num floreado atrás de mim.
– Vossa Majestade – comecei, formalmente –, venho da corte de Sua Majestade Cristã o rei Luís Catorze, pela graça de Deus rei de França e Navarra, e por ordens dele trago-vos uma confecção extraordinária. – Estendi o prato e, por fim, ergui a cabeça para olhar para ele.
Pelas descrições que me tinham sido feitas por Lionne e Arlington, estava à espera de um peralvilho de queixo e olhos fracos. Mas o rosto do rei era de feições agradáveis e a sua expressão, apesar da magreza das faces, era inteligente.
– Raios – disse ele com um suspiro. – Bom, suponho que deve ser bom, se Luís assim o diz. Como lhe chamam?
Eu ia dizer gelo mas, no meu nervosismo, baralhei as palavras em inglês.
– Gelado, senhor.
– Muito bem. – Mandou-me avançar com um gesto.
Olhei em volta, à procura do criado que provaria a comida do rei. Quando não vi ninguém, hesitei por um instante.
– Oh, o rei não teme ser assassinado – disse uma voz ao fundo da mesa. Um cortesão com a indumentária elaborada de um dândi estava a observar a minha confusão. – Se alguém o envenenasse, seria para pôr o irmão dele no trono, e nem mesmo na detestável Inglaterra existe alguém suficientemente estúpido para fazer uma coisa dessas.
O homem estava a enrolar as palavras, como se tivesse bebido de mais, mas os que o rodeavam soltaram gargalhadas. No entanto, reparei que o rei não se juntou a elas. Indicou-me com um gesto que pousasse o prato à frente dele.
– É francês? – perguntou-me o rei.
– Italiano de nascimento, senhor. Mas passei muitos anos em França.
– Nesse caso, temos algo em comum. A minha irmã… – Fez uma pausa. De repente, os olhos escuros perderam a vivacidade. – A minha querida irmã que Deus tem também estava na corte de França.
– Sim, senhor. Cruzei-me com Madame em várias ocasiões.
– Conhecia a Minette?!
– Apenas de vista. Mas percebia-se que ela era uma dama extremamente virtuosa e bondosa. O próprio rei ficou destroçado com a morte dela.
– Foi mulher cuja morte foi mais lamentada em Inglaterra ou França – disse o cortesão embriagado. – Desde então, morrer tornou-se até moda. – Desta vez ninguém se riu, apesar de o cortesão parecer não reparar; ou, se reparou, era-lhe indiferente.
– Servi-lhe um gelo como este, entre outros – disse eu, apontando para o prato. Queria apenas chamar a atenção do rei para a mesa, incentivá-lo a comer o gelo antes de derreter, mas vi o olhar dele endurecer. Claro que Carlos sabia das circunstâncias da morte da irmã e dos rumores que a tinham rodeado. Perguntei a mim próprio se seria essa parte da razão pela qual eu fora enviado para Inglaterra; para mostrar ao rei, pessoalmente, que não tinham sido os meus gelos a matá-la.
Ele pegou na colher.
Enquanto colocava a primeira colherada na boca o silêncio instalou-se. Eu sabia exactamente o que ele estava a saborear: a polpa de limões de Amalfi, a doçura intensificada por um toque de gengibre; uns pós de raspa da casca dos limões, ralada muito finamente; a restante colocada em infusão em leite de vaca gordo, duas vezes gelado e mexido; o gelo resultante salpicado com pedacinhos de casca de limão cristalizada.
Esperei por uma reacção – qualquer reacção. Ele parecia pensativo e julguei vê-lo franzir ligeiramente a testa. Mas era difícil ter a certeza.
Depois, após uma única colherada, ele pousou a colher.
– Tem de me perdoar, signor. Não tenho grande apetite, de momento.
Tentando não mostrar a minha desilusão, fiz outra vénia.
– Com certeza. Mas talvez possa trazer-vos outro, noutra ocasião? Seria uma honra para mim permanecer na corte até Vossa Majestade estar mais bem-disposto.
– Muito bem. – Uma sombra cruzou-lhe o rosto. – Suponho que pretende ser pago?
Encolhi os ombros, educadamente.
– Bom, tratarei disso – disse ele em tom fatigado. – Fale com o Chiffinch. E entretanto, talvez… Sim: temos cá uma dama de companhia que também chegou recentemente de França. Mademoiselle de Keroualle.
– Oh, é esse o nome dela? – perguntou o cortesão embriagado. – Pensava que se chamava mademoiselle de Quero-Montá-lo.
– Conheço essa senhora – respondi, ignorando o bêbado.
– Tem de lhe mandar os seus gelos, da minha parte. Diga-lhe que é para a fazer sentir-se em casa.
– Diga-lhe – interveio o bêbado em voz alta –, que quando vier à corte pode provar também o falo real.
Alguma da minha estupefacção com a ordinarice desta observação deve ter transparecido no meu rosto, porque o rei disse, calmamente:
– Não dê atenção a lorde Rochester. Quando está sóbrio, consegue ser bastante divertido, mas quando está bêbado ninguém lhe acha graça a não ser ele próprio.
Curiosamente, quando ele disse estas palavras, senti parte da revolta que me invadira pelo comportamento do bêbado dissolver-se. Onde os Médicis eram austeros e Luís severo, Carlos de Inglaterra era encantador – tão encantador que quase não parecia um rei.
Um cãozinho saltara para a cadeira ao lado do rei e estava agora a esticar o pescoço sorrateiramente para o prato de gelado.
– Senhor… – disse, para o avisar.
– O que é? Oh, Daisy, para o chão. – Carlos empurrou a cadelita com pouca convicção. – Diga-me, signor, como se chama? – perguntou, olhando novamente para mim.
– Demirco, senhor.
– Sabe alguma coisa de casas de gelo, Demirco? Como são feitas, e essas coisas?
– Claro que sim.
– Construí uma casa de gelo no Parque de St. James. O gelo que contém será colocado ao seu dispor.
– Obrigado, senhor.
– Mas os meus homens não conseguem pô-la a funcionar e o raio do gelo está sempre a derreter.
Fiz uma vénia.
– Terei todo o prazer em verificar se há algo que eu possa fazer para melhorar a situação.
– Excelente. – Carlos empurrou a cadeira para trás. A audiência estava obviamente a chegar ao fim. Fiz outra vénia, com o braço esquerdo erguido atrás de mim da maneira formal e correcta.
Rochester riu-se.
– Céus, parece que vai fazer aparecer uma pomba.
– Fale com o Chiffinch – disse-me o rei, enquanto um criado se aproximava e colocava uma capa negra sobre os ombros reais. – Obrigado, signor Demirco, e seja bem-vindo.
– Signor De hirto – disse Rochester em voz arrastada. – Bem-vindo, signor De hirto.
Chiffinch era, como vim a descobrir, o criado a quem Cassell entregara as duas últimas bolsas. Foi relativamente vago em relação ao valor e periodicidade dos meus pagamentos.
– Vou falar com o abastecedor. Ou talvez com o cozinheiro.
– Sou o confeiteiro do rei. Não respondo perante cozinheiro nenhum.
Ele encolheu os ombros.
– Bom, o rei tratará disso. – Tive a impressão de que, a menos que houvesse subornos envolvidos, Chiffinch não estava muito preocupado ou interessado.
Cassell, contudo, estava satisfeito.
– Correu tão bem como seria de esperar, dadas as circunstâncias. Contudo, faria bem em ver o que se passa na casa de gelo.
– E tenho de mandar a mensagem dele à Louise.
– Quem? Oh, sim, claro. Mademoiselle Quero-Montá-lo. – Estava a sorrir. – O Rochester é um imbecil, mas um imbecil perspicaz.
– Foi o que o rei me disse. Pessoalmente, ainda não vi evidências disso – retorqui, em tom azedo.
Cassell fez uma cara séria mas tinha os cantos da boca a tremer. Supus que estaria a pensar na outra piadinha do peralvilho. Suspirei. Havia muitas coisas neste país, percebi, às quais nunca me habituaria.