CARLO

Uvas-espins e bergamotas estão entre as frutas que ficam melhor em gelos do que ao natural.

O Livro dos Gelos


Luís XIV conduziu pessoalmente o avanço sobre os Holandeses, cavalgando quase sem oposição à cabeça de um grande exército franco-inglês através da Holanda espanhola. Os Holandeses, porém, percebendo que não conseguiriam batê-lo em guerra aberta, abriram os diques e inundaram uma grande área do país que ele esperara conquistar. Frustrado, o Rei Sol foi forçado a jogar o jogo da espera.

Os exércitos são coisas dispendiosas, e os exércitos que não estão em movimento – que não vão pilhando e saqueando pelo caminho – são ainda mais dispendiosos. Para Luís, claro, não era nada estalar os dedos e exigir outro imposto. Para o seu aliado Carlos, que tinha de levar em consideração o parlamento, era diferente.

A Grande Paragem do Tesouro, quando o seu governo anunciara grandiosamente que não iria pagar capital nem juros sobre as suas dívidas durante um período de um ano, parecia agora um terrível erro de cálculo. Pois que banqueiro emprestaria mais dinheiro a um rei que não cumpria os seus pagamentos? Que dívida estava segura, se um rei podia subsequentemente alterar as suas condições conforme lhe agradava mais?

O seu único rendimento era agora a pensão de Luís e aquilo que conseguia do parlamento. O parlamento deixou bem claro que não lhe atribuiria mais sem resultados. O rei estava à beira da bancarrota.

Foi nesse mês que ele deu a Louise uma cadeirinha de transporte estofada a seda de prata, e dois lacaios negros para a transportarem; um colar no valor de três mil libras, uma fiada de pérolas no dobro desse valor e reconstruiu o seu apartamento para incluir um salão de espelhos. Foi nesse mês que ele deu a Nell uma carruagem com seis cavalos brancos, para mostrar que ela era a amante da realeza, e uma mesa de prata para combinar com os seus pratos de prata. Foi nesse mês que ele ordenou a construção de novos aposentos oficiais em Windsor e inundou o Parque de St. James para uma batalha aquática simulada.

Foi um Verão de gelados – claro que foi. O rei estava muito entusiasmado com as suas novas estufas; os jardineiros tinham conseguido cultivar uma bela colheita de ananases, damascos e meloas, e ele deu ordens para que eu tivesse acesso a tudo o que desejasse. Fiz um gelado que parecia exactamente um ananás, adoçado com um pouco de açúcar e sumo de uva. Rodeei-o com ananases a sério e cortei-o com um gesto floreado em frente do próprio rei, declarando que o acharia o fruto mais doce e maduro do seu reino. Este evento causou mais espanto na corte, creio, do que a capitulação de Utrecht.

Dei por mim a ficar sem ideias. Depois de ter servido ao rei e aos seus convidados todas as frutas que existiam em Inglaterra, todos os cordiais da Europa, todas as águas de sementes do mundo, o que restava?

Às vezes dava por mim a desejar ser mais como Hannah, que não servia mais de cinco ou seis tartes por mês, consoante o que lhe chamara a atenção no mercado.

– O que é isto? – perguntei-lhe na sala de jantar da estalagem um dia, enquanto levantava a crosta fumegante sobre algo suculento e de um vermelho escuro que não me era familiar.

– Tarte de miúdos.

– Fiquei na mesma.

– Vísceras de veado. Coração, língua, miolos e estômago, com molho de cebola e tomilho. Todas as partes que as pessoas ricas não querem comer.

No entanto, reparei que mesmo as pessoas ricas mandavam agora os criados ao Red Lion para comprarem tartes para o seu jantar. A fama de Hannah estava a espalhar-se.

– E amanhã?

– Galinha e alho francês. Na quinta-feira, cerveja e rim. E na sexta-feira, queijo e cebola. Porquê?

– Preciso de sabores novos para o rei – resmunguei.

– Mande-lhe uma tarte – disse ela, em tom de brincadeira.

Não podia fazer isso, claro, mas da próxima vez que fui à copa tirei os livros de culinária dela da prateleira e folheei-os, à procura de ideias.

– O que está a fazer? – perguntou Hannah, quando entrou.

– Estou a pensar em fazer uns sorvetes de ervas aromáticas. Por exemplo, isto parece interessante. O Culpeper fala dos usos culinários das urtigas…

– Devia ter mais cuidado. Já lhe disse que esse livro não pode ficar de fora – interrompeu ela, calmamente.

Olhei para ela, perplexo.

– Pensava que queria dizer para não se sujar.

Ela abanou a cabeça.

– Os livros do Culpeper foram banidos pela conservatória da propriedade literária. Quando encontram algum, queimam o livro e prendem o seu dono. Se ele tiver sorte. Às vezes queimam ambos. Os herbários dão boas fogueiras para as bruxas, dizem eles.

– Mas porquê?

Ela tirou-me o livro das mãos e arrumou-o novamente na prateleira.

– O Culpeper era um quinto-monárquico… quer isto dizer, um daqueles que acreditavam que o tempo dos reis estava a chegar ao fim e o tempo dos homens nascidos livres estava a começar. Foi por isso, em parte, que publicou o seu conhecimento e em inglês simples… para que as pessoas vulgares pudessem ter a informação que médicos e boticários estavam a tentar guardar para eles, com o seu latim e as suas corporações. De muito lhe serviu. E àqueles que o seguiam.

Lembrei-me das ervas que ela punha nas tartes – salva, azedas, uma deliciosa sugestão de estragão, molho de cebola e tomilho…

– Era uma delas? Uma ervanária?

Ela acenou.

– Entre outras coisas.

– Nesse caso, pode ajudar-me a criar alguns gelos?

Ela encolheu os ombros.

– Suponho que sim. Porque não?

– Óptimo. Eu pago-lhe mais…

– Não quero que me pague – interrompeu ela, baixinho. – O Culpeper deu o seu conhecimento de graça, na esperança de que as pessoas o usassem. Não me cabe a mim lucrar com ele.

E assim começou outra fase da minha educação culinária. Pois embora tenhamos começado por fazer simples sorvetes de plantas – urtigas, salva, folha de figueira, pelargónio e erva-cidreira – rapidamente se tornou evidente que as ervas eram ainda melhores quando combinadas, quer umas com as outras, quer com outros sabores, e que ao usá-las desta maneira era possível criar uma variedade quase infinita de sabores.

Na verdade, isto já não era engenharia. Era culinária, pura e simples. Pois certos sabores combinavam, e outros não, e era preciso imaginação e perícia para visualizar como seria cada combinação – se seria um casamento frutuoso ou estéril. Quem diria, por exemplo, que gelado de maçã-reineta e pétalas de rosa seria tão bom, a suculência doce das maçãs e o perfume voluptuoso das flores tornando o gelado quase ridiculamente sensual e embriagante na boca? Quem diria que aipo – o mais sensaborão e aguado dos vegetais – teria o sabor limpo e penetrante que tinha quando as suas sementes eram torradas e combinadas com flores de hibisco? Quem teria juntado groselhas negras e hortelã, ou laranjas e manjericão, ou feito um cordial de avenca e pimenta preta?

Folhas de figueira e de louro, pêssego e hissopo, nata talhada e alfazema, damasco e cardamomo – estes foram alguns dos gelados que fizemos nesse dia. Eram majestosos, fascinantes, até extraordinários – e contudo, os ingredientes eram tão simples como um jardim inglês de Verão.

Não podia pedir a Hannah que não os provasse, claro; precisava da sua experiência e do seu palato. E quando ela, por sua vez, quis pedir a opinião de uma terceira pessoa, alguém que não soubesse o que esperar, virou-se com naturalidade para Elias e deu-lhe uma colherada, e ele disse-nos o que achava.

– É maravilhoso! – exclamou de um gelado directamente inspirado em Culpeper, feito com pepinos e aipo.

– É mesmo, não é? – respondeu a mãe. E os dois dançaram uma pequena dança pela copa.

– Pensava que seria contra estas coisas – disse eu, surpreendido.

– Porquê? Não nos opomos ao prazer, apenas ao privilégio.

– No entanto, estes gelados são apenas para o rei – recordei-lhe. – Para o rei e para alguns dos seus preferidos.

– Sim – disse ela, um pouco desanimada. – Claro.

– Talvez não fosse tão contra ele se o conhecesse. É um homem encantador.

– Talvez – disse ela, em tom inexpressivo, e não dançou mais.

Mais para o fim desse mês, enquanto o rei comia um gelado de uvas-espins e erva-cidreira, disse-me com ar pensativo:

– O senhor é um homem que percebe de gelo, Demirco.

– De facto, senhor.

– O plano de Luís é esperar pelo Inverno. Afinal de contas, se conseguimos atravessar o Tamisa com carruagens, porque não conseguiria ele empurrar os seus canhões pelas terras drenadas e geladas?

Hesitei e ele disse:

– Acha que não resultará?

– A questão é a quantidade de sal – expliquei. – Tal como o Tamisa não congela por baixo da Grande Ponte, deixar entrar a água do mar faria com que esses terrenos descongelassem imediatamente. Tudo depende de até que ponto os Holandeses estão dispostos a ir para resistir à invasão.

– Guilherme de Orange declarou que todos os Holandeses preferiam morrer afogados do que verem o seu país católico.

– Nesse caso, eu certamente que não confiaria apenas no gelo para vencer esta guerra.

Algumas semanas depois, Arlington e Buckingham foram en­viados à Holanda para tentar chegar a um acordo de paz independente. Os Franceses, furiosos, acusaram os Ingleses de traição. Por fim, não se conseguiu alcançar a paz e voltámos para a guerra, com a complicação acrescida de, agora, os próprios aliados de Carlos também não confiarem nele.

– Acha que alguma vez voltaremos para França? – perguntei um dia a Louise, quando lhe levei um gelo de junquilhos e limões.

– Não sei – disse ela em tom fatigado. – Seja como for, para mim agora é diferente. Quem casaria comigo e aceitaria um bastardo real? Uma coisa é fechar os olhos a um passado escandaloso, outra bem diferente é ter esse passado a crescer em nossa casa.

– Talvez possa casar com alguém de nascimento inferior – disse-lhe –, que a ame e ame também o seu filho. Talvez possam ser felizes juntos, sem títulos nem riqueza.

Ela olhou para mim e sorriu.

– Conhece algum homem assim?

– Ouvi rumores de que existem alguns.

– É demasiado leal, Carlo – disse ela, gentilmente. – Não fiz nada para merecer essa adoração.

– Pelo contrário. Não a adoro, nem por sombras. Acho-a prática de modo exasperante; de cabeça dura, altiva, orgulhosa…

– Obrigada. Não estava a pedir um catálogo dos meus defeitos.

Encolhi os ombros.

– É melhor admirar alguém cujos defeitos conhecemos, do que um estranho.

– E o rei?

– O que tem?

– O facto de eu ser amante dele. Isso não muda os seus sentimentos?

– Porque havia de mudar? – Ocupei-me com os copos. – Sei que não o faz por amor.

Ela ficou um momento em silêncio.

– Costumava pensar que o amor era apenas uma fantasia. Mas agora percebo que é uma força quase tão forte como um exército.

– Carlos ama-a.

Ela abanou a cabeça.

– Gosta de mim e deseja-me e gosta de me ver feliz. Ama-me da mesma maneira que ama Windsor ou ténis… sou necessária para o seu bem-estar e para a sua noção do que é ser rei. E também sou útil, no sentido em que lhe dou bons conselhos. Ama a Nell Gwynne muito mais do que a mim.

– A Nell!

– Com certeza. Pelo menos, ela é a única mulher da qual ele nunca poderia desistir, apesar de saber que Luís, ou qualquer outro rei, ficaria chocado com a ideia de manter uma prostituta vulgar como amante. Portanto sim, penso que ele a ama.

– Enquanto ela, presumivelmente, pretende apenas o dinheiro dele.

– Oh, não… isso é compreendê-la mal. Pode ser uma actriz e uma meretriz, mas gosta verdadeiramente da ligação entre ambos.

– E a Louise – disse –, que não é actriz nem meretriz…

– Tenho de representar um papel e deitar-me com um homem que não amo. Sim, essa ironia também me ocorreu.

– Consegue vencê-la?

– Talvez. Mas há muito mais a fazer. Temos de encontrar uma forma de o manter nesta guerra. É preciso impedir o parlamento de o forçar a pedir pela paz. O Jaime tem de casar antes que mude de ideias. Mais dinheiro. Mais batalhas.

Voltei para o Red Lion, nesse dia, um pouco melancólico. Hannah estava na copa, a fazer a massa para as suas tartes.

– Para onde está a olhar? – perguntou.

– Para nada.

Ela mediu um frasco de farinha, partiu dois ovos lá para dentro e começou a mexer. Passado algum tempo, virou-se para mim.

– Não consigo trabalhar se continuar aí parado a olhar fixamente para mim.

– Não estou a olhar fixamente – expliquei. – Pelo menos, não para si. A Hannah está simplesmente na direcção geral do meu olhar, mais nada.

Ela suspirou e voltou-se novamente para a massa.

– Mas, já que pergunta – acrescentei –, podíamos ir ao meu quarto, mais tarde.

A voz dela, quando respondeu, era inexpressiva.

– Esteve na corte hoje, presumo?

– Sim.

– Com madame Carwell?

– O que é que isso tem a ver com o assunto?

– Apenas que reparei que é sempre depois de estar com ela que me convida a ir ao seu quarto.

Encolhi os ombros mas, uma vez que ela não estava a olhar para mim, não viu.

– Convido-a para o meu quarto porque o acordo nos convém a ambos. Pode vir ou não, como preferir. É consigo.

Pareceu-me que ela estava a debater consigo própria se devia ou não dizer uma coisa.

– Diga-me – disse, por fim. – Quando chegou aqui, como soube o que eu era? Que eu iria consigo por dinheiro?

– Um conhecido disse-me como eram as criadas das estalagens inglesas. E depois encontrei-a com aquele homem. Ele sabia o que você era.

– Sim – admitiu ela. – Chamou-me puta. Mas isso foi uma maneira de dizer. Referia-se ao facto de eu ser uma dissidente da igreja.

– Ameaçou-a com a prisão.

– Ele era um espião. Estava a tentar coagir-me para o espiar a si.

– A mim?! – exclamei, estupefacto.

– Queria que eu descobrisse como é que faz os seus gelados. Mas eu já lhe tinha dado a minha palavra de que não contaria a ninguém, por isso não contei.

– Mas… – Eu estava perplexo. – Quando lhe disse para vir ao meu quarto, daquela primeira, vez, a Hannah veio. Aceitou o meu dinheiro.

– Sim.

– Então o Cassell tinha razão. É mesmo aquilo que ele disse que seria.

Ela olhou para a massa.

– Talvez. Mas decidi que no futuro, signor, ficaria agradecida se pedisse antes à Mary ou à Rose.

– Porquê?

Ela não disse nada durante muito tempo, enquanto trabalhava o monte de massa com os dedos. Por fim, respondeu:

– Não seria justo para o Elias, se ele descobrisse o que fazemos.

– Oh, compreendo.

– Ele admira-o muito. Podia… entender mal a nossa associação. Podia ver nela mais do que realmente é.

– Bom, nesse caso pode estar descansada, não lhe voltarei a pedir.

– Obrigada.

– Pedirei à Mary. Ou à Rose, conforme.

– Exactamente. – Pegou no rolo da massa e bateu com ele no monte de massa, com tanta força que levantou uma nuvem de farinha.

Загрузка...