CARLO

Um simples creme de limão é o mais nobre dos gelos, e pode ser facilmente confeccionado quando os outros não são certos.

O Livro dos Gelos


Era esta, então, a terra para a qual fora exilado: um banco baixo de lama cinzenta que, gradualmente, se dividiu e transformou nos dois lados de um estuário. Nos lodaçais prateados, salpicados pelas marcas deixadas pelas patas das gaivotas, erguiam-se no horizonte algumas quintas degradadas. À excepção de uns porcos escanzelados, pareciam abandonadas. As pessoas deviam estar debaixo de tecto, protegidas da chuva gélida: eu teria feito o mesmo, mas o barco tinha sido usado recentemente para transportar estrume e o meu palato acostumado à corte ainda era demasiado refinado para suportar o fedor do porão. Além disso, estava fascinado por este país – fascinado e também aterrado: pela sua pobreza pesada, a sua monotonia, a forma como se erguia relutantemente da água cinzenta, aos poucos, tão diferente das escarpas deslumbrantes e dos portos acolhedores de Itália ou França.

Por fim, o estuário estreitou e tornou-se a foz de um rio, onde havia algum tipo de construções, docas. Protegi os olhos com a mão. Os edifícios eram do mesmo castanho baço que a lama, os telhados cobertos por uma espécie qualquer de palha escura. Vim para um país sem cores, pensei, e não foi apenas o frio que me fez estremecer.

Recordei a ocasião em que recebera as minhas ordens; do grande Lionne, pessoalmente, no seu grande gabinete no Louvre.

– Estamos presentemente envolvidos numa operação diplomática de grande delicadeza, que pode afectar todo o rumo da nossa campanha militar. Fico satisfeito por poder dizer-lhe que, apesar da sua vergonha recente, se encontra na feliz posição de poder ser útil a Sua Majestade Cristã nesta questão…

Não me estava a ser dada uma escolha, isso era claro. Sob a superfície, havia sempre a ameaça implícita. A morte de Madame continuava a ser um mistério, apesar de todos os esforços dos médicos, e ainda corriam pela corte rumores de veneno ou incompetência médica.

– Consta que o monarca inglês, o rei Carlos, está prostrado com a dor. Quando recebeu a notícia da morte da irmã fechou-se nos seus aposentos. Durante três dias ninguém teve permissão para entrar, nem mesmo os médicos.

Lionne fez uma pausa.

– O nosso rei, claro, também está a sofrer. Mas de forma apropriada. Luís nunca se deixaria ficar tão descontrolado.

Eu acenara em sinal de assentimento, sem perceber o rumo da conversa. Se pelo menos tivesse prestado mais atenção quando os que me rodeavam discutiam os aspectos mais delicados destas questões políticas…

Lionne contornou a secretária e começou a andar de um lado para o outro, entre a janela e o centro da sala.

– No caso do rei inglês, parece que o sofrimento afectou o seu juízo. Este príncipe, que até aqui era afável e gostava de França, meteu de alguma forma na cabeça que a sua adorada irmã foi assassinada pelo marido e que nós lhe estamos a esconder a verdade. Despediu o alfaiate, escorraçou a amante e mergulhou toda a corte num luto profundo. Em vez de festas e cortejos, dedica-se agora unicamente ao governo e aos interesses do seu país. Em vez de permitir que os seus generais se preparem para as glórias da guerra, disparata e fala de economia. Caminha longas distâncias pelos campos, sozinho, e mete conversa com os seus súbditos, que lhe dizem francamente que não estão contentes com as suas políticas até à data: em vez de os repreender pela sua presunção, mostra sinais de concordância.

Lionne encolheu os ombros de forma eloquente perante a loucura dos reis estrangeiros.

– Assim o alegre monarca se tornou soberano das tristezas. E é França, de todos os países, que mais sofre com isso.

Voltou para trás da sua secretária e olhou para mim por cima das mãos unidas.

– Portanto, Sua Majestade Cristã decidiu oferecer um presente ao seu primo inglês. Algo que restaure o espírito real, como prova da estima que dedica à continuação da aliança entre ambos.

Ah, sim, a aliança. Se Luís queria persuadir Carlos de que o tratado tinha de sobreviver à morte de Madame, este presente teria de ser realmente algo muito especial.

– Sua Majestade Cristã decidiu oferecer ao rei Carlos… um gelo. – Um sorriso frio tocou os olhos de Lionne. – É aí que entra a sua pessoa, claro.

Com alguma hesitação, disse:

– Naturalmente que seria uma honra para mim auxiliar Sua Majestade neste projecto. Mas os segredos da minha profissão estão rigidamente protegidos. Se permitisse que fossem fornecidos a um cozinheiro inglês, os outros confeiteiros não me acusariam de traição?

– Parece que já o podem fazer. Pelo que sei, há um mestre confeiteiro em Florença que acredita ter sido traído por um rapaz seu criado. – Lionne pegou num documento que tinha em cima da mesa e lançou-me um olhar interrogativo. Não respondi, mas o meu coração afundou-se. Sabia que, de alguma forma, Audiger tivera mão nisto.

– Seja como for, não estamos a sugerir que ceda os seus conhecimentos. Longe disso. É precisamente o facto de estes métodos permanecerem secretos que torna o presente de Sua Majestade tão generoso.

O ministro fitou-me com olhar altivo.

– Para oferecer o gelo ao rei Carlos, temos de lhe oferecer o fazedor de gelos. Compreende?

Olhei para ele. Mesmo nos meus momentos de maior desespero, nunca imaginara nada como isto.

– Estão a mandar-me embora? Vou ser banido?

– Emprestado, digamos assim. Sua Majestade Cristã encontra-se na afortunada posição de ter dois exímios confeiteiros. É mui­to razoável que ofereça um deles ao seu aliado do outro lado do Canal.

– Mas… quanto tempo terei de estar ausente?

Lionne encolheu os ombros.

– A sua tarefa é deixar o rei de Inglaterra novamente alegre. Quando estiver alegre, será de novo amigo de França.

Porque precisará do vosso ouro para pagar os seus prazeres, pensei, recordando o que Olympe dissera.

– Declarará guerra aos Holandeses e nós avançaremos. A guerra propriamente dita será vencida rapidamente e então poderá regressar a Versalhes.

Não respondi. Até eu via que havia poucas probabilidades de que fosse tudo tão simples como isso. Mesmo que fosse, quando eu voltasse Audiger estaria bem estabelecido em Paris como presidente da Corporação de Confeiteiros.

Lionne acrescentou, em tom casual:

– E, de tempos a tempos, pode haver outros deveres… Mensagens da rapariga bretã, que você nos transmitirá. Deveres de observação dela, ou do rei, ou de outros membros da corte inglesa que lhe indicaremos.

– A rapariga bretã?

– Não o mencionei ainda? Foi sugerido ao rei Carlos que talvez aliviasse a sua dor se empregasse, como gesto de caridade, uma das damas de companhia da irmã para servir a sua rainha. Essa honra coube à rapariga bretã, de Keroualle. Sim? O que é? – O olhar arguto do ministro estava a perscrutar-me o rosto.

Suspirei.

– Nada.

Satisfeito, ele prosseguiu:

– Deve ser bastante fácil. Mover-se-á entre eles, escondido em plena vista, fornecedor de prazeres e guloseimas. O que poderia ser mais natural?

O pequeno barco estava agora a subir o rio, navegando na última vaga da maré. O convés, apesar da chuva constante, estava agora bastante apinhado. Tinham embarcado mais passageiros em Gravesend, e até aqueles que vinham de França tinham subido do porão, ansiosos por um vislumbre de marcos familiares, tagarelando excitadamente naquela linguagem gutural que me fazia sempre lembrar cães a uivar.

Louise não estava a bordo. Tínhamos viajado juntos até Dieppe numa carruagem emprestada e num silêncio tenso. A dada altura, perguntei-lhe o que se passava, e ela virou para mim o rosto molhado das lágrimas com expressão incrédula.

– A minha senhora morreu, estou a ser enviada para o país mais bárbaro e herege da Europa, tudo aquilo para que trabalhei ao longo dos últimos dois anos está preso por um fio e pergunta-me o que se passa?

Depois disso calei-me e mantive o silêncio e, quando chegámos a Dieppe, afastei-me para ir comprar as provisões de que necessitava. Fora uma sorte encontrar este navio: a maioria dos capitães com quem falei limitaram-se a cuspir laconicamente assim que ouviam falar em Inglaterra.

Agora, enquanto o convés se enchia de pessoas, dei por mim de pé ao lado de um homem que dizia ser mercador de lãs mas que tinha a postura de um soldado, com a mão pousada na anca, onde devia habitualmente ter a espada. No entanto, era bastante simpático e decidira mostrar-me as vistas à medida que passávamos.

– A Ilha dos Cães. – Apontou para mais uma extensão de pântano. – E, ali, o palácio de Greenwich. – Distingui uma série de edifícios arruinados entre as árvores. – Não parece grande coisa agora – admitiu ele. – Tal como todos os palácios reais, sofreu muito durante a… quero dizer, nos últimos tempos.

– Durante a república, é o que quer dizer?

O homem olhou para mim de lado.

– Sim.

– E o que é aquilo? – perguntei, apontando para uns postes altos e brancos, como mastros de navios, enfeitados com fitas coloridas.

– São mastros de Maio, reintroduzidos por ordem do rei, para que as pessoas comuns possam juntar-se às festividades.

– Não vejo ninguém a festejar.

Ele encolheu os ombros.

– Alguns dos seus súbditos ainda não se reconciliaram com o regresso do rei do exílio. Acabarão por cair em si.

Surgiu então à nossa vista, do lado direito, um edifício que calculei que seria a Torre de Londres, um castelo baixo e branco rodeado por fortificações e apinhado de soldados armados. Mas a minha atenção foi atraída pelo que se encontrava para além do edifício: um vasto prado de destruição, com mais de um quilómetro e meio de comprimento e oitocentos metros de largura, coberto de escombros e cinzas e ervas daninhas. Estavam a ser construídos edifícios novos, mas estes erguiam-se lado a lado com os esqueletos enegrecidos dos anteriores, destruídos pelo fogo. O meu companheiro olhou com curiosidade e fez alguns comentários sobre pequenas alterações aqui e ali, mas nada mais além disso. Não era, evidentemente, novidade nenhuma para ele.

Lembrei-me das palavras de outro dos que me tinham transmitido instruções, um espião menor a quem Lionne me passara depois de estar despachado comigo. Claro que foram castigados pelas suas heresias: castigados por Deus, com guerra civil, peste e fogo. Talvez já tenham aprendido a sua lição. O homem agitara a mão com indiferença. Oh, vai achá-los bastante trabalhadores… acreditam em trabalho duro, estes protestantes, quase religiosamente, poder-se-ia mesmo dizer, embora ainda esteja para se ver que glória pode alguma vez advir, para Deus ou seja para quem for, da reconstrução daquela poça de lama infestada de peste…

Infestada de peste. Eu não tinha medo do fogo, mas a famosa pestilência de Londres era outra coisa. Benzi-me automaticamente e depois desejei não o ter feito. O meu companheiro olhou para o meu peito, seguindo o meu gesto, e, embora não tenha dito nada, ficou subitamente pensativo. Oh, enfim: dificilmente poderia ser segredo que um italiano, vindo de França, seria católico. Ou talvez o homem tivesse reparado na falta do meu dedo. No entanto, pareceu-me que daí para a frente me observou com mais desconfiança.

A Grande Ponte estava agora à nossa frente. Feita de pedra e coberta de construções, era maior do que qualquer ponte em Paris ou Florença. O rio, limitado de ambos os lados por rodas de moinho gigantescas, jorrava pelo arco central como por um cano gigante e, embora alguns botes vindos de montante navegassem descontraidamente os rápidos, acompanhados pelos gritos dos seus passageiros, era obviamente impossível o nosso barco avançar mais.

Enquanto a tripulação o prendia a um pontão próximo, o meu companheiro deu-me uma cotovelada e apontou para cima.

– Está a ver aquilo?

Numa das extremidades da ponte, uma casa de necessidades projectava-se sobre a água. Semicerrando os olhos para ver através da chuva, vi uma fila de meia dúzia de assentos de retrete de madeira nos quais se encontravam, como ovos num suporte, um par de nádegas masculinas e dois pares de nádegas femininas. Mas não era a essa exibição indecente que o homem se referia. Por cima de um dos arcos havia uma fila de espigões de ferro, encimados com o que pareciam ser couves podres. Apenas algumas madeixas de cabelo e um leve brilho de dentes brancos numa delas mostravam que não eram, decididamente, couves.

– Papistas – disse o homem em tom contundente.

Bom, talvez fosse verdade, embora me tivessem dito em Paris que uma das cabeças em exibição era a do próprio Cromwell, o Grande Usurpador, decepada pós-morte do corpo desenterrado. Os outros, pensei, não deviam ter tido tanta sorte. Talvez em consequência dos recentes problemas, a pena para traição ou heresia aqui em Inglaterra era muito pior do que a mera execução. Conseguia imaginar demasiado bem – não a dor, pois essa seria literalmente inimaginável, mas o horror: ver as nossas próprias entranhas serem-nos arrancadas da barriga como sedas da bolsa de um saltimbanco, depois casualmente queimadas perante os nossos olhos, com a chuva a crepitar e a fumegar ao cair sobre elas, a nossa última refeição a derramar-se e a ser novamente cozinhada enquanto os intestinos se rompiam sobre a braseira. E isso antes de começarem a serrar-nos aos pedaços…

Desta vez consegui conter-me para não me benzer, embora a minha mão direita tenha estremecido involuntariamente. O meu companheiro reparou e riu-se. No entanto, percebi que não era um riso maldoso: depois de me ter causado este desconforto, estava a rir para mostrar que fora uma brincadeira. Eu tinha sido avisado do estranho sentido de humor dos Ingleses.

– Para onde vai, amigo? – perguntou o homem, dando-me uma palmada no ombro enquanto subíamos a estreita prancha de desembarque.

– Ficarei alojado em Vauxhall e tenho de me apresentar na corte.

– Na corte, hã? – disse ele, claramente impressionado. – Já tinha pensado se seria isso. Temos cá alguns como você. – Acenou. – Nes­se caso, podemos partilhar o transporte. Eu também vou para Vauxhall.

– Obrigado – respondi, educadamente. – Mas tenho de esperar pela minha bagagem. – Estávamos agora em terra seca e eu sentia as pernas um bocadinho bambas depois da travessia. Não que fosse muito seca, esta terra: o barro peganhento, da cor dos dejectos, misturava-se com a chuva para criar uma porcaria gordurenta debaixo dos nossos pés.

– Não faz mal. Eu espero consigo. A chuva é capaz de abrandar.

Só uns bons vinte minutos depois trouxeram as minhas arcas do porão. Quando a última foi colocada no cais, o homem tocou-me no braço.

– Tem de os fazer pagar por isso. Estes imbecis ensoparam a sua bagagem.

– Não tem importância – respondi, rapidamente.

– Não tem importância? Olhe para isto! – Era verdade: a água escorria de um dos cantos da arca. – Devia verificar o conteúdo – insistiu o homem. Chamou um carregador. – Tu aí! Abre esta arca.

– A sério, não há problema. Além disso, está fechada à chave.

– Porquê? O que é que tem lá dentro, que tem de estar fechado à chave mas não se estraga com a água? – inquiriu. A sua franqueza era enervante, quase ofensiva. No entanto, como eu estava a aprender rapidamente, essa era outra das características deste povo.

Hesitei.

– Contém os meus instrumentos de trabalho. Mas são quase todos feitos de estanho, portanto um pouco de água não é motivo de preocupação. – Paguei um dinheiro aos marinheiros para levarem as arcas até à estrada. – Agora tenho de encontrar uma carroça.

Mais uma vez, vi o homem – o soldado, como estava agora quase certo de que era – olhar para mim com curiosidade. Talvez estivesse a perguntar a si próprio como é que um estrangeiro sabia que uma carroça seria mais rápida do que um barco. Contudo, as minhas ordens eram para estar o mínimo de tempo possível na ponte.

Carregámos as arcas numa carroça e partimos. Onde o incêndio não chegara, as ruas eram estreitas, quase demasiado estreitas para a carroça passar entre os edifícios. Cada andar era maior do que o inferior, e o pouco espaço que existia ao nível do solo já desaparecera no terceiro ou quarto piso, quase transformando as ruas em túneis. Agora, dei graças pela chuva; pelo menos matinha os dejectos, tanto dos cavalos como humanos, a correrem pela sarjeta no meio de cada rua – isto, claro, onde ela não se encontrava bloqueada. Tirei um lenço da manga, salpiquei-o com umas gotas de água de rosas e levei-o ao nariz. Vi o meu companheiro sorrir, mas ele não disse nada.

Enquanto avançávamos lentamente pelas ruas, passámos por vários grupos de homens vestidos com roupas escuras que, quando se cumprimentavam, pegavam na mão uns dos outros e a seguravam entre as suas. Era como se estivessem a trocar um sinal secreto, no entanto estava a ser feito abertamente, em público.

– Chama-se apertar a mão – disse o meu companheiro, quando me viu virar a cabeça para olhar. – É o costume entre os dissidentes mais convictos, quando se encontram. Recusam-se a curvar-se perante qualquer homem, uma vez que dizem que todos fomos criados iguais.

– Em França, isso seria considerado conversa sediciosa.

– Aqui é diferente. A república veio abalar tudo. As coisas voltarão ao que eram, mas vai demorar algum tempo. – De súbito, o homem parecia divertido. – Houve um dissidente que se recusou a tirar o chapéu perante o rei. Sabe o que aconteceu? – Abanei a ca­beça e ele continuou: – Sua Majestade tirou o seu próprio chapéu.

– Porquê?

– Como ele disse ao dissidente, o costume ditava que um dos dois estivesse de cabeça nua, portanto assim o costume estava cumprido. O bom do velho Rowley…

– Rowley?

– Oh, é o nome do garanhão do rei, mas também o que as pessoas chamam ao próprio rei.

– Porquê?

– É um nome afectuoso. Uma alcunha. – Riu-se. – Suponho que é por ele ser parecido com o cavalo, percebe, pelo menos em certos aspectos.

Eu estava perplexo. Então, homens que tinham morrido na sua cama eram desenterrados e decapitados, mas comentários grosseiros e traiçoeiros sobre o rei eram fonte de diversão. E o próprio rei, ao que parecia, era obrigado a ignorar uma impertinência que, em França ou Itália, enviaria um homem para o cadafalso.

Um país bárbaro e atrasado, concluíra o espião de Lionne com um encolher de ombros. Literalmente: nem sequer conseguem reger-se pelo mesmo calendário do resto da Cristandade. E apesar de no seu calendário, como virá a descobrir, estarem apenas dez dias atrasados em relação a nós, em todos os outros aspectos parecer-lhe-á antes décadas.

Finalmente, livrei-me do meu companheiro na estalagem onde estava instalado. Os olhos do inglês seguiram a última arca en­quanto era levada para dentro, ainda a pingar, mas não disse nada excepto um «Adeus» breve antes de acenar com a cabeça e seguir o seu caminho. Eu vinha a compor mentalmente um discurso de agradecimento pela sua ajuda, elaborado mas pouco sincero, como a cortesia exigia; mais uma vez, fiquei sem perceber se esta brusquidão era um insulto ou simplesmente outro costume estranho.

No entanto, os meus aposentos eram adequados, as paredes cobertas com painéis de madeira que não pareciam esconder quaisquer orifícios de espionagem. Tranquilizado, virei a minha atenção para os baús. Aquele que vinha a pingar estava frio ao toque – mau sinal. Tirei as mantas da cama e enrolei-o o melhor que pude. Não me atrevi a abri-lo – o quarto estava quente e só ia piorar o problema. Virei-me para o outro baú, abri-o e recuei um passo, consternado.

Quando o selara, continha cristais amarelados. Agora vi apenas um monte de pó coagulado. Toquei-lhe com o dedo. Húmido. O outro baú, o que estava a pingar, devia ter ficado por cima deste no porão do barco. Não fazia ideia se o salitre podia ser seco e os cristais extraídos novamente: desconfiava que não.

Bom, não devia ser um problema irresolúvel. Presumivelmente, em Londres, tal como em Paris e Florença, devia haver homens dos despejos que recolhiam o conteúdo dos bacios das pessoas todas as manhãs para extrair o precioso salitre. Vira um boticário um pouco mais abaixo, na rua da estalagem: lá deviam saber onde é que eu podia adquirir mais. Lavei-me com água quente trazida pelo criado, desci e disse ao estalajadeiro que ia sair.

Enquanto caminhava na direcção da loja, um grupo de homens ainda jovens chamou-me a atenção. Caminhavam altivamente pela rua lado a lado, uma formação que, a juntar ao facto de cambalearem de um lado para o outro, significava que ocupavam a maioria do espaço disponível. Em contraste com os outros que vira nas ruas, estes homens estavam vestidos de uma forma que teria parecido ostentosa até em França, com calções folgados, ornamentados com metros de renda e descaídos nas ancas, abafos no cinto da espada, camisas de linho que ondulavam por baixo de gibões elegantes, mais linho a espreitar das braguilhas abertas e coletes pespontados a fio de ouro e prata. Estavam obviamente embriagados: um deles pôs o braço sobre os ombros do outro, mas a acção desequilibrou-os a ambos e fê-los cambalear de encontro a uma parede.

Ao mesmo tempo, apareceu atrás deles uma cadeirinha, transportada pela lama por dois criados, evidentemente de uma pessoa de posição elevada. Quem quer que fosse, estava com pressa, e a cadeira rapidamente ultrapassou o grupo de jovens janotas, os criados passando simplesmente entre eles sem olhar para a esquerda ou para a direita. Depois um dos jovens soltou um rugido – parecia «Hipopótamo!» – e os companheiros responderam com gritos. Como um só, correram sobre a cadeirinha e viraram-na, fazendo a pessoa dentro dela cair desamparada na lama. Era, como eu calculara, um cavalheiro de meia-idade, bastante gordo, e o seu grito de ultraje enquanto rebolava sobre a lama e imundície teria, estou certo disso, sido consideravelmente mais alto se a queda não o tivesse deixado sem fôlego; por seu lado, os jovens estavam a rir tanto que quase não se tinham de pé.

– Imbecis – balbuciou o homem, ainda deitado de costas; instantaneamente, um dos jovens desembainhou a espada e aproximou-se dele com ar ameaçador.

– Sim? – provocou. – É insolência aquilo que oiço?

Fiquei surpreendido com isto, tanto porque tinham sido obviamente os jovens quem agira mal, como por não fazerem qualquer esforço para se dirigirem ao homem mais velho que, como já disse, era uma pessoa de ar respeitável, com a delicadeza devida a alguém da sua posição. E fiquei ainda mais surpreendido pela reacção do homem mais velho. Apanhou a cabeleira da lama e disse em tom humilde:

– As minhas desculpas, Vossa Graça. Falei no calor do momento.

O libertino que desembainhara a espada deu vários golpes no ar, como se estivesse desapontado por o outro homem não lhe dar motivos para discutir mais. Depois virou-se, embainhou a espada e cambaleou atrás dos seus amigos.

Que país curioso, pensei, enquanto via o homem subir novamente para a cadeirinha sob o olhar impassível dos criados. Era como se ninguém soubesse qual era a sua posição – ou talvez, no rescaldo de uma guerra civil, o soubessem demasiado bem. Como forasteiro, era evidente que teria de ter muito cuidado.

Entrei na loja e fechei a porta atrás de mim.

– Sim? Posso ajudar? – disse o boticário, erguendo os olhos da balança onde estava a pesar um pedaço de âmbar cinzento.

– Queria comprar salitre. Mais ou menos um quilo.

O homem pestanejou.

– Não é coisa que tenhamos em tanta quantidade. Posso perguntar no arsenal em Woolwich, se quiser. Mas será caro.

– Compreendo. Mas tenho mesmo de o adquirir. Estarei instalado no Red Lion, pode mandar recado para lá. – Dirigi-me de novo à porta. Os jovens pareciam ter desaparecido, por isso saí. No outro extremo da rua havia um mercado. Não tinha mais nada para fazer, e pensei que podia ir ver que frutas estavam na época aqui, se é que havia alguma.

Só regressei à estalagem mais de uma hora depois. O mercado, na verdade, fora uma agradável surpresa. Apesar do adiantado do mês, havia uma abundância de pequenos damascos doces, amêndoas e pistácios da Turquia, bem como umas avelãs grandes e gordas que eu nunca vira antes. Havia também uma boa variedade de queijos, e tantas especiarias e ervas que nem eu as reconheci a todas. Os Ingleses, ao que parecia, compensavam em perícia comercial aquilo que lhes faltava em recursos naturais.

Pareceu-me haver um número surpreendente de pessoas na estalagem quando entrei, com um cesto de ameixas debaixo do braço. Algumas estavam a olhar para mim daquela forma directa dos Ingleses, mas havia também algo mais, uma certa dissimulação nos seus olhos. Sentindo-me um pouco desconfortável, dirigi-me às escadas.

– É ele!

De súbito, um grupo de homens desceu as escadas ao meu encontro, de armas na mão. Quando dei por mim, tinha pontas de espada e canos de mosquete quase encostados à cara. Surpreendido, deixei cair as ameixas e quase caí para trás; nesse momento apercebi-me de que havia mais homens armados por baixo de mim e só com grande esforço consegui evitar cair sobre as suas lâminas. Por trás deles, vi o rosto ansioso do boticário.

– Salitre – estava ele a gritar para quem vinha ver o que se passava. – O suficiente para fazer explodir uma casa, queria ele. E é um estrangeiro. Vestido como o Guido Fawkes.

– Fizeste muito bem, Isaiah Wentworth – disse outro homem. – De certeza que puseste fim a uma maquinação papista.

– Ele tem baús no quarto – acrescentou o estalajadeiro. – Baús com armas. Ouvi-as chocalhar quando os levámos para cima.

Eu estava tão estupefacto que nem sabia o que havia de responder, e o medo fez-me esquecer o meu inglês.

– Não são armas – disse, erguendo as mãos para mostrar que estava desarmado. – Não é maquinação.

O homem que dera os parabéns ao boticário avançou.

– Devíamos revistar-lhe o quarto.

Fui empurrado para cima e obrigado a abrir os baús. À medida que abria cada um deles, uma dúzia de cabeças inclinava-se para examinar o conteúdo. As minhas roupas de corte foram retiradas e espalhadas pelo chão – vi os meus belos lenços franceses desaparecerem no bolso de um dos homens quando ninguém estava a olhar. Ao verem os meus moldes, houve um momento de silêncio confuso até que alguém sugeriu que deviam servir para fazer explosivos.

– E aqui está outro – gritou uma voz, ao descobrir o último baú embrulhado nas cobertas da cama. – Escondido. Deve ser a pólvora do papista.

– Tem cuidado, Obadiah. Pode ser perigoso.

Quando o homem chamado Obadiah pousou as mãos na tampa, retirou-as bruscamente.

– Raios, está frio – exclamou.

– Frio?

– Como gelo.

Cuidadosamente, levantou a tampa. Alguns recuaram. Outros aproximaram-se para ver melhor.

Aninhados no baú, dentro de um robusto revestimento de madeira de cedro, estavam seis blocos prateados, cada um do tamanho de uma Bíblia. Num dos lados havia um compartimento cheio de limões de casca grossa; no outro, uma quantidade semelhante de groselhas negras, com a pele escura manchada por orvalho congelado. Um dos homens enfiou a mão no baú e depois tirou-a como se tivesse sido mordido.

– O que é? – perguntou o estalajadeiro, confuso.

– Tesouro? Feitiçaria?

Uma voz disse, da porta:

– Ambas as coisas, de certa forma. É gelo.

Todos se viraram, incluindo eu. À porta, perfeitamente calmo, estava o homem que eu conhecera no barco.

Ele entrou no quarto.

– Este homem não é nenhum Guido Fawkes. Não veio rebentar convosco; veio para fazer um pudim para o rei. Mais ainda, está aqui sob a autoridade pessoal de lorde Arlington. A menos que algum de vocês queira provocar o desagrado do meu mestre, sugiro que fechem esse baú antes que derreta. – Acenou na minha direcção. – Creio que ainda não fomos formalmente apresentados. Capitão Robert Cassell, senhor, muito prazer em conhecê-lo. Vou colocar um guarda à sua porta para que os seus bens não voltem a ser transtornados, e depois o meu mestre gostaria de lhe dar uma palavra.

Pouco depois, Cassell escoltou-me até um edifício de estrutura de madeira na orla da planície carbonizada pelo fogo. Era uma espécie de gabinete de expedição: homens entravam e saíam apressadamente, com cartas e sacos de documentos. Fomos conduzidos a uma pequena sala onde estava um homem vestido de preto, sentado atrás de uma secretária. Ao seu lado estava outro homem – um cortesão, a julgar pelo comprimento da sua cabeleira. Sobre a cana do nariz, de forma algo incongruente, tinha um penso de cabedal, como os que os soldados usam para cobrir feridas que demoram a sarar.

– Signor Demirco, bem-vindo. O meu nome é Sir Joseph Walsingham, e este é lorde Arlington – disse o homem de preto em tom cortês. A minha incompreensão devia ser óbvia, porque ele ergueu as sobrancelhas. – Vejo que os nossos nomes não lhe são familiares. É evidente que está ainda menos preparado do que imaginávamos. Se me permite, é um espião bastante patético.

– Não sou nenhum espião – disse eu, assustado.

– Claro que é, e ainda bem – disse ele com à-vontade. – Onde estaríamos nós, mestres de espiões, se não fossem os nossos espiões? Contudo, tenho de confessar… estou curioso em relação ao motivo pelo qual o Lionne o escolheu para esta tarefa em particular. Essas suas confecções em gelo devem de facto ser extraordinárias.

– Os meus serviços são apenas uma prova da grande estima…

– Sim, sim. Podemos esquecer tudo isso: tenho de estar em Whitehall dentro de quarenta minutos. – Fora Arlington que falara. A sua voz era aguda e aflautada e pronunciava cada palavra com uma clareza deliberada. – Compreenda uma coisa, Demirco: na questão da rapariga bretã, os nossos interesses e os interesses de França são coincidentes. Aqueles de nós que lutaram na última guerra civil não têm qualquer desejo de ver essa escuridão envolver-nos de novo.

– Não compreendo – disse. – O que é que uma dama de companhia e um confeiteiro têm a ver com guerras civis?

Os dois ingleses trocaram um olhar.

– A rapariga bretã não é nenhuma dama de companhia – disse Arlington abruptamente. – É, se Deus quiser, a próxima amante do rei e futura chanceler da sua alcova. É através dela que governaremos um monarca de vontade fraca e, através dele, uma nação ainda mais fraca.

A surpresa deve ter sido evidente no meu rosto porque vi que ambos me fitavam com curiosidade.

– Creio que estão enganados – ouvi-me dizer. – Eu conheço essa jovem. É famosa pela sua virtude. A família espera que ela faça um bom casamento, numa família nobre…

Arlington afastou os meus protestos com um gesto.

– Ela fará o seu dever. Todas o fazem, no fim. Muito bem, senhor: de que precisa para fazer uma sobremesa gelada?

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