CARLO

Encontre uma sala fresca e limpa, livre de sujidade e de todo o tipo de distracções.

O Livro dos Gelos


Por fim, Chiffinch arranjou-me um lugar na cozinha do palácio. Era muito parecida com aquilo que eu imaginava que o Inferno seria: uma sala enorme, cheia de fumo, onde quatro grandes fogos ardiam dia e noite e o fedor de carne queimada enchia o ar como um desagradável nevoeiro. Os cozinheiros trabalhavam em mesas compridas, como costureiras, abatendo os seus cutelos sobre grandes carcaças de vaca, ou cortando nacos de animais tão pequenos que, noutro lado qualquer, seriam postos de lado como não comestíveis. Pois os Ingleses, rapidamente me apercebi, eram obcecados com carne e não achavam nada estranho consumi-la quase diariamente. Contudo, esta sua carne de vaca, ou urso, ou porco, não era propriamente «cozinhada» no sentido que um francês ou italiano usaria a palavra; quer isto dizer que não era tornada mais saborosa pela perícia de um cozinheiro engenhoso, com a adição inteligente de molhos, temperos, ervas e por aí fora, mas simplesmente cravada num espeto e assada até ficar dura e desprovida de qualquer sabor. Vegetais e ervas eram, ao que parecia, quase desconhecidos, e embo­ra me dissessem que o rei, por vezes, comia fruta crua à francesa, os cozinheiros consideravam que isso era uma mania estrangeira e enviavam juntamente com a taça de fruta uma tábua com sobremesas inglesas «a sério», tais como tarte de maçã, pudim de sebo ou pão de ameixas. Os pratos nem sequer eram servidos separadamente: ia tudo para a sala de banquetes numa vaga caótica de serviço, cada cozinheiro transportando aquilo que fizera, sopas e assados e sobremesas, e era tudo empilhado para os convidados do rei se servirem. Chiffinch ficou bastante surpreendido quando lhe disse que, em França, os pratos eram servidos um de cada vez, como os actos de uma peça.

No entanto, o verdadeiro problema, para mim, era que não tinha sítio adequado para trabalhar. Mesmo que me afastasse para o canto mais distante possível da cozinha, seria impossível fazer um gelo que não derretesse com o calor ambiente assim que eu o tirasse da sabotiere. E, claro, havia a necessidade adicional de manter o meu processo secreto. Ao fim do primeiro dia já me tinha apercebido de que seria melhor arranjar local de trabalho noutro lado.

Pensei também em deixar os meus aposentos no Red Lion, onde a comida, em geral, era quase tão má como a que era servida ao rei. Contudo, havia uma excepção a esta regra: todos os dias serviam uma tarte diferente e estes pratos simples eram, para minha surpresa, quase comestíveis – quero com isto dizer que geralmente continham um vegetal ou dois e, às vezes, ervas como ligústica, manjerona ou salva. Numa ocasião, numa tarte de pedaços de peixe cozidos em leite, o meu palato saudoso distinguira até um murmúrio delicioso de estragão. Assim, decidi ficar, pelo menos por mais algum tempo, e perguntei ao estalajadeiro se poderia alugar-me uma cave ou câmara fria para o meu trabalho. Agora que sabia que eu tinha protectores tão poderosos, ele apressou-se a cumprir os meus desejos e foi buscar imediatamente a chave da cave.

Na verdade, a cave da estalagem revelou-se húmida, bafienta e desprovida de janelas, enquanto a cozinha era quase tão quente como a de Whitehall. Contudo, entre uma e outra, havia uma pequena copa situada numa curva das escadas, de tal forma que era quase subterrânea e, portanto, bastante fresca, mas com uma fila de pequenas janelas altas que deixavam entrar muita luz. Ao longo de uma parede havia um parapeito de pedra e, a um lado, uma mesa com tampo de mármore. Ao fundo, tinha um recanto sem janelas onde eu podia pôr uma pilha de gelo. Não vi sinais de humidade e toda a divisão estava imaculada.

– Era a leitaria, quando fazíamos o nosso próprio queijo – explicou o estalajadeiro, que se chamava Titus Clarke. – Agora é onde a Hannah trabalha.

A ocupante actual da divisão era, evidentemente, uma trabalhadora organizada: os instrumentos de cozinha, rolos da massa e por aí fora, estavam muito bem alinhados ao longo de uma parede e as tigelas empilhadas debaixo da mesa. Os tabuleiros de ovos estavam cobertos por uma rede mosquiteira e uma saca de farinha fora colocada dentro de um barril elevado para a proteger de eventual humidade ou ratos.

– Servirá muito bem – disse, olhando em volta. – Quanto quer pela renda?

O estalajadeiro pareceu um pouco ansioso.

– Para a partilharem? Há espaço suficiente para os dois…

Abanei a cabeça.

– Preciso de privacidade total.

– Bom, estou certo de que a Hannah compreenderá – disse ele, nervoso. – Afinal de contas, o rei tem de ter os seus gelos. Falarei com ela esta tarde.

Mandei levar os meus baús para baixo, desembalei as minhas coisas e comecei imediatamente a trabalhar num gelo de marmelos. Acabara de chegar à fase em que estava a deitar gelo esmagado para a sabotiere quando a cortina que servia de porta se abriu e uma mulher de aproximadamente trinta anos, com um avental, entrou. Ao seu lado tinha o rapaz que tratava do calçado, Elias.

– O que está a fazer? – perguntou ela.

Apressadamente, cobri a mistura com um pano.

– Não é da sua conta.

– Na verdade, é – retorquiu ela –, uma vez que o Titus me informou de que, seja lá o que for, significa que tenho de deixar a minha copa.

– Sou o confeiteiro de Sua Majestade – disse-lhe, um pouco surpreendido pelo tom de voz dela. – O trabalho que faço aqui é confidencial.

– E o trabalho que eu faço aqui não pode ser feito noutro lado. Fazer massa exige um ambiente frio, como com certeza sabe, e a cozinha principal é demasiado quente.

Atrás dela, o estalajadeiro encolheu-se para entrar, obviamente ansioso por evitar um confronto.

– Hannah, o cavalheiro alugou-me a divisão a mim e ponto final.

– Muito bem – disse ela, encolhendo os ombros. – Nesse caso, é também o ponto final nas minhas tartes. Elias, vai-me buscar um saco. – Começou a tirar os rolos da massa dos suportes. O estalajadeiro lançou-me um olhar apologético, como se quisesse dizer que lamentava a interrupção mas felizmente já estava tudo resolvido.

– Espere – disse eu à mulher. – É você que faz as tartes?

– Era eu – confirmou ela. – Mas já não sou, ao que parece.

Dei por mim num dilema. Pois a verdade era que, como já disse, as tartes do Lion eram uma das principais razões pelas quais decidira ficar aqui, e a perspectiva de me ver privado delas era decididamente desagradável.

– Por quanto tempo precisa do espaço? – perguntei.

– Uma ou duas horas por dia, bem cedo.

Tomei uma decisão. Com certeza que não haveria qualquer perigo em deixar uma criada usar o espaço de vez em quando.

– Muito bem. Pode continuar a fazer as suas tartes aqui.

Para minha surpresa, ela não me agradeceu, simplesmente cruzou os braços sobre o peito, como se estivesse à espera do «mas».

– É tudo – acrescentei.

– Não lhe vou pagar renda – disse ela. – O Titus já tem lucro mais do que suficiente com as tartes.

– Nesse caso pode pagar-me com algum trabalho, limpando os meus recipientes, esse tipo de coisas. E tu – chamei o rapaz –, gostarias de ser meu assistente? Preciso de alguém que rale os meus blocos de gelo todas as manhãs.

Ele arregalou os olhos.

– Posso usar um casaco bonito como o seu?

Ri-me.

– Não, pois não irás à corte. Mas pago-te um dinheiro por semana.

Ele assentiu.

– Está bem.

– Nesse caso, está decidido. Mas ambos têm de jurar solenemente que nunca revelarão nada do que virem aqui. O processo é secreto e tenciono mantê-lo assim. Titus, pode emprestar-me uma Bíblia?

Mais uma vez, fiquei surpreendido com as suas reacções a um pedido tão simples. Nenhum deles se mexeu e nos olhos da mulher havia – ou muito me enganava – uma expressão ardente de desafio.

– Para a jura – expliquei. – Têm de jurar sobre a Bíblia que não contarão a ninguém como eu faço os meus gelos.

O estalajadeiro estava a torcer as mãos.

– Se me permite explicar, senhor, a posição da Hannah sobre o assunto…

– Sou perfeitamente capaz de me explicar sozinha – interrompeu a mulher. – Nós não fazemos juras.

Olhei para ela, estupefacto.

– Não? Porquê?

– Primeiro, porque não usamos Deus como uma espécie de talismã supersticioso ou um papão para assustar pessoas crédulas. Segundo, porque uma jura implica lealdade a uma autoridade superior à nossa própria consciência.

– Mas, se não jurar, não posso contratá-la – ressalvei.

– Então não me contrate – respondeu ela, simplesmente. – La­mento muito, mas é assim. Posso dizer-lhe que não trairei a sua confiança; mas jurar, não juro.

– Compreendo. – Eu nunca me vira numa situação como esta. Mais uma vez me ocorreu que França e Itália, apesar de separadas pelos Alpes, tinham muito mais em comum do que qualquer uma dessas nações tinha com esta estranha ilha a apenas trinta quilómetros da costa de França.

Ela apontou para as paredes.

– Então? Quer que retire as minhas coisas ou não?

– Deixe-as estar, por enquanto. Terei de pensar nisto. Entretanto, pode fazer algum trabalho para mim e veremos como se sai.

– Vou ficar à experiência?

– Exactamente.

Ela encolheu os ombros.

– Muito bem. – Disse-o como se estivesse a concordar com determinadas condições, e não a aceitar ordens de um patrão. Perguntei-me se todos os criados domésticos em Inglaterra seriam tão desprovidos de deferência. Se assim fosse, era um espanto que se fizesse algum trabalho.

A pequena quantidade de gelo fresco que trouxera comigo de França rapidamente se esgotou. Mesmo que o rei não o tivesse sugerido, eu ver-me-ia obrigado a inspeccionar a sua casa de gelo.

O Parque de St. James era um espaço bastante agradável, embora, claro, não fosse nada em comparação com Marly ou Versalhes. A meio, alinhado com as janelas dos aposentos do rei, havia um lago comprido e estreito, apenas um pouco mais largo do que um canal. Os terrenos eram salpicados por árvores e vegetação rasteira, ao natural, e aqui e ali viam-se veados a pastar. No entanto, vi por todo o lado projectos abandonados ou por terminar. Um edifício ao estilo francês ainda não tinha telhado. Uma estrada, em direcção a oeste, começava grandiosamente entre dois postes de pedra, mas desaparecia ao fim de cem metros. E o muro que rodeava o parque só abrangia metade, pelo que qualquer pessoa que quisesse podia entrar sem impedimento.

A casa de gelo ficava no lado norte, perto de Picadilly Hall, numa ligeira inclinação, sob algumas árvores – a pior localização possível. Contudo, o caminho de tijolo sinuoso que levava à porta era bastante adequado e a porta de um tamanho sensato – pequena, baixa e virada para norte. No entanto, estava entreaberta.

Eu tomara a precaução de trazer comigo algumas velas finas, para me dar luz, mas não precisava de me ter incomodado: entrava alguma luz do dia por baixo do beiral do telhado e já havia uma vela acesa na parede. Contudo, apesar da luz, não olhei para baixo e, assim que dei um passo para o interior, vi-me mergulhado em água suja e gelada até ao tornozelo. Tirei o pé, com uma imprecação, e percebi que não estava só.

– Precisamos de palha, John – estava uma voz a dizer do outro lado do gelo. – Palha em fardos, para colocar à volta. Mas a palha apodrecerá com esta humidade, portanto primeiro temos de escoar o chão.

– Ainda há três semanas o escoámos – respondeu uma voz mais áspera. – E com certeza que a palha elevará ainda mais a temperatura.

Ouvi passos a chapinharem na água em direcção a mim. Ainda não conseguia ver ninguém, pois a pilha de gelo bloqueava-me a visão para o outro lado da divisão circular.

A primeira voz suspirou.

– A palha tem a propriedade de manter quente um sítio quente, sim. Mas também manterá frio um sítio frio.

– Então, na prática, mantém o calor do lado de fora, não o frio do lado de dentro? – perguntou uma voz de mulher.

– Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas sim… é basicamente isso, Elizabeth – respondeu o primeiro homem.

Ergui a voz e disse:

– A palha não vai resolver o vosso problema.

– Quem está aí? – perguntou o homem de voz mais áspera. Uma lanterna ergueu-se e iluminou três rostos. – O que faz aqui, senhor? Isto é propriedade do rei.

– E eu estou aqui por ordens dele. – Avancei. – Carlo Demirco, ao vosso serviço.

– O confeiteiro?

– Ele mesmo.

O grupo que se aproximou de mim era formado por três pessoas, envoltas em casacos grossos por causa do frio. O homem com a lanterna era, evidentemente, o que se chamava John. O outro, o que sugerira a palha, caminhava apoiado no braço de uma mulher e, na outra mão, tinha uma bengala. Foi este homem que se dirigiu a mim em tom ansioso.

– Diga-nos, Demirco. Porque não é a palha suficiente?

– Nem toda a palha do mundo pode compensar uma concepção deficiente.

– Atenção à língua – resmungou o homem mais rude. – Foi aqui o ilustre Robert Boyle que deu instruções aos arquitectos, segundo os desenhos que Sir John Evelyn trouxe de Itália.

Encolhi os ombros.

– A construção é bastante boa. A localização é que é fraca. E o escoadouro central está bloqueado ou não é adequado.

– Um escoadouro central! – exclamou Boyle. – Claro! Como é que escoam estes locais em Itália?

– Em Florença, colocam uma roda de carroça sobre um cano central, para deixar sair toda a água derretida. O gelo aguenta-se mais tempo se estiver seco.

– Sim? – perguntou Boyle, interessado. – Agora que penso nisso, é possível. A água é o elemento natural do gelo, portanto pode facilitar a transição dos corpúsculos de arrefecimento… Podíamos confirmá-lo com uma simples experiência. Venham.

Saiu apressadamente e dirigiu-se a um edifício imediatamente atrás da casa de gelo. Todos o seguimos, a mulher porque ainda estava a apoiar-lhe o braço, eu e John apenas porque – pareceu-me – Boyle tinha um ar de comando natural.

– Cuidado, tio – disse a mulher, ansiosamente. – Já esteve vinte minutos ali ao frio e o doutor Sydenham disse…

– Se um homem adoecesse por causa do frio – interrompeu Boyle em tom jovial –, há muito tempo que eu estaria morto. Aqui dentro, Demirco.

Abriu uma porta pesada e entrámos numa divisão iluminada e fria. Era, apercebi-me, uma espécie de oficina, com prateleiras cobertas de instrumentos químicos: alambiques, almofarizes, medidores e por aí fora.

– Que lugar é este? – perguntei, curioso.

Boyle estava já a pesar alguns blocos de gelo pequenos e a apontar os pesos num bloco de notas.

– O meu laboratório. O meu segundo laboratório, melhor dizendo. Aqui, com a permissão do rei, levo a cabo as minhas investigações sobre o frio. – Olhou para mim. – Talvez ache estranho, senhor, que um químico prefira trabalhar com gelo em vez de uma fornalha.

– De todo – respondi. – Passei a vida inteira a trabalhar com gelo e, apesar disso, estou convencido de que compreendo ainda muito mal as suas propriedades.

Ele acenou.

– Então vamos pegar num pequeno pedaço de gelo e colocá-lo em água, assim, e depois colocar outro igual assim, de forma a poder escoar. Qual derreterá mais depressa?

– É uma perda de tempo – disse eu, encolhendo os ombros. – Já sei a resposta.

– Talvez, senhor, mas eu não sei, e enquanto não a provar de for­ma satisfatória não a considerarei verdadeira. Nullius in verba, sim?

– É o lema da sociedade deles – explicou a mulher.

Veio-me à mente uma recordação vaga dos tempos de escola.

– «Não existe verdade nas palavras, portanto não jurarei pela autoridade de qualquer mestre.» Horácio, não é?

– Muito bem – disse Boyle, com um aceno.

– Mas eu penso que os resultados desta experiência podem ser exactamente opostos ao que o Signor Demirco descreveu – disse a mulher, com ar pensativo. – Porque o gelo numa bebida torna-a muito fria, enquanto o gelo no ar não arrefece a sala na mesma proporção.

– Bom, veremos, veremos – disse Boyle alegremente. – Mas primeiro… – estava a remexer num monte de papéis. – Aqui está. Demirco, mostre-nos o que fizemos mal.

Abriu à minha frente os planos do arquitecto. Com eles tinha alguns esboços arrancados do bloco de notas de um viajante.

– O escoadouro fica aqui – disse eu, apontando. – Porém, mesmo que acrescentem um escoadouro, terão o problema das árvores. É melhor ter a casa de gelo afundada no solo, numa clareira aberta.

– Nesse caso, teremos de abater as árvores e fazer taludes com a terra – disse Boyle. – O que me diz, John?

O outro homem suspirou.

– Se for necessário, assim faremos. Apesar de ainda não termos começado a trabalhar na ponte para a nova estrada do rei para Chelsea, nem nas gaiolas no passeio.

– As estradas podem esperar. O gelo derrete – disse Boyle. – Por falar nisso… – Virou-se para os blocos de gelo em cima da mesa.

– O que está dentro de água parece realmente estar a encolher mais depressa – admitiu a sobrinha.

Boyle consultou um relógio de bolso.

– Gostava de me ter lembrado de adicionar uma terceira taça com sal. Seria interessante comprar até que ponto isso acelera o processo.

– Quer dizer salitre – disse, e depois mordi a língua. Não devia estar a discutir os segredos da minha arte com nenhum inglês, muito menos com alguém que era claramente capaz de os compreender.

Mas Boyle estava a abanar a cabeça.

– Salitre? Não, isso é muito antiquado. O salitre não faz mais do que o sal comum neste processo.

– Sal comum? – repeti. – Mas isso não… – parei, confuso.

Boyle lançou-me um olhar divertido.

– Garanto-lhe, senhor: se tem estado a usar salitre, tem andado a desperdiçar muito dinheiro. Na realidade, é o sal no salitre que faz a tarefa que pretende. Os corpúsculos do sal são atraídos pelos do gelo, libertando-os assim do seu estado sólido.

– Pensava que nem todos os membros concordavam com a sua teoria dos corpúsculos, tio – murmurou a mulher.

Ele franziu a testa.

– Não discordam. Alguns dos virtuosi precisam de mais provas, o que é uma questão completamente diferente.

Virtuosi? – perguntei.

– O Colégio Invisível – respondeu Boyle. – O Bando de Gresham.

– Ele refere-se à Real Sociedade de Londres para o Progresso do Conhecimento Natural – explicou Elizabeth. – Um grupo de filósofos naturais que investigam e debatem estas questões.

Boyle acenou afirmativamente.

– O frio é um dos nossos interesses particulares.

– Embora seja justo dizer – acrescentou ela –, que há tantos outros fenómenos naturais abrangidos por essa designação que o frio dificilmente é único, nesse aspecto. Ou mesmo particular.

– Compreendo – disse. Depois ocorreu-me uma coisa. – As vossas… investigações filosóficas conseguiriam dizer-me por que motivo certos líquidos ficam mais espessos do que outros ao congelar?

– Prossiga – disse Boyle. – Pressinto um mistério interessante.

– Simplesmente… – Parei, sem saber bem como explicar. – Gostava de fazer um gelado verdadeiramente suave, que não rangesse entre os dentes, sem pedacinhos de água congelada lá dentro. Consegui uma vez, mas nunca mais fui capaz de descobrir o que fez com que resultasse.

– Um gelo que não contenha pedacinhos de gelo? – perguntou Boyle com um sorriso. – Bom, em comparação com os planos da nova catedral ou a compreensão do sistema circulatório, talvez não seja uma questão tão urgente. No entanto, se bem conheço os meus colegas, é exactamente o tipo de problema capaz de captar a sua imaginação. Podíamos criar algumas experiências, pô-lo no caminho certo e depois, se fosse bem-sucedido, publicar as nossas descobertas…

– Publicar? – interrompi rapidamente. – Como assim, publicar?

– Meu caro, não adianta de nada adquirir conhecimento se este não for tornado público. É assim que a nossa sociedade funciona: cada experiência é fielmente registada, debatida, verificada e posteriormente publicada, para benefício de todos.

– E é nessa altura – acrescentou Elizabeth –, que começam geralmente as discussões.

– Ocasionalmente, há algumas pequenas questões de precedência ou originalidade a determinar – admitiu Boyle. – A questão é que nos debatemos por notoriedade experimental, não por vantagens comerciais.

– Talvez isto não seja muito boa ideia, afinal de contas – murmurei.

– Uma vez que a vantagem comercial é a sua raison d’être? – Encolheu os ombros. – Muito bem, senhor, cabe-lhe a si decidi-lo. Como vão os nossos blocos de gelo, Elizabeth?

– O que está dentro de água está quase derretido, enquanto o seco ficou simplesmente cilíndrico – informou ela.

– Excelente! O que eu não daria por um termoscópio preciso, para podermos medir as suas temperaturas relativas.

Vi Boyle fazer alguns apontamentos no seu bloco de notas, mais atingido pelo seu comentário anterior do que queria admitir.

– Não se trata de vantagem comercial.

– O quê?

– O motivo pelo qual faço isto. Não é por dinheiro. Ou, pelo menos, apenas por dinheiro.

– Fico feliz por saber disso – disse Boyle em tom ligeiro. – Mas gostaria de lhe recordar o nosso lema: Nullius in verba. E embora as suas palavras lhe façam crédito, só posso retirar as minhas conclusões das suas acções.

– Não posso revelar os meus segredos.

– Nesse caso, senhor, faria bem em não privar demasiado com cavalheiros como eu – disse Boyle –, já que os segredos são, na nossa estimada opinião, o inimigo ajuramentado da verdade. – Virou-se para a sua bancada de trabalho e compreendi que, apesar do tom cortês, estava a ser dispensado.

Quando regressei ao Lion, mandei imediatamente que me entregassem sal. Elias trouxe-me um saleiro: alguém na cozinha presumira que eu precisava de uma pitada de sal para temperar.

– Traz-me dois quilos de sal, o mais depressa que puderes – disse-lhe.

A criança pareceu confusa.

– Não temos tanto.

– Então vai comprar. De quanto dinheiro precisas? Um xelim? – Atirei-lhe uma moeda e vi-o arregalar os olhos. – Vai – disse. – E se houver um dinheiro de troco, podes ficar com ele, desde que estejas de volta em meia hora.

Quando ele voltou, eu já estava preparado para efectuar a minha própria experiência. Ficara impressionado pela lógica do teste de Boyle com o gelo, ao colocar os dois cubos de gelo lado a lado para ver qual derreteria mais depressa: tratei agora de fazer o mesmo, mas com misturas de gelo e sais. Numa sabotiere pus a minha mistura habitual de gelo e salitre – um cristal extraído da urina de cavalos e humanos; e, como o boticário observara, um ingrediente essencial e caro da pólvora; noutra, coloquei uma quantidade semelhante de gelo, à qual acrescentei sal de mesa comum.

Agora precisava de algo para gelar. Não importava o quê, por isso fui à cozinha e servi-me de um jarro do omnipresente leite-creme que eles faziam aos litros todos os dias, para as suas sobremesas.

Esperei vinte minutos e abri as tampas.

Dentro do primeiro recipiente estava uma massa densa e suave. Com uma colher, raspei uma apara de creme congelado. Abri o segundo pote e fiz o mesmo.

Depois sentei-me, a pensar.

Boyle tinha razão: afinal, o salitre não era necessário. Ahmad aceitara esta premissa com base numa fé cega, tal como fizera em relação a tantos outros aspectos deste processo. Agora que eu sabia a verdade, seria capaz de congelar uma mistura de gelo por quase nada – por meros tostões.

Espantado, permiti-me uma breve imprecação em italiano.

– O que é?

Virei-me. Hannah estava de pé atrás de mim, a limpar as mãos a um pano. Sem pedir autorização, pegou numa das tigelas de gelado e inspeccionou-o com curiosidade.

– Posso provar?

Rapidamente, tirei-lhe a tigela das mãos.

– Não é para palatos vulgares.

Ela encolheu os ombros.

– Bom, de qualquer maneira não preciso de provar. Tem falta de mais açúcar.

– Faço estes pratos para cortesãos. Não para quem despejaria açúcar em qualquer prato, se pudesse.

– Queria apenas dizer – explicou ela, enquanto se afastava –, que mais açúcar podia ajudar o leite-creme a solidificar melhor.

– Açúcar? Solidificar o leite-creme?

– Vejo que está a aprender inglês pelo método de repetir aquilo que ouve, signor.

– O que está a fazer aqui, de qualquer maneira? – inquiri. – Esta copa deve ser privada enquanto eu estiver a trabalhar.

– Estava à procura do leite-creme que fiz de manhã. Mas vejo que foi transformado em gelado.

– Pode levá-lo. Tome, ponha-o ao pé do lume e ficará como antes. – Raspei a mistura congelada de novo para o jarro. Ao fazê-lo, provei-a, como era meu hábito.

Era bom – surpreendentemente bom: e, apesar de eu não ter mexido o creme enquanto gelava, era cremoso e suave. Na verdade, quase tão suave como o que eu fizera em Versalhes, aquele que me fizera ser banido da corte.

Embora precisasse de um pouco de açúcar, para solidificar melhor.

Uma expressão entendida passou pelo rosto de Hannah.

– Então?

Franzi a testa.

– Estes assuntos são secretos. Receitas que mais ninguém tem, senão eu. Não as discuto com ninguém.

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