CARLO
Pêssegos brancos, perfeitamente maduros, com o perfume dos últimos dias de Verão. Chocolate, espesso e macio e rico com nata. Na verdade, não há combinação mais divina de gelos neste mundo.
O Livro dos Gelos
Lancei-me nos preparativos para o baile do gelo. Nada foi deixado ao acaso. Fiz uma miniatura do lago de patinagem, para me certificar de que funcionava, e um modelo à escala do palácio de gelo, no qual uma Louise e um Carlos de papel se sentavam em tronos minúsculos a receber uma fila de convidados de papel. Quanto aos gelados, fiz experiências com sabores extraordinários. Fiz um gelado que fumegava, levemente, ao acender uma pequena pilha de folhas de tabaco por baixo de um frigidarium perfurado: à medida que as folhas se consumiam, o fumo fragrante atravessava a mistura, perfumando-a. Fiz um gelo envolto numa tarte quente de merengue e outro que continha no seu centro uma bola fervilhante de molho de caramelo. Até fiz um gelado com maçãs que começavam a apodrecer: o sabor era perfeitamente decadente, rico com os sucos da mortalidade, e ao mesmo tempo doce como brandy.
No entanto, para o rei, criei um gelo que era simultaneamente simples e extraordinário. Na verdade, a ideia fora de Wren, naquele dia no Garraway’s, quando sugerira distraidamente que eu transformasse a nova bebida da moda, o chocolate, num gelo. Quando combinei ovos, xarope e nata com cacau em pó e uma dúzia de tabletes de chocolate, fiz um gelado tão voluptuoso, tão espesso e suave que nada mais poderia ser a atracção principal.
Lembrei-me da tábua de sorvetes de pêra que fizera para Luís XIV. Como me pareciam agora primitivos! Contudo, como Luís dissera, há virtude na simplicidade. Fiz uma tábua de gelos de chocolate – primeiro um gelado de chocolate simples; depois um de chocolate perfumado com rosmaninho; outro que combinava chocolate e hortelã, depois chocolate e laranja, chocolate e framboesa, chocolate e cerejas e, finalmente, um gelo escuro e pungente baseado no sanguinaccio de Florença, chocolate com sangue e pinhões.
De poucos em poucos dias, ia ver Louise, mostrar-lhe aquilo que fizera. E, sob o disfarce do secretismo – «Esta parte será surpresa: têm de nos deixar a sós» – as damas de companhia e os ministros de Estado e os pintores e os ociosos eram enxotados dos seus aposentos e levávamos ansiosamente os meus gelos para a cama dela.
Fiz um gelado de pêssegos brancos e almíscar – aquilo a que ela me sabia – e perfumei-o com uma ou duas gotas do perfume de água de rosas que ela usava.
Quando olhei para o meu modelo do palácio, achei que faltava alguma coisa. Fiz um boneco de neve e coloquei-o sobre um pedestal no átrio do palácio de gelo, logo atrás do rei e da sua amante. Quando os foliões entrassem no pavilhão, cristais minúsculos de neve perfumada flutuariam e cintilariam sobre as suas cabeças, enquanto o boneco de neve sorria o seu sorriso inescrutável e lhes dava as boas-vindas ao baile.
Hannah veio falar comigo.
– Venho dar o meu pré-aviso – disse, sem preâmbulos. – O meu navio parte de Bristol dentro de três semanas.
Olhei para ela, surpreendido.
– Mas… e o baile de gelo?
– Terei de o perder. E lamento muito, pois parece que será uma ocasião memorável. Mas se não apanharmos este barco perderemos a nossa passagem para a América.
Reparei no plural.
– O Elias também vai?
– Sim. Ficará muito triste de o deixar. Gostou do tempo que passou a trabalhar para si.
– Isto é muito inconveniente – queixei-me, irritado. – Estamos mais ocupados do que nunca. O próprio rei conta connosco…
– Lamento muito – interrompeu ela em tom paciente. – Mas há anos que andamos a planear isto. Nunca me perguntou durante quanto tempo trabalharíamos para si. Se o tivesse feito, já saberia.
– Então, se tem mesmo de ir, deixe ficar o rapaz – ouvi-me dizer.
– Deixar o Elias! Como poderia fazer uma coisa dessas?
– Eu era mais novo do que ele quando deixei os meus pais. Eles deixaram-me ir porque… – Fiz uma pausa. – Porque sabiam que eu teria um futuro melhor. Que me tornaria um homem da corte. Tal como o Elias. Ensinar-lhe-ei os meus segredos, Hannah, tal como o meu mestre me ensinou. Ele será um homem rico. Um favorito de reis e imperadores. Depois deste baile, a nossa fama chegará ainda mais longe, estou certo disso. Levá-lo-ei a Paris, a Nápoles, a Espanha…
– Mas não é esse o futuro que eu escolho para ele – disse Hannah.
– Porque não? Que mais poderia desejar?
– Que mais poderia desejar? – repetiu ela, com um sorriso triste. – Um reino sem reis. Uma Igreja sem igrejas. Um país onde não haverá vínculos: nem de propriedade, nem de privilégio, nem de nascimento. Um sítio onde nenhum homem nascerá com estribos nas costas, para ser montado por outros homens. Onde cada homem poderá escolher a sua forma de veneração; sim, e cada mulher também, e as únicas leis a que deveremos obediência serão as que estão escritas no nosso coração.
Suspirei.
– Nesse caso, o seu novo país será uma matilha de animais. Sem leis nem líderes, simplesmente lutarão uns com os outros.
– Se precisarmos de líderes, seremos nós a escolhê-los. Se precisarmos de leis, nós próprios as faremos. – Hesitou. – Talvez devesse vir também.
– Para a América?
– Porque não? Há muito gelo no Inverno e dizem que os Verões são quentes. As condições perfeitas para um vendedor de gelos, parece-me. – Encolheu os ombros. – Gelados e tartes. Quase que combinam, não é? Talvez pudéssemos montar um negócio juntos, nós os dois.
Olhei para ela.
– Os meus gelados são comprados por reis e cardeais. Nenhum dos quais, segundo sei, existe na América.
– Claro – disse ela calmamente. – Perdoe-me. Foi uma sugestão estúpida.
Deu a volta à copa e arrumou as suas coisas em silêncio durante algum tempo. Depois, ao dirigir-se à porta, disse:
– Esta é a minha última oportunidade de dizer isto, portanto vou dizê-lo. Aquilo que tem agora, com a Louise de Keroualle… é escravidão, não é amor.
Rigidamente, respondi:
– Não é da sua conta.
– Mas é – disse ela, com alguma tristeza. – Oh, é sim.
– Porquê?
Mas ela não me respondeu directamente.
– Parece-me que há dois tipos de amor – disse. – O amor que nos acontece e o amor que convidamos. O amor que nos acontece sem convite é uma coisa física, como uma doença, e, como uma doença, deixa-nos fracos. É um amor que tem de doer, porque se baseia na necessidade de possuir alguém e não em afecto ou respeito. Mas o amor que convidamos… aquele que duas pessoas escolhem ter juntas… esse cresce, todos os dias, de origens modestas. É como um fogo que pode ser mantido apenas com a temperatura suficiente para cozinhar e aquecer a casa, mas que não tem permissão para grassar enquanto não consumir toda a cidade, como o grande incêndio de Londres. Mas não podemos fazê-lo sozinhos. São precisas duas pessoas.
Irritado, perguntei-lhe:
– Que conversa louca é essa sobre fogos e cozinhados? Vá para a América, mulher, com o seu bastardo. Vá e o Diabo que a carregue. Acabará como meretriz lá, tal como foi uma meretriz aqui em Inglaterra.
Lentamente, ela disse:
– Perguntou-me um dia porque fui ao seu quarto, daquela primeira vez. Não lhe disse a verdadeira razão. Fi-lo porque gostava de si. E pensei que talvez conseguisse aliviar a sua melancolia. Mas acabei por compreender que nenhuma mulher conseguirá fazê-lo.
– Uma consegue – retorqui, secamente. – Na verdade, já conseguiu.
– Então não é o amor que o entristece, pois não está menos melancólico do que antes – respondeu ela baixinho. – Devem ser os seus segredos. Enquanto não decidir abandoná-los, acho que nunca será livre.
Olhou para mim durante um momento e depois, sem mais uma palavra, deu meia-volta e saiu.
No dia seguinte partiu para Bristol, sem sequer se despedir.